A etiologia da violência
As causas históricas e sociais da violência parecem estar relacionadas com o desenvolvimento da economia de produção, que desde o início acarretou mudança profunda nas estruturas sociais. A violência não está gravada na genética humana. Como mostram os estudos das sociedades humanas primitivas, quando confrontados com crises, uma comunidade é mais resiliente se for baseada em cooperação e apoio mútuo, em vez de individualismo e competição.
Nossa
imagem do ser humano pré-histórico selvagem e guerreiro, que persiste até os
dias atuais, na verdade, é um mito, criado na segunda metade do século XIX.
Pesquisas arqueológicas mostram que, na verdade, a violência coletiva surgiu com a sedentarização das comunidades e a transição de uma economia de predação para uma de produção.
As
causas históricas e sociais da violência
Embora,
atualmente, seja difícil avaliar a verdadeira extensão dos atos de violência na
pré-história – uma vez que a avaliação da importância desse fenômeno
provavelmente é qualificada pela situação das descobertas e dos estudos – é
possível propor algumas ideias.
Por um
lado, parece que o número de sítios pré-históricos em que foram observados atos
de violência é baixo em relação à extensão geográfica e à duração do período
considerado (vários 100 mil anos).
Por
outro lado, podemos concluir que, embora o comportamento violento em relação
aos outros seja antigo, a guerra nem sempre existiu.
Suas
origens parecem estar correlacionadas com o desenvolvimento da economia de
produção, que desde o início levou a uma mudança radical nas estruturas
sociais.
A violência
não está gravada em nossos genes. Seu surgimento tem causas históricas e
sociais – o conceito de “violência primordial (original)” é um mito.
A
guerra não é, portanto, inseparável da condição humana, mas sim o produto das
sociedades e das culturas que geram. Como mostram os estudos das sociedades
humanas primitivas, quando confrontados com crises, uma comunidade é mais
resiliente se for baseada em cooperação e apoio mútuo, em vez de individualismo
e competição.
Quanto
à realidade da vida de nossos antepassados, ela provavelmente está em algum
lugar entre duas visões – ambas míticas – a hobbesiana das Aubes cruelles
(Alvoradas cruéis, livro de poemas sobre a era pré-histórica do cientista e
escritor Henri-Jacques Proumen, 1879-1962), e a idade de ouro do florescimento
humano, imaginada pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau.
Os
levantamentos de opinião pública são unânimes: a violência é uma das maiores
preocupações da sociedade brasileira contemporânea.
Assistimos
a cenas de agressividade a todo momento, todos os dias, nas principais
metrópoles do país. Ficamos perplexos com a extensão do problema e mais ainda
com a constatação de que não sabemos como sair dele. A que se deve essa
situação tão grave, que ceifa tantas vidas e fere tantas pessoas, física, emocional
e moralmente?
A
ciência se debruça sobre essa questão, e revela um cisma de abordagem e de
interpretação entre os pesquisadores que atribuem a maior parte da “culpa” ao
ambiente e aqueles que responsabilizam a constituição biológica dos indivíduos.
No
primeiro grupo estão os que atribuem a causa dessa crise de violência às
condições de organização da sociedade: o abismo entre ricos e pobres, a falta
de oportunidades e de emprego para os jovens, as deficiências do sistema
educacional.
A
opinião pública tende a concordar com esse ponto de vista, reconhecendo a
inadequação vergonhosa de nossa sociedade partida. Mas há indícios de que
talvez não sejam esses os únicos fatores que desencadeiam a violência entre as
pessoas.
Detalhe
do cartaz do filme Laranja Mecânica, do norte-americano Stanley Kubrick
(1928-1999), adaptação do romance homônimo escrito pelo britânico Anthony
Burgess (1917-1993). Na trama, a gangue do protagonista Alex comete atos
violentos gratuitos por prazer.
A
mídia tem noticiado episódios de crueldade e agressão efetuados por jovens de
classe média ou alta, que vivem em condomínios elegantes.
Em
sociedades afluentes do hemisfério Norte, que em grande medida resolveram os
dilemas sociais acima mencionados, ocorrem também episódios de extrema
violência individual ou coletiva: atiradores suicidas, manifestantes violentos
em confronto com policiais idem, torcedores enlouquecidos com a derrota de seu
time. Essas manifestações de violência fazem supor que poderia haver
determinantes biológicos para a agressividade humana. Será verdade?
De
fato, essa é a opinião de um segundo grupo de cientistas, que têm acumulado
numerosas evidências em animais e sujeitos humanos, mostrando que estão no
próprio indivíduo os mecanismos básicos que determinam o comportamento
violento.
O
dilema não é novo, e tudo indica que a verdade está no meio do caminho. A
natureza oferece as bases do comportamento, que, no entanto, é modulado pelo
ambiente em constante variação.
Talvez
você, leitor, seja uma pessoa predisposta a comportamentos agressivos, quem
sabe um impulsivo. Mas caso seu ambiente familiar e social seja equilibrado e
pacífico, essa predisposição talvez permaneça silenciosa, controlada, ou não
passe da emissão de algumas palavras fortes em situações mais tensas.
Biologia,
cérebro e agressividade
A
agressão entre indivíduos é um comportamento social complexo que evoluiu entre
os animais no contexto da defesa e da obtenção de recursos para a sobrevivência
e a reprodução. Até os invertebrados, como as moscas-das-frutas tão estudadas
pelos geneticistas, exibem comportamentos de luta que servem para estabelecer
uma hierarquia social entre os machos.
Nos
vertebrados, nem se fala: a simples entrada de um intruso na gaiola de um casal
de camundongos dispara em segundos um ataque arrasador do macho residente.
Existe
uma determinação genética para esse tipo de comportamento agressivo, chamado
“reativo-explosivo”: é o que concluiu o grupo liderado pela pesquisadora Emilie
Rissman, da Escola de Medicina da Universidade da Virgínia, nos EUA. Rissman e
seu grupo analisaram a agressividade dos camundongos machos, em contraste com a
das fêmeas, usando animais geneticamente manipulados.
Puderam
concluir que a agressividade dos machos depende de pelo menos um gene situado
no cromossomo Y (chamado Sry), e a das fêmeas, de um outro gene (Sts),
localizado no cromossomo X.
Até aí
morreu Neves, como diriam os antigos. E o cérebro com isso? Importa saber se os
genes ativam mecanismos no cérebro, capazes de determinar comportamentos
agressivos.
A
resposta é afirmativa. Diferentes mecanismos moleculares estão envolvidos e
geralmente atuam na transmissão de informação entre neurônios, que emprega
moléculas neurotransmissoras, em particular aquela conhecida como serotonina.
A serotonina
é fabricada por neurônios situados em regiões mais baixas do cérebro, próximas
ao pescoço, cujas fibras ascendem às regiões superiores, inclusive o córtex
cerebral, formando circuitos cuja função é “controlar o gatilho” dos
comportamentos.
No córtex
e em outras regiões, a serotonina é reconhecida por proteínas receptoras
específicas posicionadas na superfície dos demais neurônios. Quando isso
ocorre, o córtex bloqueia os comportamentos agressivos que seriam disparados
pelas regiões mais baixas.
A
razão contém a emoção. Aprendemos a refrear nossos impulsos agressivos, em nome
da boa educação, do diálogo e da compreensão entre os seres humanos.
A
molécula da serotonina, envolvida na modulação dos mecanismos cerebrais que
determinam o comportamento agressivo.
Só que
nem sempre é assim. Em camundongos, por exemplo, os mais agressivos apresentam
baixas concentrações de serotonina no cérebro. Faz sentido: com pouca
serotonina, o córtex não consegue refrear o ataque. Além disso, sempre que são
tratados com drogas que interferem na síntese, transporte ou eliminação da
serotonina, ocorrem alterações no comportamento agressivo: ficam mais plácidos
ou mais agressivos, dependendo do tratamento que receberam.
As
proteínas receptoras que reconhecem a serotonina foram identificadas com a
participação de um grupo brasileiro liderado pela neurocientista Rosa de
Almeida, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo, Rio Grande
do Sul.
O
envolvimento da serotonina com a agressividade dos camundongos tem uma
contrapartida humana. Pessoas violentas apresentam baixos teores de serotonina
no cérebro, nas mesmas regiões associadas à agressividade dos animais.
Além disso, há muito os psiquiatras tratam os psicopatas e as pessoas muito agressivas com medicamentos análogos da serotonina, e outros que aumentam a sua presença nas sinapses.
O
ambiente social entra em cena
Portanto,
há algo de biológico e cerebral na determinação do comportamento agressivo dos
animais e dos seres humanos. Mas falta definir um elo fundamental para
incorporar à análise das causas da violência humana: o papel modulador do
ambiente. Será possível mostrar que as condições do meio influenciam a
agressividade das pessoas através da modulação dos mecanismos cerebrais?
Algumas
equipes de neurocientistas se debruçaram sobre esse aspecto, mas os resultados
ainda são contraditórios. Uma primeira tentativa foi relatada em 2002 por um
grupo de pesquisadores de diversos países, liderado por Avshalom Caspi, do
Instituto de Psiquiatria do King’s College, em Londres.
O
grupo analisou a presença de genes que produzem certas proteínas (enzimas)
desativadoras de neurotransmissores cerebrais, em um grande número de
indivíduos que sofreram maus-tratos quando crianças, em comparação com outros
com experiências menos sofridas.
Além
disso, correlacionaram os dados com o perfil de personalidade e a história de
vida de cada um, identificando aqueles que haviam cometido transgressões com
violência.
Os
pesquisadores verificaram que os indivíduos transgressores eram justamente os
que haviam sofrido maus tratos quando crianças e, além disso, tinham uma
configuração genética que produzia baixas taxas das enzimas cerebrais.
O
resultado não foi confirmado por outros pesquisadores, mas é sugestivo de que o
caminho pode ser esse. Mais recentemente, outro grupo verificou que a exposição
a filmes violentos na TV influi negativamente sobre a ativação do lobo frontal,
região cerebral que atua em comportamentos agressivos.
Pode-se
concluir que um ambiente social violento e transgressor influencia fortemente
aqueles indivíduos cujo perfil genético os torna suscetíveis a desenvolver
comportamentos agressivos inapropriados, resultando em alterações cerebrais nas
regiões que normalmente regulam esses comportamentos. Dirão os céticos: e daí?
O que
importa é reformular a sociedade, pois é essa a ação mais eficaz para
beneficiar a maioria, evitando a expressão dos comportamentos agressivos.
Certo. Mas há muito mais água embaixo da ponte. Os juristas, por exemplo,
buscam diferenciar os comportamentos agressivos evitáveis daqueles inevitáveis.
A
atribuição de culpa criminal depende da diferenciação precisa entre a
agressividade “normal” e a agressividade patológica.
A
realidade não é simples, e o conhecimento científico de seus meandros é que
permite lidar com cada caso da maneira mais justa: condenação ou tratamento?
Prisão ou hospitalização?
Nesse campo da violência, qualquer deslize pode causar uma violência ainda maior.
Referências
A.
Caspi e colaboradores (2002) Role of genotype in the cycle of violence in
maltreated children. Science, vol. 297: pp. 851-854.
J.D.
Gatewood e colaboradores (2006) Sex chromosome complement and gonadal sex
influence aggressive and parental behaviors in mice. Journal of Neuroscience,
vol. 26: pp. 2335-2342.
K.A.
Miczek, R.M.M. de Almeida e colaboradores (2007) Neurobiology of escalated
aggression and violence. Journal of Neuroscience, vol. 27: pp. 11803.
R.J. Nelson e B.C. Trainor (2007) Neural mechanisms of aggression. Nature Reviews. Neuroscience, vol. 8: pp. 536-546.