A descriminalização do aborto no Brasil e a ADPF 442

É necessário conhecer a teoria de Ronald Dworkin para entender a estrutura do ordenamento jurídico e também sua interpretação. A guisa da descriminalização do aborto de fetos anencefálicos, também se discute através da ADPF 442 a descriminalização do aborto no Brasil. A proposta da interpretação construtiva deve constituir a melhor justificativa para as práticas judiciais contemporâneas por meio de uma interpretação e, ainda promover a real justiça e a aplicação da equidade em hard cases. É curial lembrar que o conceito de segurança jurídica incorpora em seu bojo os conceitos fundamentais para vida civilizada, como continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre as situações anteriormente controvertidas.

Fonte: Gisele Leite e Dionísio E. Souza Gomes

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Foi diante da propositura da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 que almeja conseguir a descriminalização do aborto, surgiu acirrado debate sobre o tema, enfrentando um vetusto tabu presente na sociedade brasileira. E, abeberando-se na doutrina de Ronald Dworkin que pretende demonstrar que caso decida-se pela não recepção do tipo penal em atenção, o STF terá afirmando sua plena legitimidade para o feito.

Dworkin criou a ideia do juiz-modelo, um juiz-filósofo e que apelidou de Hércules a quem atribuiu potenciais extraordinários para construir sua discussão sobre a força imperativa de sua atividade aplicativa. Trata-se de uma criação importante, assim como o rei-filósofo o é na teoria política platônica, ou como a posição original o é na teoria de John Ralws, como referencial metafórico do discurso, para plasmar a prática judicial onde predomina a prudência, no momento da decisão, na medida em que este juiz Hércules é incorruptível, na medida em que não se curva a argumentos políticos, na medida em que age com correção na avaliação dos princípios a serem aplicados aos casos concretos.

Hércules é aquele herói que consagra toda a força da própria  reflexão sobre a equidade levada adiante por Dworkin ("Hércules concluirá que sua  doutrina da equidade oferece a única explicação adequada da prática do precedente em  sua totalidade"), e, exatamente por isso, não segue teorias clássicas da decisão judicial,  mas sim a ideia de que, ao aplicar o direito, age como a lei ou precedente exigem, embora  tomando suas decisões com convicção pessoal, sem que estas tenham força independente  dos argumentos racionais utilizados para justificar o raciocínio judicial utilizado em cada  caso concreto. Hércules é o símbolo da união entre teoria e prática jurídicas.

Este juiz-ideal plasma todas as características necessárias para Dworkin argumentar com liberdade como seria se..., facultando a que a hipótese de trabalho esteja recoberta por uma práxis inventiva e coerente, por isso isenta dos aspectos mais comezinhos da atividade judicial real e corriqueira dos tribunais.

Conveniente lembrar que o objeto da ADPF é evitar ou reparar a lesão a um preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, trata-se de arguição autônoma. E, tais espécies são duas, a saber: a arguição preventiva que evita a lesão e, a repressiva, que visar reparar a lesão. 

Além de ser utilizada em casos de descumprimento de preceito fundamental, a ADPF também é considerada um instrumento de ação subsidiário, residual, pois, via de regra, quando não couber uma ADI, ADC ou qualquer outro mecanismo de controle concentrado, pode ser utilizada a ADPF.

Ao analisarmos a ADPF 442 e seu impacto em caso de seu deferimento, verifica-se que os casos previstos no Código Penal brasileiro vigente, em seus artigos 124 e 128, são excepcionadas apenas duas situações para o aborto, a saber: o risco de vida da gestante e o estupro, em vigor desde 1940.

Já em 2012 houve a descriminalização da interrupção da gravidez (aborto), decidida pelo Supremo Tribunal Federal, por 8 (oito) votos a 2 (dois), em casos de fetos anencéfalos[1], por meio da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), baseando a tese nos seguintes itens:

i) dignidade da pessoa humana; ii) autonomia da vontade; iii) direito à saúde; e iv) interpretação do Código Penal conforme a Constituição Federal. E, finalmente, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que trata da legalização do aborto até a 4ª (quarta) semana, protocolizada pelo partido PSOL, que se  posiciona no seguinte sentido: a) os seres humanos não nascidos, não seriam pessoas constitucionais, mas simples criaturas humanas intrauterina; b) ainda que os seres humanos não nascidos tivessem direitos fundamentais, nem sempre o direito à vida deveria prevalecer em caso de colisão com uma série de direitos fundamentais das  mulheres, como a autonomia, a liberdade, a dignidade, o direito ao planejamento familiar, entre outros.

A ADPF 442 que, proposta pelo PSOL em 2017, pretende a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação. Esta arguição de descumprimento de preceito fundamental pode ser pautada para julgamento em 2022 pelo Supremo Tribunal Federal. O presente debate sobre o tema pelos profissionais do direito afigura-se, assim, propício e crucial, de modo a dar respaldo à Suprema Corte em uma matéria extremamente polêmica.

A OMS estima que no Brasil 31% dos casos de gravidez terminam em abortamento (aproximadamente três para cada dez mulheres grávidas abortam). De acordo com o Ministério da Saúde, todos os anos ocorrem cerca de 1,4 milhão de abortamentos espontâneos e ou inseguros, com uma taxa de 3,7 abortos para 100 mulheres de 15 a 49 anos.

Em 1991, surgiu um Projeto de Lei de nº20, que buscou a legalização do aborto realizado pelo Sistema Único de Saúde - SUS. Em contrapartida foi criado um projeto de emenda constitucional, PEC25AJ95, que pretendeu incluir no texto constitucional o direito à vida “desde a sua concepção”. Tal tentativa não teve êxito, visto que de 524 deputados, apenas 32 foram favoráveis.

A primeira controvérsia que se apresenta é saber se o STF pode atuar nessa questão, quando se questiona a legitimidade para decidir sobre o tema. Afinal, os doutos Ministros do STF, indicados pelo Presidente da República e que não são eleitos pelo povo estão aptos a dar a palavra final sobre uma questão essencialmente moral (além de jurídica) como a do aborto?

Discute-se que o direito ao aborto seria derivativo diretamente do texto constitucional vigente e, a possibilidade de os magistrados da Suprema Corte brasileira virem em atividade hermenêutica, criá-lo, o que para os críticos traça uma leitura muito antidemocrática.

Importante salientar que a jurisprudência prevalente do STJ vem reconhecendo os nascituros como sujeitos de direito, apesar de que o artigo 2º do Código Civil vigente afirme que a personalidade civil começa com o nascimento com vida, mas a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem reconhecidos direitos aos que ainda não são nascidos.

Ronald Dworkin respondendo acerca do conceito de democracia afirmou que a democracia albergada por Constituições tais como a norte-americana e a brasileira não é essencialmente estatística, procedimental, mas sim, substancial. E, democracia, na dicção do doutrinador estadunidense´, não é mero governo da maioria, mas significa que há três princípios ou condições que devam ser assegurados.

O primeiro princípio é o da participação que aponta que numa democracia legítima é necessário garantir a todo e qualquer cidadão a possibilidade de ter um papel na tomada de decisões políticas[2], de fazer a diferença no direcionamento das ações desse agente moral autônoma.

Isso é indispensável para exista uma unidade de responsabilidade, porque ninguém se sente parte ou integrante numa ação coletiva, caso não tenha a real capacidade de influir nesta.

A referida participação deve então ser garantida inertemente de juízos sobre o merecimento, classe social, talento ou habilidade da pessoa e, ainda, envolve o direito não somente ao voto, mas também a voz.

O segundo princípio democrático citado por Dworkin é the principle of stake (princípio da aposta). De fato, um Estado que todos possuem o direito ao voto e à voz, está em plena democracia estatística e, pode, ainda assim, ser arrebato pela vã tirania da maioria, privando as minorias, sistematicamente, da justiça social.

Prosseguiu o doutrinador norte-americano que democracia "means government both by and for the people"(significa governo pelo e para o povo). Não olvidemos que o conceito comunitário do regime democrático não pode se restringir apenas às garantias procedimentais, à participação política e deve ainda adicionar a justiça[3] substancial.

Aliás, a partir da obra “Taking rights seriously”, de Ronald Dworkin, cabe enfatizar a existência de parâmetros para o desenvolvimento prático-judicial da justiça, sendo fruto da criação interpretativa. E, nessa se inscrevem a ideia de razoabilidade e coerência, na perspectiva de uma discussão de princípios, o que nos leva a debater a abertura dos juízos de decisão jurídica e, até do próprio conceito de Direito.

Assim, reacendemos o debate sobre as fragilidades do positivismo, automaticamente, Dworkin reacende a chama que o faz colocar-se também em face do jusnaturalismo e do pragmatismo. Abrindo espaço de interlocução que terá fértil terreno para haver trocas intelectuais com Neil MacCormick, Jürgen Habermas e John Ralws.

Realmente Dworkin enfatizou tal noção de democracia, comunitária e por iguais, exige reciprocidade. Se uma pessoa não for parte da comunidade, dividindo responsabilidades, a menos que seja tratada por todos, como um igual membro do grupo.

Portanto, o impacto das decisões políticas do povo pode causar resultados na vida e nos interesses de cada cidadão e, deve, sem distinção ser seriamente levado em conta para o sucesso geral da ação coletiva.

Frisou-se sobre o igual respeito e preocupação em cada cidadão como condição para existir genuína democracia, e nisso se pauta a distinção da democracia estatística para a democracia comunitária e substancial.

O derradeiro princípio apontado por Dworkin é o princípio da independência. A exigência de independência ética e moral dos membros da comunidade é o que distingue uma democracia comunitária de um governo totalitário. E, consiste em afirmar, que primeiramente, que uma democracia genuína deve criar os incentivos e condições propícias para que os cidadãos construam suas próprias convicções e reflexões sobre temas da política, ética e moral.

Com tal princípio almeja-se vedar é que a comunidade, por outro meio que não o legítimo debate argumentativo, intente mudar as convicções de um cidadão. E, o uso de meios coercitivos ou obscuros para incutir na pessoa uma moral comunitária que fara da ação coletiva um pleno totalitarismo.

Por conta do espectro do princípio da independência, não apenas procura-se incentivar que a pessoa tenha suas próprias reflexões, mas igualmente em assegurar que possa viver sob estas. E, por vezes, o ter concepções autônomas de ética e moral e o agir conforme estas, são coisas tão umbilicalmente relacionadas que pretender dissociá-las seria consagrar uma independência meramente artificial e infrutífera.

O doutrinador Dworkin apontou importantes consequências dessa derradeira afirmação e, extrai desta que uma certa dose de tolerância liberal faz parte do conceito de democracia, é a condição de uma concepção substantiva. Assim, reconhecemos que existem áreas em que decisões estão tão firmemente ligadas aos julgamentos subjetivos pessoais que subtraí-las da esfera privada, impondo concepções comunitárias, seria negar a própria existência da pessoa enquanto sujeito ético e, assim, excluí-lo da comunidade democrática.

Com a decisão sobre a anencefalia na ADPF 54, o Supremo acrescentou mais uma exceção de descriminalização do aborto, conforme disposto nos artigos 124 a 128 do Código Penal. Aliás, mais do que isso, pois a maioria não considerou tratar-se de aborto, pois ali não havia vida.

O principal argumento do Supremo Tribunal Federal para autorizar a prática do aborto (ou “a interrupção da gestação”, termo utilizado pela maioria dos Ministros do STF) foi a impossibilidade de sobrevida do feto fora do útero, apesar de dados diferentes apresentados pela comunidade científica. Ou seja, não existe vida possível no caso de anencefalia.

Assim entendeu a Suprema Corte brasileira. A fundamentação é que a anencefalia é uma grave malformação fetal que resulta da falha do fechamento do tubo neural (a estrutura que dá origem ao cérebro e a medula espinhal).

Naquela oportunidade, alguns Ministros assim votaram: “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. Anencefalia é incompatível com a vida” (Ministro relator Marco Aurélio).

O Supremo Tribunal Federal sempre procurou ressaltar que a Corte não estava autorizando práticas abortivas, mas sim dando à mulher a possibilidade de escolher ou não sobre a interrupção da gravidez em caso de anencefalia[4].

De modo contrário, sustentou o então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso: “No caso de extermínio do anencéfalo encena-se a atuação avassaladora do ser poderoso superior que, detentor de toda força, infringe a pena de morte a um incapaz de prescindir à agressão e de esboçar-lhe qualquer defesa”.

Nota-se que o Supremo Tribunal Federal entendeu não se tratar de aborto.  A maioria dos Ministros que julgaram a matéria disseram que não havia vida ou possibilidade de vida, portanto não haveria o aborto.

Logo, não pode ser procedente para o julgamento da ADPF 442, que não trata de feto com má formação ou sem vida, como na anencefalia. Aqui, ao contrário, são fetos normais de até 12 (doze) semanas de vida.

Da mesma forma, houve outro precedente que é a ADI 3510, citado na ADPF 442 e não guarda qualquer semelhança com o aborto, pois naquela actio que tramitou por oito anos, discutiu-se sobre os embriões que nunca seriam implantados no útero materno, isto é, muito distante de ser embriões saudáveis no curso da gravidez natural, conforme se discute na ADPF 442.

Em síntese, não servem os precedentes para o deslinde da ADI 3510 e, muito menos a ADPF 54, pois o STF afirmou não existir a probabilidade de via nessas situações. E, por conta dessa impossibilidade de ser entendidos por precedentes, o caso da anencefalia e dos embriões.

A ideia principal é, portanto, descriminalizar o aborto cometido até a décima-segunda semana de gravidez e, na audiência pública convocada pela Ministra Rosa Weber, relatora do caso, centrou-se na possibilidade de recepção ou não pela Constituição Federal brasileira de 1988, dos artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro vigente.

Conveniente é recordar as teses defensivas da professora Débora Diniz sobre a ADPF 442 que expôs em audiência pública no STF em agosto de 2018, sustenta que a pesquisa realizada no Brasil, onde 86% dos consultados são contra o aborto, não contém erro de amostras, nem de coleta de dados, mas de pergunta. Diz que se trata de pergunta inquisitorial e centra o seu raciocínio no fato que a lei penal ameaça de prisão as mulheres.

Cogita, ainda, na possibilidade de prisão de milhões de mulheres por prática de aborto. Afirma, por fim, que o Código Penal brasileiro é ultrapassado e que deve prevalecer a Constituição Federal de 1988 para a elucidação desta matéria.

O ataque proferido pela Professora Débora Diniz sobre a ameaça da lei penal relativa ao aborto não deve subsistir. O ataque ao Código Penal fere a própria democracia. Não existe sistema democrático sem regras e princípios que normatizem juridicamente a vida em sociedade. Há mais de trinta anos que todos os tribunais do país, incluindo o Supremo Tribunal Federal, decidiram pela recepção do Código Penal.

Se assim não fosse, poder-se-ia praticar qualquer tipo de barbárie. A norma penal tem como uma de suas finalidades, justamente, coibir a criminalidade. A ideia das leis penais é justamente essa, a tipicidade é o perfeito enquadramento do fato com a norma penal incriminadora. Com isso, o legislador quer que não ocorram crimes, inclusive o aborto, excetuando a forma permissiva.

Afinal, quando o legislador tipificar um crime, e impor a respectiva pena, o objetivo deste é justamente esse, que não se cometa o crime ou crimes, e então passamos entender o conceito de antijuridicidade, que é o fato cometido contra a norma penal incriminadora.

Em sendo transgredida qualquer das normas penais incriminadoras, a pessoa responderá dentro dos exatos termos da lei penal. Sendo relevante ressaltar que o Código Penal brasileiro vigente, está em consonância com a vigente Constituição Federal brasileira.

Conveniente sublinhar que a pena estipulada no Código Penal de 1940 atualmente não leva para a cadeia como suscitado. O artigo 124 do Código Penal, no caso de aborto voluntário da mulher, tem como pena a detenção de 1 (um) a 3 (três) anos.

Ou seja, em 1940 poderia ter consequências, mas atualmente, com a Lei 9.099/1995, que trouxe os institutos da transação penal[5], suspensão condicional do processo e muitas outras penas alternativas, isso não acontecerá. Com certeza, a prisão poderá se dar por outros fatos criminosos, mas não somente pelo aborto.

Se o questionamento deve indagar sobre a possibilidade de prisão dos que cometem aborto é outra pergunta, já respondida anteriormente. Assim torna-se mais fácil defender a descriminalização do aborto sob o argumento da prisão do que o aborto em si, pois essa tem a repulsa de quase todo o país. Conclui-se que o enfoque de descriminalizar é muito melhor e mais palatável do que o enfrentamento puro e simples do tema sobre o aborto.

Exemplificando: se uma estrada está bloqueada, o motorista deve procurar outra via desobstruída para alcançar o seu intento. É mais fácil defender a tese da descriminalização do aborto, sob o prisma que tantas milhões de pessoas irão para a cadeia, a manter o sistema penal vigente.

Em resumo, em matéria de decisions of personal commitments, o princípio da independência, ao ver do doutrinador norte-americano, viria a objetar legislações moralizadoras, ainda quando estas deixem espaço para que os cidadãos pensem o que quiserem contanto que façam o que lei recomenda positivamente.

Enfim, as condições de Dworkin para haver uma legítima democracia e, serve para considerar uma posição fundamental, ainda que assimilada como típico freio contramajoritário, seria, em verdade constituinte de uma democracia genuína.

E, para o referido doutrinador quando estes princípios estiverem sendo ameaçados, quando estas condições estiverem em jogo, não poderá haver dúvida, os juízes são dotados não apenas de competência, mas também de legitimidade democrática para afirmar tais direitos contra a vontade majoritária. Ao aplicar tais posições jusfundamentais contra a maioria, a Suprema Corte não viola a democracia, antes reafirma-a.

Questiona-se se a criminalização do aborto ofende ou não algumas dessas condições à uma genuína democracia. E, porém, questão prévia a essa é a de saber como STF deve interpretar a Constituição nessa missão.

E, para Dworkin a democracia harmônica com a concepção da democracia comunitária é aquela em que os juízes devem decidir as questões de moral de forma coordenada, com base nos princípios que estão na Constituição, caracterizam a comunidade, como se fosse uma única pessoa a decidir, isto é, o povo.

A decisão judicial deve, assim, ter sempre um poder explicativo geral sobre a estrutura e história constitucional e a prática jurídica da comunidade, mantendo uma visão singular e coerente de justiça e equidade.

Eis que, para elucidar a atitude interpretativa esperada do guardião da Constituição em um Estado democrático, o autor lança mão de uma analogia. Trata-se da figura do romance em cadeia. Dworkin concebe a hipótese de um grupo de romancistas que escreve um romance em série, em que cada um deve interpretar os capítulos anteriores e dar continuidade à obra. Eles devem criar um romance[6] com a melhor qualidade possível, como se fosse empreendimento de um único autor.

Quando um romancista recebe os capítulos anteriores, a interpretação que ele deve adotar, para então dar continuidade, deve possuir um poder explicativo geral e fluir ao longo do texto.

Se ele gostaria que fosse dado determinado caminho à história, mas ao receber o texto entende que aquela interpretação seria incompatível com o que já foi escrito, deve abandonar a empreitada, e adotar outra interpretação que tenha compatibilidade com o conjunto da obra.

Por outro lado, que mais de uma interpretação se ajusta ao contexto legal, deverá fazer um juízo acerca de qual agregaria mais propriamente à obra. Não há total liberdade criativa para cada romancista e nem coerção mecânica. Haverá liberdade de criação se comparar sua tarefa com a do tradutor de um texto em língua alienígena.

É similar a tarefa interpretativa do julgador[7] pois como autores, estão escrevendo com sua decisão judicial, um capítulo de obra conjunta consistente na história institucional da comunidade integral. E, sua contribuição deverá se encaixar, fazer sentido, quando a história é lida como um todo.

Ainda analisando os precedentes da Suprema Corte acerca do tema (HC 84.025; ADI 3.510; ADPF 54; HC 124.306), se extrai facilmente que, de forma coordenada e harmônica, o “povo” enuncia e dá especial ênfase ao princípio da autodeterminação da mulher em detrimento da vida do feto. Exige-se, assim, que siga neste caminho, caso, é claro, adotada a integridade hermenêutica, constrição à atitude interpretativa aventada por Dworkin.

O que se retira destas decisões judiciais é que, ao ver do STF, ao longo de anos de prática jurídica coerente, a criminalização do aborto ofende o princípio da independência.

Porque ao negar à mulher a condição de sujeito ético e político, ao obstar-lhe a tomada de uma decisão profundamente pessoal, que diz respeito ao seu próprio corpo e ao seu projeto de vida. A título de exemplo, destaca-se passagens dos pronunciamentos judiciais supracitados:

           “A criminalização viola, em primeiro lugar, a autonomia da mulher, que corresponde ao núcleo essencial da liberdade individual, protegida pela dignidade humana [...] a autonomia expressa a autodeterminação das pessoas, isto é, o direito de fazerem suas escolhas existenciais básicas e de tomarem as próprias decisões morais a propósito do rumo de sua vida [...]

 Quando se trate de uma mulher, um aspecto central de sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez.

Como pode o Estado – isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito – impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?” (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília, DF, 12 de abril de 2012. Diário da Justiça Eletrônico, n. 80, 30 abr. 2013)

[...] a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções [...], no entanto, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma” (Habeas Corpus nº 124.306. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília, DF, 29 de novembro de 2016)

[...] “cabe a cada pessoa, e não ao Estado ou a qualquer outra instituição pública ou privada, o poder de decidir os rumos de sua própria vida [...] esta é uma ideia essencial ao princípio da dignidade humana” (Habeas Corpus nº 84.025/RJ, Relator: Min. Joaquim Barbosa. Brasília, DF, 04 de março de 2004. Diário da Justiça, Brasília, DF, 18 mar. 2004)”.

Conforme menciona a inicial da ADPF 442 que a criminalização do aborto ofende o principle of stake, ou se escolha. O que impõe a mulher uma concepção moral coletiva e cujos efeitos deletérios são suportados integralmente pela mulher, e principalmente pelas menos abastadas economicamente.

E, diante de uma indesejada gravidez, as mulheres têm a dolorosa escolha entre interromper seus estudos, trabalho, sua vida ou, se submeter a procedimentos clandestinos e perigosos e cuja precariedade é sempre sensível, principalmente para as mulheres pobres, colocando-as em risco d vida. Ao impor a gestão às mulheres da comunidade democrática, erra-se em dispensar-lhes igual respeito e consideração.

Diante das premissas sugeridas de se ter o direito ao aborto seguro e gratuito, erige-se, portanto, como indicam os precedentes do STF, em condição para uma democracia genuína, para a afirmação da mulher enquanto um ser igual e livre membro da comunidade democrática. E, assim, antes de atentar contra a democracia, a Suprema Corte, caso decida pela não recepção do tipo penal em questão, estará enfim afirmando-a.

Qual o limite da competência do Supremo Tribunal Federal para normatizar esse tipo de matéria? E a legitimidade da criação do direito pela jurisdição constitucional? E quais seriam as técnicas decisórias para a superação de omissões constitucionais? Ou a interpretação será “conforme” a Constituição, analisando o pedido de recepção do Código Penal, em seus artigos 124 a 126.

Caso o entendimento fosse de omissão, como sugere a petição inicial da ADPF 442, pois quer que o Supremo Tribunal Federal legisle, ao acrescentar a descriminalização do aborto até a 4ª (quarta) semana de gravidez, matéria sem precedência no Brasil, estaríamos diante de uma sentença aditiva e não, simplesmente, interpretação constitucional admissível conforme a lei. Trata-se de estado de omissão inconstitucional (lacunas normativas que produzem resultados normativos inconstitucionais).

In casu, para que isso ocorra, o Supremo Tribunal Federal tem que assumir a posição de legislador positivo e deve se observar o princípio democrático e a independência dos poderes, evitando, assim, o ativismo judicial que tanto prejudica a relação entre poderes na insipiente república pátria. Em suma, o que se pleiteia é inserir, no rol das exceções relativas ao aborto, a descriminalização, até a 12ª semana de gravidez.

O termo utilizado na interpretação, “conforme a Constituição”, é inconsistente juridicamente. Nesse sentido, Ademar Borges apud Neto, em artigo onde fala sobre a possibilidade de o STF atuar como legislador positivo, destaca: Ocorre que o problema não está em saber se a interpretação conforme permite ou não a produção de novas normas jurídicas.

Evidente que não permite. O problema real consiste em definir, em cada caso, se o pedido apresentado para o STF atue como legislador[8] positivo deve ou não ser admitido à luz da ordem jurídica constitucional. (...) O importante é verificar se o Supremo deve ou não assumir a função de legislador.

A norma jurídica é o resultado da interpretação de um texto legal, ou seja, texto e norma não se confundem, porquanto esta decorre da atividade sobre aquele. O ex-Ministro Eros Roberto Grau diz: “a norma é o resultado da tarefa de interpretação.  Equivale afirmar: o significado da norma é produzido pelo intérprete. Por isso dizemos que as disposições, os enunciados, os textos nada dizem o que os intérpretes dizem que eles dizem”.

Os doutrinadores debruçaram sobre esse tema[9], sendo que a divisão das normas em regras e princípios partem de Ronald Dworkin e Robert Alexy.

Para Ronald Dworkin as regras e princípios são semelhantes, tendo em vista que as duas espécies normativas estabelecem obrigações jurídicas. As diferenças, contudo, não seriam os graus – maiores ou menores – de vagueza da disposição, os tipos de diretivas apresentados por cada espécie.

Ainda, segundo Dworkin[10], as regras diferem dos princípios, pois “as regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então a regra é válida, e, neste caso, a resposta que ela fornece deve ser aceita ou não é válida, e, neste caso, nada contribui para a decisão”.

Se houver conflito entre regras, então uma delas não pode ser válida e a “decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras”. A solução para o conflito, portanto, deverá considerar os critérios clássicos de solução de antinomias, ou seja, hierarquia, especialidade, cronologia.

Os princípios “possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (...), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um”.

Os conflitos entre princípios não são resolvidos colocando um como exceção do outro, mas com a realização de um confronto de pesos entre normas.

Os princípios constituem comandos de otimização, caracterizados pela possibilidade de satisfação em graus variados, além de que a medida jurídica de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Nota-se que Robert Alexy afirma que os princípios constituem comandos de otimização caracterizados pela possibilidade de satisfação de graus variados. E, ainda afirmou, que a medida jurídica de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. Relata, ainda, que as possibilidades jurídicas são determinadas pelos princípios e regras colidentes[11].

Esse ponto é importante para o deslinde do caso em debate, pois não existem regras colidentes no presente caso. No Código Penal, estão inseridos os artigos que tratam do aborto, nos 124 ao 128, sem qualquer conflito entre regras

As regras são normas que estão satisfeitas ou não satisfeitas. Se a regra é válida, então deve se fazer exatamente aquilo que ela determina, nem além, nem aquém. Destarte, as regras são dotadas de determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível.

Os princípios aqui mencionados são direitos fundamentais, cláusulas pétreas e limitadores do poder político. Com isso, visa-se estabelecer determinados direitos e garantias que são protegidos das alterações legislativas, apesar de passíveis de mudança, preservando a sua essência, o seu núcleo.

 Se a pena para a mulher que comete aborto é de detenção de um a três anos, ainda que condenada, não irá para a cadeia, pois hoje existem os cumprimentos de penas alternativas, além da suspensão condicional da pena, entre outras possibilidades (excepcionando-se as reincidentes).

Diante do exposto, a ADPF 442 alguns defendem que deve ser julgada improcedente, pois a Lei 9.882 de 3 de dezembro de 1999 tem como objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.

As regras e princípios estão dentro da perfeita legalidade constitucional e infraconstitucional, não necessitando de qualquer intervenção do Supremo Tribunal Federal nem para interpretar conforme a Constituição, nem para legislar e normatização possíveis situações de omissão dentro do ordenamento jurídico.

A questão é bastante complexa[12], mas deve-se ter em mente a preservação da dignidade da pessoa humana para se interpretar as normas conforme a Constituição e, enfim, propiciar a maior justiça que possível.

Referências

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem jurídica. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Dworkin e a Razoabilidade da Justiça. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. volume 100. p.317-334. janeiro/dezembro de 2005.

BUENO, Roberto. Dos critérios de justiça em Dworkin e Ralws. Revista de Direito Constitucional e Internacional, Instituto Brasileiro e Direito Constitucional, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 171-182, jul.-set., 2002.

BONFIM, Marcos. A descriminalização do aborto pela via judicial no Brasil: A ADPF 442 e a legitimidade democrática do STF para decidir sobre a questão. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1765/A+descriminaliza%C3%A7%C3%A3o+do+aborto+pela+via+judicial+no+Brasil%3A+a+ADPF+442+e+a+legitimidade+democr%C3%A1tica+do+STF+para+decidir+sobre+a+quest%C3%A3o Acesso em 8.8.2023.

BORGES Ademar. O STF pode atuar como legislador positivo? Disponível em: . Acesso em:8.8.2023.

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Notas:

[1]  A justificativa principal para não punir a gestante é que o feto inevitavelmente terá morte prematura, pois possui uma condição incompatível com a vida. Não há possibilidade alguma de que ele viva fora do útero. Como o feto sem cérebro é incapaz de sentir dor, antecipar sua morte não o prejudica de modo algum. Na anencefalia, a inexistência das estruturas cerebrais (hemisférios e córtex) provoca a ausência de todas as funções superiores do sistema nervoso central. Estas funções têm a ver com a existência da consciência e implicam na cognição, percepção, comunicação, afetividade e emotividade, ou seja, aquelas características que são a expressão da identidade humana. Há apenas uma efêmera preservação de funções vegetativas que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e as dependentes da medula espinhal. Esta situação neurológica corresponde aos critérios de morte neocortical (high brain criterion), enquanto que, a abolição completa da função encefálica define a morte cerebral ou encefálica (whole brain critério).

[2] No debate entre juridicização da política e politização da justiça, Dworkin estaria entre aqueles que não advogam nem uma coisa nem outra, mas muito menos apela para a típica atitude positivista negadora dos laços recíprocos entre direito e política, assim como entre direito e moral.

[3] A justiça não pode ser construída fora da linguagem. Este é um dado inegável para a reflexão jusfilosófica que assume problematizar a interpretação na esfera das práticas jurídicas. Não por outro motivo, o Direito não é visto como uma investigação, especialmente no processo, que reconstrói dados do passado, como um historiador o faria, mas sim um tipo de atitude investigativa sobre a realidade que realiza interpretações sobre fatos ocorridos e juridicamente relevantes, dentro de um contexto decisório.

[4] Pela primeira vez na seara jurisdicional, foi debatido perante o Supremo Tribunal Federal a questão acerca da permissão da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, onde uma gestante pretendia a interrupção de uma gravidez, em razão do diagnóstico de ausência de crânio. Foi concedida uma liminar pelo Ministro Marco Aurélio de Melo, autorizando tal prática. Posteriormente tal liminar foi revogada pelo Plenário da Corte, a qual nunca julgou o mérito da causa, porém posicionando-se através de uma questão preliminar, onde destacou que ao tratar da interrupção, sendo o feto anencéfalo, não estaria se configurando como aborto, já que não havia chance de vida extra-uterina. Sobre este tema, o Ministro Joaquim Barbosa posicionou-se da seguinte maneira: "O que eu tenho a lamentar é que uma violência dessa natureza tenha sido cometida por força de uma decisão judicial" completou ainda, que "o Tribunal, por força de procedimentos postergatórios típicos da prática jurisdicional brasileira, perdeu a grande oportunidade de examinar uma questão de profundo impacto na sociedade brasileira".

[5] A transação penal (art. 76): cuida-se de um acordo elaborado entre o Ministério Público e o autor do fato, em que a acusação formula ao agente uma proposta de aplicação imediata de pena alternativa e, com isso, propõe-se a não processá-lo formalmente — se a medida for aceita, pelo investigado e seu advogado, e devidamente cumprida, dar-se-á a extinção da punibilidade; A suspensão condicional do processo (art. 89): trata-se de um acordo entre Ministério Público (ou querelante) e o réu, por meio do qual se propõe a suspensão do processo penal, logo em seu nascedouro, mediante o cumprimento de algumas condições previamente definidas, durante certo tempo, ao término do qual se extingue a punibilidade. A composição civil extintiva da punibilidade e a transação penal apenas podem ser aplicadas em infrações de menor potencial ofensivo, ao passo que a suspensão condicional do processo, aos crimes cuja pena mínima não exceda um ano.

[6] Dworkin, a partir de uma analogia com a ideia de escritura de um romance  compartilhada entre vários autores ("Gostaria agora de comparar o desenvolvimento do  Direito à elaboração desse, digamos, romance em cadeia"),  não acredita que os juízes,  mesmo em caso difíceis (hard cases), estejam autorizados a criar, e simplesmente criar,  direito novo, na medida em que ao agirem, o fazem de acordo com uma tradição, pois  tomam o romance já pré-escrito, em parte, com a tarefa de dar-lhe continuidade ou dar  acabamento definitivo. Isto significa que o juiz não está a autorizado a criar uma estória desvinculada de sua escrita anterior, muito menos que o juiz possa se desvencilhar do dever de considerar a coerência narrativa da ordem discursiva com a qual processa a estória ou lhe põe um término. Desta forma, não há somente a imposição dos valores subjetivos do juiz ao caso concreto, mas uma atividade que leva em consideração o resto da estória escrita pelos demais atores sociais (agentes econômicos, morais, religiosos...)  e jurídicos (legisladores, políticos, juízes, advogados...).

[7] Como afirma Dworkin, diante de uma mesma querela, um juiz de vanguarda e um juiz simpatizante do positivismo, podem decidir de modos díspares; o juiz de índole positivista, vinculado à ideia de previsibilidade, pensaria que, se a lei concede tal possibilidade, o próprio assassino herde na sucessão os bens daquele que matou (!), apesar de entender que o legislador deveria mudar a legislação no futuro.  O outro juiz poderia pensar que existem princípios (ainda que a lei diga o contrário) no ordenamento contrários ao favorecimento do praticante de um assassinato, especialmente se se trata de receber a herança da vítima do ato criminoso.  A subjetividade, portanto, não está eliminada do processo hermenêutico, pelo contrário. A interpretação sempre será algo de natureza subjetiva, afirma Dworkin. "Para cada pessoa, há uma interpretação diferente"   Este pensamento é extremamente democrático, porque abre exatamente a vivência do Direito à vivência da diferença e da complexidade, fugindo, portanto, à base de inspiração do raciocínio de toda a fundamentação filosófica da modernidade positivista: a busca pela homogeneidade.  Mais que isto, a concepção hermenêutica de Dworkin permite que o juiz se libere através de suas decisões suas convicções, suas ideias pessoais, e as miscigene ao conjunto dos valores institucionais aplicáveis.'"

[8] A AGU acrescenta que o STF já se manifestou nesse sentido, “entendendo que, ao almejar a parte autora, no controle de constitucionalidade dos atos normativos, modificar o sistema da Lei pela alteração do seu sentido, desfalece a competência do Poder Judiciário, que só atua como legislador negativo, e não como legislador positivo”.

[9] O IAB – Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou parecer favorável à descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A decisão se deu com base nos fundamentos da ADPF 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL no STF. A autora do parecer, a advogada Kátia Rubinstein Tavares, da Comissão de Direito Penal do instituto, salienta que, na ação, o partido requer que o STF declare inconstitucionais os artigos 124 e 126 do CP, que criminalizam a prática de aborto. "Os dois dispositivos violam princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, e os direitos fundamentais das mulheres à vida, à liberdade, à saúde e ao planejamento familiar", afirma Kátia. De acordo com a advogada, o aborto até a 12ª semana de gestação é admitido em diversos países europeus, tais como Alemanha, Áustria, Bulgária, França, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Espanha, Finlândia e Hungria, e em alguns da América Latina, como Cuba, Uruguai e Guiana Francesa. "Na Suécia, a interrupção da gravidez é permitida até a 16ª semana", pontuou... (In: IAB é favorável à descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/na-midia/16907/IAB+%C3%A9+favor%C3%A1vel+%C3%A0+descriminaliza%C3%A7%C3%A3o+do+aborto+at%C3%A9+a+12%C2%AA+semana+de+gesta%C3%A7%C3%A3o Acesso em 9.8.2023).

[10] Ontologicamente, Dworkin se posicionou contra a vertente positivista exatamente por não admitir nenhum tipo de fundamentação de metalinguagem externa para a existência do Direito, como regra de reconhecimento (que faz com que a comunidade reconheça a autoridade de algum órgão ao qual se atribui o poder emanar regras válidas), em Hart, ou um norma fundamental (que faz com que tudo se vincule logicamente ao princípio sintático e hierárquico de relacionamento entre as validades das normas jurídicas em Kelsen. Decorre daí a extrema relevância para a crítica hermenêutica hodierna às matrizes do positivismo jurídico contemporâneo.

[11] A reflexão de Dworkin, centrada na ideia de que o Direito nunca se pode  alhear aos processos de linguagem e que, portanto, é produto do processo hermenêutico,  não desconsidera e nem menospreza a importância do conservantismo de valores que  medra no processo de aplicação de um sistema de regras em um conjunto de casos  concretos (hard or easy cases).

[12] Nosso país, o contexto legal e jurídico com relação à prática do aborto voluntário é um dos mais restritivos em todo mundo, seguindo na contramão de recomendações das autoridades internacionais de saúde e das evidências científicas. A OMS reitera em todo documento sobre o tema, a descriminalização do aborto surge como fundamental estratégia para contemplar os direitos sexuais e reprodutivos e ainda diminuir a mortalidade materna. O primeiro passo para garantir a realização do abordo diante das situações específicas já evidenciada em lei e na jurisprudência (anencefálicos), como é o caso da violência sexual. E, também para garantir a atenção dos profissionais de saúde de atenção primária para prover redução de danos e evitar abortos temerosos e inseguros e reduzir a mortalidade materna.

Autores: Gisele Leite. Professora universitária aposentada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Presidente da Seccional RJ da ABRADE. Pesquisadora-Chefe do INPJ.

Dionísio E. Souza Gomes. Advogado. Professor Universitário. Bacharel em Administração de Empresas pela Universidade Paulista UNIP. (2013) - Bacharel em Direito - Faculdade de Belém (2014). Pós-graduado em Direito Constitucional e Direito Civil e Processual Civil (2017) e Mestrando em Ciências Criminológica Forense UDE - Universidad de la Empresa - Assessor de Promotoria de Justiça de 1ª Entrância do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO PARÁ - Docente da Faculdade Conhecimento e Ciência - FCC.

Palavras-chave: Interpretação Hermenêutica Dworkin Aborto ADPF 442 Direito ao Aborto

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