A filosofia de Machado de Assis. Animais do mundo
Situar Machado de Assis na encruzilhada que é a aporia, em certa medida confronta o pensamento filosófico brasileiro. Mas, ao menos nos introduz à consciência de modernidade, movimento cuja faceta filosófica força a reflexão sobre si mesmo, e ainda a interpretação da nacionalidade. Os românticos se afinavam com o ecletismo espiritualista. Em franca oposição, ao positivismo que solicitava maior rigor científico, exaltando a materialidade e o progresso.
“Não sei se já alguma vez disse ao leitor que as ideias, para mim, são como as nozes, e que até hoje não descobri melhor processo para saber o que está dentro de umas e de outras, – senão quebrá-las.” Machado de Assis (2006, v.3, p.448).
É verdade que a ficção de
Machado de Assis apresenta nítida vocação filosófica e jurídica[1]. Mesmo as poesias da
juventude de Machado de Assis apresentaram temas cristãos, cujos fundamentos
teóricos que observam Santo Agostinho que congregava duas perspectivas: o
ecletismo romântico e a escatologia soteriológica[2]. A primeira construída
indiretamente por meio da recepção dos Pensamentos de Blaise Pascal.
Afinal, Machado pensava a
poesia como estratégia metafísica de acessar à verdade. Já a segunda, considera-se o desenvolvimento do
seu pensamento ficcional no contexto da filosofia oitocentista. E, reconhece-se
que a filosofia de Pascal era o eixo em torno do qual orbitavam os intelectuais
pátrios que atentavam às questões políticas, religiosas, econômicas e sociais[3].
Sendo assim, o Humanitismo é a
doutrina da injustiça: Recordemos a nossa explicação da palavra
injustiça, o que queremos dizer é que
ele (o homem) não se contenta em afirmar a vontade de viver, tal como ela se manifesta
no seu corpo, mas leva esta afirmação
até negar a vontade enquanto ela aparece em outros indivíduos; e a prova é que ele tenta
sujeitar-lhes as forças à sua própria
vontade, e suprir-lhes a existência desde que elas constituam um obstáculo às pretensões
desta sua vontade (Schopenhauer: 2007).
Para muitos críticos, o
Humanitismo é uma pura e simples sátira do Humanismo ou de outras correntes filosóficas do século
XIX, como o Positivismo ou o Evolucionismo
darwinista.
A obra de Machado é variada em
gêneros: de ensaios filosóficos a crítica literária e de teatro, de poesia a
contos e romances[4],
de pensamentos avulsos a crônicas e memórias.
Já em “Memórias Póstumas de
Braz Cubas”, Machado de Assis revelou a atitude essencialmente filosófica do
distanciamento reflexivo[5], onde o narrador e
personagem são um mesmo defunto que, por conta desta sua condição, se mostra
sem comprometimento algum com críticas e juízos posteriores.
Embora demonstrando por
diversos momentos certa atitude filosófica e, por vezes, a influência de
filósofos como Montaigne, Pascal e Schopenhauer, Machado não se enquadra em
nenhuma corrente filosófica específica, chegando mesmo a ridicularizar certos
aspectos filosóficos com os quais discorda. Declara, inclusive, não fazer parte
de nenhuma delas, principalmente ao ceticismo[6], ao qual ainda é
frequentemente associado.
Pouco sabemos a respeito da
primeira infância do escritor e de como lhe foram transmitidas as lições, e
menos ainda, o seu tempo de adolescência. Detectar quais fontes ele incorporou
e veio a construir sua visão conceitual de mundo, é um desafio hercúleo.
Confesso que quando li, in
litteris: “Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas
igrejas. Quando um dia li o capítulo dos sinos em Chateaubriand, tocaram-me
tanto as palavras daquele grande espírito, que me senti (desculpem-me a
expressão) um Chateaubriand desencarnado e reencarnado” (ASSIS, 2015, IV).
Esse teor consta da crônica
publicada em 1862 na Gazeta de Notícias. Onde o escritor se referiu e revelou
toda a sensibilidade de cristãos, quando toda a dinâmica vita era mensurada
pelas badaladas de sinos da Igreja. Afinal, a defesa da tradição cristã fora apropriada
por conta de ataques que os intelectuais vinham sofrendo desde antes da
Revolução Francesa[7].
Essa espécie de ideologia
tradicionalista veem a reduzir o debate sobre uma razão universal para o âmbito
local de nacionalidades, dando primazia às instituições intermediárias que se
assentam nas relações entre o Estado e a pessoa[8].
Ressalte-se que a Igreja
Católica dotada de força social, política e moral deveria fixar e proteger as
liberdades, disseminando a teologia do pecado original e a concessão de Deus do
livre-arbítrio.
Afinal, para combater os
hereges, sofistas e galhofeiros da religião, se utilizou do método de exposição
de Pascal[9] que não exigia das coisas da
religião a mesma ordem de provas demonstrativas que a ciência exige da razão.
Machado ao escrever na virada
do século, fazendo alusão laica à cristandade juvenil é apenas um dos diversos
sentidos que deu à religiosidade. Machado adere à tese de Chateaubriand,
segundo a qual “se os sinos estivessem adjuntos a quaisquer monumentos que não
fossem igrejas, teriam perdido a simpatia moral de nossos corações.
Machado foi católico assim
como seus pais, o menino tivesse exercido a função de coroinha na igreja de
Nossa Senhora da Lampadosa. Certo é que conviveu e recebeu ensinamentos na
sacristia, familiarizando-se com as escrituras.
Os seus primeiros poemas
apresentam um conjunto de escrúpulos cristãos, como a criação de um ambiente de
agonia, a crença na existência da alma e do paraíso, o recurso à escatologia e
à soteriologia, o elogio à cultura cristã, o pessimismo diante da fraqueza
humana numa sociedade devassada moralmente e a constante ideia da redenção no
salvador.
Machado sofreu com as mortes
da irmã, do pai e, particularmente, da mãe que convulsionaram a sua visão do
mundo dando um caráter byroniano. Em 1849, quando ainda tinha somente nove
anos, sua mãe, Maria Leopoldina da Câmara Machado, faleceu devido ao sarampo.
O pesquisador independente
Felipe Rissato descobriu, em 2016, um texto anônimo chamado 'Lembranças de
Minha Mãe', publicado na segunda edição da Revista Luso-Brasileira.
Só posteriormente que viria o
fato mais interessante: aquele. escreve Machado bem nas primeiras linhas da
crônica. "Oh! Eu sou infeliz, muito infeliz... Aos nove anos perdi minha
mãe, fiquei só no mundo; só como a rola sem ninho! Entrei no mundo das
desilusões e dos enganos [...].".A mãe de Machado de Assis morre aos 36
(trinta e seis) anos. Mesmo com pouco tempo de convívio, causa marcas profundas
no filho que ao longo de sua obra acaba prestando-lhe diversas homenagens, por
meio de poemas e contos.
Em seus primeiros experimentos
poéticos em verso, recordam a ausência da figura materna e, a vontade de se
junta à mãe lá no paraíso celestial. São exemplos as poesias “O meu
viver”, “Saudades”, “Lágrimas”, “Um anjo” e “Minha mãe”, todas composições de
1856.
In litteris:
“as poesias de Crisálidas guardam a
antropologia cristã e o dualismo que culpa os prazeres do corpo pelos desvios
da alma: Pouco antes, a candura, / Co’as brancas asas abertas, / Em um berço de
ventura / A criança acalentava / Na santa paz do Senhor; / Para acordá-la era
cedo, / E a pobre ainda dormia / Naquele mudo segredo / Que só abre o seio um
dia / Para dar entrada a amor. [...] Criança, verás o engano / E o erro dos
sonhos teus; / E dirás, – então já
tarde, – / Que por tais gozos não vale / Deixar os braços de Deus” (ASSIS,
2015, III).
Apesar de influenciado por
Blaise Pascal e Arthur Schopenhauer, Machado de Assis tem uma estreita comunhão
com Montaigne, e com a obra Ensaios, pois nessa aprendera (...) a não esquecer
que o homem é um animal, sujeito à
natureza e a seus caprichos e, não a um soberano invulnerável da criação,
arrogantemente senhor de seu destino.
Constata-se Montaigne tanto no
plano filosófico como também no formal. Lembremos que a obra "Os
Ensaios" é uma espécie de autorretrato similar ao que ocorreu com a obra
Memórias de Brás Cubas. Há outra característica em comum, como a análise de
instituições, opiniões, caracteres e costumes. Cada qual em sua época,
questionando o pragmatismo dogmático e investigando a complexidade humana.
Outra união é o fato de não se vincularem a qualquer corrente, sendo céticos ou
humanistas.
Blaise Pascal também exerce
expressiva influência pois Machado de
Assis refutou tudo aquilo que considerou desnecessário. Como Montaigne, Pascal
pensa o homem como um ser doente e
incurável, contudo vislumbra no cristianismo uma possível saída para seus
problemas. Machado não partilha dessa
cogitação.
Para o escritor dos
Pensamentos, “a miséria e a dubiedade
inerentes à natureza humana tinham um remédio transcendente. Machado corrigiu esse aspecto da filosofia de Pascal
com a influência do naturalismo e do ceticismo
de Montaigne”.
Segundo Pascal, o cristianismo[10] é a única religião
contrária à natureza contrária ao senso comum e aos nossos prazeres. É a única
que nos ensina que há no homem um grande princípio de grandeza e grande princípio
de miséria.
O que fez por merecer os
veementes protestos de Voltaire. Como iluminista que era Pascal, escrevia
contra a natureza humana e, ainda, contrário aos ensinamentos do cristianismo,
quais sejam, a simplicidade, a humanidade e a caridade.
Mas, para Machado de Assis a
expressão de religiosidade culminara no desejo de morte, não em morte heroica e
digna, mas apenas morte cristã e libertadora.
A apologia feita a Chateaubriand[11] é nitidamente agostiniana,
por exemplo, nos debates a respeito da presença de Deus na exuberância da
natureza e a superioridade da moral cristão.
Afinal, para o filósofo, os
benefícios das ciências empíricas e a investigação sobre a natureza humana
deveriam se associar a uma finalidade metafísica[12], que alcançasse deus por
meio de poética específica, quase numa teologia de poeta. Só se pode galgar a
epifania e transmitir em versos, a sua experiência sobrenatural[13].
Enfim, os partidários do bem
que possuem o coração eivado de fé e repleto de virtudes cristãs[14], vige a moralidade regida
por dogmas que seria superior ao relativismo pagão, muito interesseiro e cheio
de opiniões. O último esforço da razão é reconhecer que existe uma infinidade
de coisas que a ultrapassam.
No mundo religioso, apenas
existe um ponto fixo, em torno do qual volvem todas as ideias, com a mais
simples linguagem, isso mesmo será eloquente.
Há uma medicina moralista que
disseca o ser humano e encontrar um órgão movediço, que não é anjo nem besta,
mas repleto de paradoxos, desde que quem quer se mostrar como anjo ou se mostre
como besta. Nunca se ama alguém mas somente as qualidades(B. Pascal).
O movimento de um barco à
deriva só pode ser notado por quem está imóvel em terra. Do mesmo modo, existe
uma perspectiva correta, nem longe nem perto demais, “um ponto indivisível que
é o verdadeiro lugar” (PASCAL[15], 2005) para julgar uma
pintura.
No âmbito moral, quem indica o
ponto fixo é Jesus Cristo, imagem da condição humana, captada por apologistas
como o próprio Pascal, Bossuet, Chateaubriand e Monte Alverne.
A liberdade resta circunscrita
ao dogma do pecado original, mas cujo remédio depende da graça. A religiosidade
não se divorciava do labor artístico. Existe a imagem poética que era
considerada a expressão que persuadia o coração. E, nessa combinação, o poeta
em Machado de Assis talvez galgasse de modo sublime a angústia e as outras
emoções juvenis, como a saudade e tristeza.
Pela aparente proximidade
conceitual dos termos religião, religiosidade e espiritualidade, faz-se necessária uma
delimitação do significado empregado a tais palavras, uma vez que possuem sentidos
distintos e assumem funções diferentes nas vivências dos sujeitos[16].
A religiosidade se caracteriza
a partir de um vínculo estabelecido com
uma organização religiosa, o que, como será dissertado adiante, sugere uma diferença
crucial perante a definição de espiritualidade. A religiosidade pode ser definida como crença,
prática e devoção à uma religião.
Compreende-se, portanto, que a
espiritualidade se caracteriza como uma dimensão
que antecede a religião, podendo ou não incluir uma crença em algum deus e/ou envolvimento com práticas
religiosas.
Sua definição é advinda do
conceito de espírito, o qual diz de uma
parte imaterial do homem, a espiritualidade pode ser conceituada como uma necessidade interna, uma
busca por um entendimento sobre a vida e
seus significados, sobre a relação de si com o mundo e com o transcendente, justificando, a partir de experiências
espirituais, toda uma existência.
O interesse dos biógrafos na
poesia religiosa era um transcender as disputas humanas e comungar a verdade
dada pela fé. É o caso do poema “Consummatum est!”[17]
publicado em 1856 que se refere a uma exortação a Crista como forma de redenção
humana.
De fato, Pascal apregoou que:
"a fé cristã não visa, principalmente, senão a estabelecer estas duas
coisas: a corrupção da natureza e a redenção de Jesus Cristo.
No cioso jogo de paradoxos e
simetrias o mesmo tema veio a ser explorado em poesias como “O Profeta”, “Deus
em ti”, “A um poeta”, e no longo poema “A redenção” e, nos versos de Fascinação
e Ícaro.
No fundo, Ícaro[18] retrata o homem de Pascal e de Santo Agostinho[19], as asas o diferencia dos
demais animais terrestres, porém, não são suficientes para equipará-lo aos
deus. E, de tão deslumbrado com a imagem do sol, o homem alado esquece que a
sua natureza apenas lhe permite apenas um voo médio, equidistante das bestas e
do firmemente.
Foi sua desmedida ambição, o
vasto querer e a aspiração para o infinito componentes da antropologia negativa
de Pascal, o amor-próprio e a suposição de grandeza devem ser reconhecidos e
destruídos em favor da autonomia do sujeito[20].
Ao reconhecer a verdade do
cristianismo conseguimos obter uma imagem mais concreta do ser humana. E, o
reflexo da miséria humana, da qual Jesus Cristo redime, é a disposição
contrária, a grandeza, que permite ultrapassar-se infinitamente.
Eis o reflexo humano de luz e
positividade tão ignorado por Voltaire e, reconquistado por Machado de Assis em
meio ao jogo de ilusões, de quem se liberta das mundanidades, conhece e até
perdoa a miséria humana. Interessante é a frase: "Três coisas me entediam,
no sentido físico e no sentido moral, na linguagem própria e na linguagem
figurada: o rumor, o vento e a fumaça. " Chamfort[21].
Pascal viveu a escalada do absolutismo,
do qual parecia emanar toda arbitrariedade da lei e da força. “A opinião é a
rainha do mundo”, diz ele, desde que o seu reinado se sustente pela força
(PASCAL, 2005).
A força é indisputável e
amplamente reconhecida. Mas, sozinha, a força é tirânica. A justiça varia
conforme o capricho das leis e do costume. E, ainda segue a moda da
jurisprudência. Sozinha ou isolada, ela é impotente. O melhor dos mundos
reuniria força e justiça. A justiça sem a força é impotente, a força sem
justiça é tirana.
Na vã pedagogia de tentativas
e erros que tentou explicar o humor bipolar de Machado de Assis, muito variável
conforme suas referências intelectuais, de um lado o forte tradicionalismo
cristão e, de outro, a máquina divina do progresso, bem abençoada pelo nascente
liberalismo republicano.
Atualmente, denominaríamos de
ingênuo o excessivo entusiasmo dado aos valores daquele nascente momento e
sistema econômico.
Em terras brasilis
tivemos um liberalismo teórico que esbarrava nas determinações em prol da
clientela. O ensaio, a tentativa e o
erro providenciaram algum senso crítico e a precaução de não se concluir
verdades enquanto as premissas forem falsas. Por sorte ou por virtude, esse
entusiasmo excessivo pelo capital não durou mais do que um ano.
O bíblico progresso avançou no
curto período republicano na vida de Machado de Assis. A tentativa de
solucionar os problemas políticos e estéticos adquiriu maior vulto através do
ecletismo espiritualista.
Se a práxis poética fora
estabelecida por meio do contato com o poeta Francisco Gonçalves Braga[22], a quem o Machado dedica
e imita nas primeiras poesias, comparando-o a Bocage e Virgílio, é através das
indicações de Sarmento, de acordo com Massa (1971), que a sua visão poética
adquire robustez teórica.
Entre o discípulo e o mestre,
encontra-se a filosofia espiritualista[23] do frei Monte Alverne:
mais os seus sermões, é verdade, do que as suas anotações sobre os problemas de
metafísica. Machado dedica ao padre uma poesia escrita por ocasião da morte de
Alverne, em 1858.
O sério debate sobre o
liberalismo brasileiro surgiu do legado das reformas pombalinas no Império
português e do conhecimento das experiências revolucionárias de França, Inglaterra
e Estados Unidos. O Correio Brasiliense, fundado por Hipólito da Costa[24], contribuiu
significativamente para familiarizar a elite com o ideário desse novo regime.
Esse jornal assumiu um caráter
doutrinário, por meio do comentário de obras e fatos históricos e da
apresentação de um programa liberal, que incluía a criação de universidades,
liberdade de imprensa, independência do sistema judiciário e eleitoral,
abolição da escravatura, investimento tecnológico, avanço científico etc.
Além disso, surgiram, na
segunda metade da década de trinta, condições materiais para a efetivação do
debate filosófico, como a edição da revista Niterói, a estruturação do Colégio
Pedro II e a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
A figura de Pascal era hasteada
para representar a conciliação entre os movimentos do progresso e do
cristianismo. A invenção da primeira máquina aritmética, a Pascaline[25],
revolucionou o modo como pensamos a interface entre homem e máquina, uma vez
que a feitura de cálculos, o raciocínio e a inferência pareciam ser
exclusividades da mente humana.
Foi nesse contexto das
discussões filosóficas modernas que se disseminou a tese de que o corpo humano
se assemelha a uma máquina[26], pois ambos funcionam
segundo regras mecânicas.
Os dualistas, discípulos de
Descartes, pensavam que o homem era composto de matéria e espírito. Isso
significa dizer que somos uma espécie de máquina pensante.
Para Descartes, o ser humano é
mais do que uma justaposição destas duas substâncias; ele é uma unidade, na
qual corpo e alma agem um sobre o outro. O homem cartesiano não é apenas um
composto de espírito e matéria, mas uma união substancial.
No conto “Ideias de canário”,
de 1863, o escritor narrou a história de
um ornitólogo que compra, numa loja de objetos usados, uma gaiola velha com um
canário dentro. Intrigado com o fato de a ave trilar como se falasse e emitisse
pensamentos próprios sobre o mundo, o cientista resolve estudar a língua do
pássaro, suas relações com a música e o seu pensamento “animal” sobre a vida.
Porém, depois de várias
tentativas, o ornitólogo se viu confuso e perplexo diante das ideias incomuns
do canário, visto que este se revela bem mais sábio e esperto que o homem.
Com sua sabedoria singular e
seu “raciocínio” incapturável, a ave coloca em questão não apenas a competência
do ornitólogo, como também o olhar humano sobre a natureza, evidenciando,
assim, os limites da razão, compreendida como atributo exclusivo e diferencial
da espécie humana em relação às demais espécies.
Pode-se afirmar que, nesse
conto, Machado de Assis exercitou uma visão irônica sobre as filosofias
humanistas[27]
amparadas na noção de racionalidade. Ao atribuir ao pássaro o que Heidegger[28] apud Maciel
chamou, na esteira de Rilke[29], de a experiência do
“Aberto”, o escritor brasileiro contraria a assertiva de que o animal é, à
diferença dos humanos, “pobre de mundo”.
Realiza, portanto, uma crítica
à chamada “máquina antropológica do humanismo” que, sobretudo após Descartes,
instituiu a cisão radical entre homem e animal, humanidade e animalidade no
mundo ocidental.
Machado tratou das relações
controversas entre homens[30] e animais num mundo
dominado pela ciência e pelo triunfo do racionalismo moderno. Ao fazer um
elogio ao vegetarianismo, numa crônica sobre a greve de açougueiros acontecida
no Rio de Janeiro em 1893, além de ter se manifestado ser contra as touradas e
abordado criticamente a crueldade das práticas de vivissecção, comuns nos
laboratórios científicos do tempo.
Ao questionar a prepotência da
espécie humana em relação às demais espécies e atribuir aos viventes não
humanos o exercício da subjetividade, Machado de Assis traz à baila suas
inegáveis afinidades com os princípios que Michel Montaigne defendeu e
desenvolveu no ensaio “Apologia de Raymond Sebond”[31] (segundo volume dos
Ensaios, de 1580), no qual o filósofo francês empreende, com o propósito de
desqualificar o dogma da razão humana, um longo e detalhado elogio aos animais
(Montaigne 2006).
A grande contribuição de
Montaigne para o debate moderno e contemporâneo em torno dos animais foi, sem
dúvida, preparar o terreno para a construção futura de um novo olhar sobre o
animal e o humano, não mais assentado nos atributos “próprios do homem”, mas na
ideia de vida.
Por um lado, Montaigne refutou
a crença em um logos único e suficiente, capaz de explicar todas as
coisas, inclusive Deus, ele não descartou, por outro, a possibilidade de a
razão poder ser exercida de outras maneiras e por outras criaturas não humanas.
Para o Machado de Assis, é
muita presunção do homem pensar que pode assegurar a sua própria supremacia em
relação aos outros animais ao distribuir as faculdades físicas, emocionais e
intelectuais que bem entende a estes.
Ao conferir aos viventes não
humanos o papel de agentes, de seres dotados de inteligência, sensibilidade e
saberes sobre o mundo, sem reuni-los propriamente no singular genérico
“animal”, ele não deixou de reivindicar até mesmo que por vias oblíquas a nossa
responsabilidade moral.
Em vários outros textos, entre
crônicas e contos, Machado trata das relações controversas entre homens e
animais num mundo dominado pela ciência e pelo triunfo do racionalismo moderno.
Há uma crônica datada de 15 de
março de 1877. Vide um fragmento: “E querem saber por que detesto as touradas?
Pensam que é por causa do homem? É por
causa do boi, unicamente do boi. Eu sou sócio (sentimentalmente falando) de
todas as sociedades protetoras dos animais. O primeiro homem que se lembrou de
criar uma sociedade protetora dos animais lavrou um grande tento em favor da
humanidade”.
Aliás, que essa associação
entre a violência contra os animais e a violência contra as pessoas foi também
abordada por Machado de Assis no terrível “Conto alexandrino”, de 1884[32].
Escrito no apogeu do
cientificismo do século XIX, o conto parece prefigurar os horrores cometidos
pelos médicos nazistas nos campos de concentração, ao mostrar como as práticas
de vivissecção de animais (no caso do conto, ratos) realizadas em nome do
progresso da ciência moderna podem culminar também na dissecação e amputação de
seres humanos tidos, pela lógica hierárquica das instâncias de poder, como
inferiores, anômalos, insanos, incapazes e supostamente nocivos à sociedade.
Machado apresentou uma teoria da alma em que a relação eu-mundo
ganha um destaque fundamental e que pode
demonstrar uma crítica machadiana à
probabilidade de um conhecimento
efetivamente metafísico, mas, por outro
lado, poderíamos pensar que, no campo do
humano, a despeito da pretensão moderna,
apenas um conhecimento relacional e
irônico[33] seria possível. Com isso, Machado nos apresenta uma possibilidade de compreender a “verdade” da alma através de uma metafísica irônica[34].
A refinada jocosidade das caracterizações feitas por Machado de Assis nos revela a sinceridade cruel com o gênero humano que por vezes é identificado com um pessimismo exacerbado, talvez herança de Schopenhauer, um ser em que a sua história consiste num conjunto de misérias cujo fim está na própria destruição desse humano, ao fim e ao cabo, nada mais que reles farrapo.
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Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2008.
SCHOPENHAUER, Arthur. O
Mundo como vontade e Representação. Tradução de Jair Barboza. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2005.
VOLTAIRE. Lettre à
Monsieur de Formont (1 jun. 1733). Disponível em:
Xavier, Anderson da Costa. Machado
de Assis e Arthur Schopenhauer: literatura e filosofia em Quincas Borba.
Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2008. Disponível em: https://livros01.livrosgratis.com.br/cp075108.pdf Acesso
em 8.7.2023.
Notas:
[1]
As características principais das obras de Machado de Assis são: 1. Crítica à
burguesia e à sociedade de maneira geral; 2. Ironia; 3. Metalinguagem; 4.
Diálogo direto com o leitor. Sua obra
também é bastante conhecida pelo chamado realismo psicológico, que se
caracteriza pelos aspectos psicológicos dos personagens, os quais, até então,
eram explorados apenas a nível físico e costumeiro. Por ser um escritor que
também era jornalista e cronista, sua visão da sociedade, a qual rotineiramente
observava, influenciava muito o que abordava em suas obras: a sociedade
burguesa carioca do século XIX.
[2]
Doutrina ou estudo da salvação do homem por um redentor. A soteriologia é o
estudo da salvação humana. A palavra é formada a partir de dois termos gregos σωτήριος
[Soterios], que significa "salvação" e λόγος [logos], que
significa "palavra", "princípio", ou "ensino".
Cada religião oferece um tipo diferente de salvação e possui sua própria
soteriologia, algumas dão ênfase ao relacionamento do homem em unidade com
Deus, outras dão ênfase ao aprimoramento do conhecimento humano como forma de
se obter a salvação.
[3]
O humanitismo é o nome de uma filosofia fictícia criada por Quincas Borba ou
Joaquim Borba dos Santos, que é exposta no romance Quincas Borba e também
secundariamente em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Para os críticos a referida
filosofia constitui-se no império da lei do
mais forte, do mais rico e do mais esperto. É a transformação do homem
em objeto do homem, sendo uma das principais maldições relacionadas à falta de
liberdade verdadeira, econômica e espiritual. Traduziu-se numa sátira ao
positivismo de Auguste Comte e ao cientificismo do século XIX e, ainda, à
teoria de Darwin sobre a seleção natural.
Desnudava ironicamente o caráter desumano e antiético da lei do mais
forte.
[4]
Dom Casmurro não é, em verdade, um romance. Como todas as outras obras do
período realista de Machado de Assis, Dom Casmurro tem por objetivo central
mostrar ao homem sua própria mediocridade. Aliás, um ponto marcante em sua obra
é essa visão pessimista em relação ao homem . Especialmente nesta obra, Machado
ainda dirige uma certa crítica à obra “O Primo Basílio”, de Eça de Queiroz,
onde o autor acredita poder descrever a realidade de forma fidedigna. Frente a
isso, Machado nos mostra, em “Dom Casmurro”, a realidade sob o ponto de vista
de um marido ciumento, atormentado em seus devaneios.
[5]
No Brasil, as relações sociais têm um mediador quase que universal: o favor.
Assim, rentista, herdeiro de grande monta como Brás que não trabalha nem compra
o pão com o suor conta positivamente as negativas. O pobre, a seu turno, que
trabalho, ao revés, não faz mais que sua obrigação. E, não há mérito nisso.
Afinal de contas, o pagamento, na maioria das vezes, é apenas representado como
meio de troca. E, todas as relações de Brás Cubas com o dinheiro têm um
funcionamento muito antimoderno. Tanto que compra a consciência de Dona Plácida
por cinco contos. Retribui uma moeda de prata ao almocreve que lhe salvou a
vida. Todas as perspectivas se submetem à função ideológica. Logo, o antagonismo de classe, em sua forma
particular no Brasil, seria a chave para
a compreensão do romance. A grandeza de
Machado está em interiorizar no romance as contradições das relações sociais, conferindo-lhes uma
totalidade virtualmente inexistente no
plano da realidade. A técnica narrativa se transforma na mimese da volubilidade como estrutura
social.
[6]
O alcance do ceticismo machadiano transcende o dos moralistas. Banido o vínculo teológico,
subtraído o Deus de Pascal, Machado
pressente que as duas Naturezas, diversas pelo grau de veracidade, são falsetes que se duplicam nas
personagens e compõem a malha social.
[7]
Aponta-se a tomada da Bastilha como o início da Revolução Francesa. Construída como uma defesa contra
os ingleses durante a Guerra dos Cem Anos, logo se tornou uma prisão. Luís XIV
transformou-a em uma espécie de prisão política, para onde eram enviados, sem direito a julgamento,
conspiradores e "indesejados" de uma
maneira geral. No século XVIII, um grupo específico passou a
"frequentar" cada vez mais as
celas da Bastilha: os escritores. Machado deu a Itaguaí sua Bastilha: a Casa
Verde. O próprio autor chama algumas vezes
a atenção para a analogia. Primeiro, quando um dos personagens define o
manicômio como a "Bastilha da razão
humana". Depois, afirma que "os trezentos que caminhavam para a Casa Verde, – dada a diferença de
Paris a Itaguaí, – podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha" (p. 271). E logo em
seguida há uma referência irônica ao famoso
diálogo de Luís XVI com o duque de La Rochefoucauld-Liancourt, quando
este o avisou da tomada da Bastilha: –
Isso é uma revolta? – teria indagado o rei. – Não, sire, é uma revolução.
[8] Além disso, lembremos que Machado de Assis ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras sinceramente inspirada na Academia Francesa, e há quem defenda que o escritor foi crítico e irônico em relação aos ideais revolucionários, como se pode perceber nas obras, como O Alienista e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
[9]
Diante da monstruosidade humana, Pascal, afirmou que o homem age pautado em
seus interesses, mas às vezes, suas ações contêm uma centelha de bondade. Mas,
Machado de Assis discordou. Em Brás Cubas, não acreditou em boas ações, foi
influenciado pelos moralistas franceses, para quem os bons sentimentos são mera
máscara hipócrita do egoísmo. Sempre ser
vistas por um prisma de desconfiança, pois “a frase machadiana é de fato sempre faceira: exige
que nós a olhemos antes de ver o que ela. Miguel Reale discorda dos
apontamentos de Afrânio Coutinho. Segundo ele há um certo exagero na correlação.
[10]
No cristianismo a salvação é estabelecida através de Jesus Cristo. A
soteriologia no cristianismo estuda como o evangelho de poder e os ensinamentos
de Jesus e a fé n'Ele separa do mundo e das práticas mundanas as pessoas que
antes estariam condenadas pelo pecado e os reconcilia com Deus. Os cristãos
recebem o perdão dos pecados, vida e salvação adquirido por Jesus Cristo
através de seu sofrimento inocente, morte e ressurreição após sua morte. Esta
graça da salvação é recebida sempre pela fé em Jesus Cristo, através da palavra
de Deus. Alguns cristãos, simplificadamente, acreditam que a salvação é obtida
a partir deles e da vontade de Deus (sinergismo), outros creem que a salvação
parte da vontade absoluta de Deus e o homem pela fé é incapaz de resistir.
[11]
François-René, Visconde de Chateaubriand foi um escritor, ensaísta, diplomata,
realista e político francês que se imortalizou pela sua magnífica obra
literária de caráter pré-romântico. Quando eclodiu a revolução francesa, o
jovem Chateaubriand era oficial de cavalaria e quando seu regimento foi
dissolvido, em abril de 1791, emigrou para os Estados Unidos, onde conviveu com
comerciantes de pele e índios. Em 1792 resolveu regressar a França e ingressou
no exército contrarrevolucionário. Ferido na batalha de Thionville,
Chateaubriand mudou-se para Bélgica e depois para Londres, onde em meio a
grandes dificuldades econômicas, viveu como professor particular e escreveu
“Ensaio Histórico, Político e Moral sobre as Revoluções”. A vida política de
François-René de Chateaubriand começou com a queda do império. Chegou a ser
embaixador em Berlim e Londres, assistiu ao Congresso de Verona, além de ser
ministro das Relações Exteriores. Viveu
durante os últimos anos de sua vida graças à renda que lhe proporcionou a obra-prima
“Memórias de Além-Túmulo”.
[12]
A questão da alma presente no conto "O Espelho - esboço de uma nova
teoria da alma humana" (1882) de
Machado de Assis discute a relação entre ironia e metafísica na exposição
machadiana de ideias filosóficas
realizando um breve paralelo entre o escritor brasileiro e os filósofos Sócrates, Aristóteles e Heidegger.
[13]
A definição clássica de Metafísica dada
por Aristóteles (2001) compreende
quatro pontos: 1. Ciência das
causas primeiras ou supremas; 2. Ciência do ser enquanto ser; 3. Ciência da substância;
4. Ciência de Deus e da
substância supra-sensível.
[14]
A tradição da Igreja enumera doze: «caridade, alegria, paz, paciência, bondade,
longanimidade, benignidade, mansidão, fidelidade, modéstia, continência,
castidade» (Gl 5, 22-23 segundo a Vulgata). Resumindo: 1833. A virtude é
uma disposição habitual e firme para praticar o bem.
[15]
Blaise Pascal foi um matemático, escritor, físico, inventor, filósofo e teólogo
francês. Prodígio, Pascal foi educado por seu pai. Os primeiros trabalhos de
Pascal dizem respeito às ciências naturais e ciências aplicadas. Contribuiu
significativamente para o estudo dos fluidos. Em 1654, depois de quase morrer
em um acidente de carruagem e passar por uma experiência mística, Pascal decidiu
consagrar-se a Deus e à religião. Elegeu seu guia espiritual o padre jansenista
Singlin e, em 1665, recolheu-se à abadia de Port-Royal des Champs, centro do
jansenismo. Nesse período, elaborou os princípios de sua doutrina filosófica,
centrada na contraposição dos dois elementos básicos e não excludentes do
conhecimento: de um lado, a razão com suas mediações que tendem ao exato, ao
lógico e discursivo (espírito geométrico). Do outro lado, a emoção, ou o
coração, que transcende o mundo exterior, intuitiva, capaz de aprender o
inefável, o religioso e o moral (espírito de finura). Pascal resumiu sua
doutrina filosofia na frase que a humanidade repete há séculos, na qual nomeia
os dois elementos do conhecimento - a razão e a emoção. "O coração tem razões que a própria
razão desconhece."
[16]
A religiosidade e espiritualidade são
fatores constitutivos da subjetividade humana, nomeando vivências e
experiências com suas significações,
corroborando a ideia de Oliveira e Pinto (2018) em relação à uma compreensão biopsicossocial-espiritual
dos sujeitos.
[17]
Consummatum est (locução latina que significa "tudo está
consumado") locução. Últimas palavras de Jesus Cristo ao expirar na cruz;
citam-se a propósito de uma grande catástrofe, ou de uma vida que acaba de
extinguir-se. Fonte: Vulgata, S. João, XIX, 30. pub. Parecidas. Palavras
vizinhas.
[18] O jovem Ícaro é filho de Dédalo, famoso
inventor grego, responsável pela criação do labirinto de Creta, que abrigava o
temível Minotauro, c criatura que, de certa forma, ele mesmo contribuiu em
trazer ao mundo, pois foi Dédalo quem construiu a estrutura dentro da qual
entrou Pasífae para ser possuída pelo touro do rei Minos (seu marido), como
castigo enviado por Poseidon por ter se negado a sacrificar aquele animal.
Dédalo participou uma vez mais nos mitos gregos quando ajudou Ariadne a tirar
Teseu de dentro do labirinto de Creta, logo após este derrotar o Minotauro. Ao
saber de sua traição, o rei Minos o aprisionou, junto com seu filho Ícaro.
[19]
Para alguns intelectuais, a história de Ícaro e Dédalo é uma lembrança da força
da ambição e das consequências trágicas que podem ocorrer quando a ignorância e
a imprudência prevalecem sobre a sabedoria. Outra análise feita versa sobre a
importância de os mais jovens escutarem os conselhos dos mais velhos. A morte
de Ícaro aconteceu justamente por este ter desobedecido às ordens de Dédalo. Há
também os que afirmam que a história diz respeito ao excesso de confiança.
Quanto mais Ícaro subia, mais se encantava e mais poderoso se sentia,
acreditando que nada poderia impedi-lo de atingir seu objetivo. O mito faz
referência ao caminho discipular de todo homem que acorda para a verdadeira
espiritualidade. Trata da busca pelo estado de liberdade, no caso representado
pelo voo, que também referência as capacidades latentes do homem que vão aos
poucos se desenvolvendo de acordo com a necessidade do momento. O Sol, neste
caso representa a Luz, a Sabedoria, que jamais deve ser buscada. Para tanto, o
mito pune Ícaro com a morte por ter ascendido voo além do limite, demonstrando
que o discípulo não deve sair repentinamente da caverna, assim como bem nos
ensinou o mestre Platão no Mito da Caverna. O mito também mostra a queda do
discípulo da senda, ocasionada pelo encantamento com a sabedoria, que traz à
tona o vício da vaidade, da presunção e da ganância, e da falta da paciência.
[20]
Quanto aos aspectos mais concretos, o mito nos reporta à responsabilidade sobre
a paternidade e/ou maternidade, já que, uma vez responsáveis por nossos filhos,
devemos oportunizá-los e permitir-lhes terem suas próprias experiências para,
então, poderem amadurecer e tornarem-se capazes de realizar seus sonhos,
inclusive conquistar a independência material. No mito, Dédalo acaba por fazer
todas as tarefas, desde a ideia até a confecção das asas, sem a participação de
seu filho, que acabou por perder suas referências básicas materiais e alçou voo
nas alturas, o que acabou ocasionando sua morte. Na verdade, Ícaro não estava
preparado nem havia sido devidamente treinado e orientado pelo pai.
[21]
Sébastien-Roch Nicolas, que tomou posteriormente o nome de Nicolas de
Chamfort, foi um poeta, jornalista, humorista e moralista francês. Estreando
com alguns artigos no Journal Encyclopédique (Jornal Enciclopedista) e
uma colaboração no Vocabulaire Français (Vocabulário Francês), faz-se
notar bem cedo através de alguns prêmios de poesia dados pela Academia, dá ao
Théâtre-Français algumas comédias que fazem sucesso e junta-se aos diversos
empreendimentos literários para se sustentar. Sua reputação o faz ser escolhido
pelo Príncipe de Condé como secretário de suas licitações; torna-se em 1784
secretário ordinário e do gabinete de Madame Elizabeth, irmã do Rei Luís XVI.
Antes da Revolução, foi um dos
escritores mais apreciados nos salões parisienses, brilhante e espirituoso,
escrevendo diversas peças para teatro. Iniciou-se na Franco-Maçonaria em
1778. Fez carreira de homem de letras
que o conduziu à Academia Francesa em 1781 (ocupando a cadeira nº 6), porém
prematuramente contraiu uma doença venérea da qual jamais se recuperou e que
deixou sua saúde precária pelo resto da vida.
[22]
Considerado o "primeiro mestre" de Machado de Assis, o poeta
português Francisco Gonçalves Braga (1836-1860) é um ilustre desconhecido nas literaturas
brasileira e portuguesa. Dessa forma, o artigo mostra aspectos da vida
literária de Gonçalves Braga, sobretudo nos seis anos em que viveu no Rio de
Janeiro.
[23]
Espiritualismo é a denominação genérica de doutrinas religiosas ou filosóficas
para as quais a essência da realidade é o espírito, entendido quer como
substância psíquica, consciência universal, pensamento puro, liberdade
irrestrita, vontade absoluta ou divindade todo-poderosa. O espírito é então a
realidade primordial, o bem supremo, a fonte de todos os valores e o unificador
das consciências finitas. Transcende a natureza material, que se reduz à
aparência sensível ou manifestação da substância imaterial, infinita. O
espiritualismo passou assim a designar as correntes de pensamento que afirmam a
existência de uma realidade imaterial. O dualismo e o monismo, o teísmo e até
certos tipos de ateísmo, o panteísmo, o idealismo e outras tendências
filosóficas são consideradas compatíveis com o espiritualismo, pois admitem uma
realidade independente da matéria e superior a ela. Foram espiritualistas
Platão, por seu conceito de alma, e Aristóteles, por distinguir o intelecto
ativo do passivo e por conceber Deus como realidade pura. Em sentido mais
amplo, podem ser considerados espiritualistas o neoplatônico Plotino e os
racionalistas Descartes, Malebranche e Leibniz, entre outros.
[24]
Hipólito da Costa (1774-1823) foi o redator do primeiro periódico liberal de
língua portuguesa, o Correio Braziliense, e é considerado o patriarca do
jornalismo brasileiro. Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça
(Colônia do Sacramento, 13 de agosto de 1774 — Londres, 11 de setembro de 1823)
foi um jornalista, maçom e diplomata brasileiro, patrono da cadeira 17 da
Academia Brasileira de Letras. Seu irmão, José Saturnino da Costa Pereira, foi
Senador do Império do Brasil e Ministro da Guerra.
[25]
A possibilidade de mecanizar o cálculo aritmético foi apresentada pela primeira
vez ao público em 1642 pelo matemático e filósofo francês Blaise Pascal.
Pascal, então com dezanove anos e sem conhecimento dos trabalhos anteriores,
construiu uma máquina calculadora que ficou conhecida pelo nome de Pascalina.
[26] No tecnomecanicismo cartesiano, os corpos (e não os homens) não passam de aparatos autômatos. Como toda coisa extensa, a explicação do funcionamento de um corpo vivo deve ser procurada em conexões lineares, em forças físicas dispostas na forma de relações de causalidade no circuito fisiológico. Desse modo, para Descartes, a diferença ontológica entre a alma e o corpo não se aplicaria aos diferentes corpos, sejam eles naturais ou fabricados. Além do mais, não seria a alma que daria movimento e calor ao corpo, sendo estes princípios básicos de um corpo vivo, como afirma o quinto artigo de As paixões da alma: "Que é um erro que a alma dá movimento e calor ao corpo" (Descartes, 2000).
[27]
Um problema de tamanha importância para a História da Filosofia e até mesmo para nossos próprios
modos particulares de ver o mundo, pode ser mais bem aproveitado se não o limitarmos e
respeitarmos sua complexidade. Tentar uma
explicação fácil para uma questão de tamanha abrangência e que talvez
seja irrespondível pode não ser o melhor
modo de se tratar este tema ou mesmo este autor, de um modo geral, que tanto advertiu contra julgamentos
precipitados e contra a estreiteza de pensamento.
[28]
Torna-se inevitável lembrar o parágrafo
25 de Ser e Tempo, em que Heidegger
(1999, 167) diz: “O esclarecimento do
ser-no-mundo mostrou que, de início, um
mero sujeito não ‘é’ e nunca é dado sem
mundo. Da mesma maneira, também, de
início, não é dado um eu isolado sem os
outros”.
[29]
René Karl Wilhelm Johann Josef Maria Rilke, mais conhecido como Rainer Maria
Rilke, ou por vezes também Rainer Maria von Rilke, foi um poeta e romancista
austríaco. Ele é "amplamente reconhecido como um dos poetas de língua
alemã mais liricamente intensos". Ele escreveu versos e prosa altamente
lírica. Em 1910, foi publicado seu único romance, Os Cadernos de Malte Laurids
Brigge, que abriu novos caminhos no gênero. Trata-se de um diário supostamente
escrito por um jovem poeta dinamarquês que vive em Paris, com características
autobiográficas e que, na forma, reflete a crise existencial e da sociedade do
final do século XIX. Em 1923, Rilke terminou as Elegias de Duíno e os Sonetos
de Orfeu. Outras obras importantes do autor são: O Livro das imagens (1902) e O
Livro das Horas (1899-1903).
[30] No século XVIII, Julien Offray de La
Mettrie escreve o polêmico livro intitulado L'homme-machine [O
homem-máquina]. Se Descartes propõe o corpo como uma máquina, La Mettrie
conclui que o homem é uma máquina. Ao acompanharmos o movimento do pensamento
no século XVIII, podemos perceber que, nesse século, a filosofia não tem como
fundamento a ciência matemática, como o tem para Descartes. A base científica
da filosofia no quadro teórico do século XVIII está voltada para as ciências
naturais. Sendo assim, Julien Offray de La Mettrie elabora em sua obra uma tese
própria para sua época. A proposta de Descartes, que descreve o funcionamento
do corpo humano como uma máquina, é assim conduzida para outra afirmação mais
radical: o homem é uma máquina.
[31]
A “Apologia de Raymond Sebond” indica o interesse de Montaigne pelo ceticismo
antigo, pois ele percebeu sua relevância para as discussões religiosas da sua
época. trata do ceticismo nos Ensaios,
pode ser interpretado por duas diferentes leituras que se opõem. Em uma leitura, o seu ceticismo é visto como uma
defesa do cristianismo. Seria uma apologia
cética da religião cristã. No complexo diálogo que realiza com Sebond e
seus críticos, Montaigne, em sua
proposta inicial de defendê-lo, discursaria em prol da fé e da grandeza de Deus. Em outra leitura oposta, seu ceticismo
é interpretado como uma crítica à religião cristã, limitando-a à esfera do que
é meramente humano, ao pôr em dúvida a possibilidade de o homem obter o conhecimento de Deus através
razão, seu instrumento epistemológico natural.
Apesar dessa proposta inicial de Montaigne de defender a religião
tradicional, estes últimos intérpretes
leem a Apologia como um ensaio estritamente cético, como se seu objetivo primordial fosse, na realidade, demonstrar os
problemas e a fraqueza da religião cristã através de uma crítica profunda à capacidade da razão
humana de conhecer as coisas. Assim,
enquanto a primeira leitura apresenta um Montaigne comprometido com a
fé, a segunda evidencia os aspectos de
seu ceticismo mais ligados ao naturalismo ou ao paganismo.
[32]
In: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000202.pdf
Em apertada síntese, para que o leitor
possa entender com algum conhecimento de causa o que se diz a seguir, é a
história de dois filósofos, Stroibus e Pítias, que querem provar que todas as
essências humanas encontram-se nos bichos. Para desenvolver uma essência
qualquer, basta beber o sangue do animal escolhido. Assim, o rato faria o
ladrão; o pavão faria o enfatuado; o boi faria o paciente; a aranha faria o
músico, o geômetra, o sábio etc. Os dois beberam o sangue de rato e viraram
ladrões, foram presos e sacrificados com o mesmo processo que usaram para
sacrificar milhares de ratos para a sua experiência, isto é, através da
vivissecção, para estudos e proveito da própria humanidade. Tudo é válido em
prol da ciência, que, em meados do século XIX, passou a ser a deusa da verdade.
O ideal é mesmo você ler esse conto!
[33]
Também a ironia é um conceito controverso, pois além das possibilidades
textuais da ironia filosófica, o escritor ganhou maior sofisticação estética. A
ironia equilibrada entre dois discursos, um explícito e outro sugerido, levando
o leitor oscilar entre um sorriso ou a escancarada gargalhada. A ironia de
Machado de Assis está sempre voltada para as mazelas humanas e nasceu da
valoração da vida.
[34]
É possível afirmar que Machado de Assis criava teorias absurdas não apenas para
alfinetar ironicamente o cientificismo do século XIX, mas também demostrar o
caráter reificante da ciência. Esse método se dava através da satirização dos
procedimentos científicos, que não tinha o intuito de divertir a sociedade, mas
incomodá-la e também levá-la à reflexão sobre a maneira como a ciência estava
monopolizando à sociedade.