A descriminalização do aborto no Brasil e a ADPF 442
É necessário conhecer a teoria de Ronald Dworkin para entender a estrutura do ordenamento jurídico e também sua interpretação. A guisa da descriminalização do aborto de fetos anencefálicos, também se discute através da ADPF 442 a descriminalização do aborto no Brasil. A proposta da interpretação construtiva deve constituir a melhor justificativa para as práticas judiciais contemporâneas por meio de uma interpretação e, ainda promover a real justiça e a aplicação da equidade em hard cases. É curial lembrar que o conceito de segurança jurídica incorpora em seu bojo os conceitos fundamentais para vida civilizada, como continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre as situações anteriormente controvertidas.
Foi diante da propositura da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 que almeja conseguir a
descriminalização do aborto, surgiu acirrado debate sobre o tema, enfrentando
um vetusto tabu presente na sociedade brasileira. E, abeberando-se na doutrina
de Ronald Dworkin que pretende demonstrar que caso decida-se pela não recepção
do tipo penal em atenção, o STF terá afirmando sua plena legitimidade para o
feito.
Dworkin criou a ideia do
juiz-modelo, um juiz-filósofo e que apelidou de Hércules a quem atribuiu
potenciais extraordinários para construir sua discussão sobre a força
imperativa de sua atividade aplicativa. Trata-se de uma criação importante,
assim como o rei-filósofo o é na teoria política platônica, ou como a posição
original o é na teoria de John Ralws, como referencial metafórico do discurso,
para plasmar a prática judicial onde predomina a prudência, no momento da
decisão, na medida em que este juiz Hércules é incorruptível, na medida em que
não se curva a argumentos políticos, na medida em que age com correção na
avaliação dos princípios a serem aplicados aos casos concretos.
Hércules é aquele herói que
consagra toda a força da própria reflexão
sobre a equidade levada adiante por Dworkin ("Hércules concluirá que sua doutrina da equidade oferece a única
explicação adequada da prática do precedente em sua totalidade"), e, exatamente por isso,
não segue teorias clássicas da decisão judicial, mas sim a ideia de que, ao aplicar o direito,
age como a lei ou precedente exigem, embora tomando suas decisões com convicção pessoal,
sem que estas tenham força independente dos
argumentos racionais utilizados para justificar o raciocínio judicial utilizado
em cada caso concreto. Hércules é o
símbolo da união entre teoria e prática jurídicas.
Este juiz-ideal plasma todas
as características necessárias para Dworkin argumentar com liberdade como seria
se..., facultando a que a hipótese de trabalho esteja recoberta por uma práxis
inventiva e coerente, por isso isenta dos aspectos mais comezinhos da atividade
judicial real e corriqueira dos tribunais.
Conveniente lembrar que o
objeto da ADPF é evitar ou reparar a lesão a um preceito fundamental,
resultante de ato do Poder Público, trata-se de arguição autônoma. E, tais
espécies são duas, a saber: a arguição preventiva que evita a lesão e, a
repressiva, que visar reparar a lesão.
Além de ser utilizada em casos
de descumprimento de preceito fundamental, a ADPF também é considerada um
instrumento de ação subsidiário, residual, pois, via de regra, quando não
couber uma ADI, ADC ou qualquer outro mecanismo de controle concentrado, pode
ser utilizada a ADPF.
Ao analisarmos a ADPF 442 e
seu impacto em caso de seu deferimento, verifica-se que os casos previstos no
Código Penal brasileiro vigente, em seus artigos 124 e 128, são excepcionadas
apenas duas situações para o aborto, a saber: o risco de vida da gestante e o
estupro, em vigor desde 1940.
Já em 2012 houve a
descriminalização da interrupção da gravidez (aborto), decidida pelo Supremo
Tribunal Federal, por 8 (oito) votos a 2 (dois), em casos de fetos anencéfalos[1], por meio da ADPF
(Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54, proposta pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), baseando a tese nos
seguintes itens:
i) dignidade da pessoa humana;
ii) autonomia da vontade; iii) direito à saúde; e iv) interpretação do Código
Penal conforme a Constituição Federal. E, finalmente, a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que trata da legalização do aborto
até a 4ª (quarta) semana, protocolizada pelo partido PSOL, que se posiciona no seguinte sentido: a) os seres
humanos não nascidos, não seriam pessoas constitucionais, mas simples criaturas
humanas intrauterina; b) ainda que os seres humanos não nascidos tivessem
direitos fundamentais, nem sempre o direito à vida deveria prevalecer em caso
de colisão com uma série de direitos fundamentais das mulheres, como a autonomia, a liberdade, a
dignidade, o direito ao planejamento familiar, entre outros.
A ADPF 442 que, proposta pelo
PSOL em 2017, pretende a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro
mês de gestação. Esta arguição de descumprimento de preceito fundamental pode
ser pautada para julgamento em 2022 pelo Supremo Tribunal Federal. O presente
debate sobre o tema pelos profissionais do direito afigura-se, assim, propício
e crucial, de modo a dar respaldo à Suprema Corte em uma matéria extremamente
polêmica.
A OMS estima que no Brasil 31%
dos casos de gravidez terminam em abortamento (aproximadamente três para cada
dez mulheres grávidas abortam). De acordo com o Ministério da Saúde, todos os
anos ocorrem cerca de 1,4 milhão de abortamentos espontâneos e ou inseguros,
com uma taxa de 3,7 abortos para 100 mulheres de 15 a 49 anos.
Em 1991, surgiu um Projeto de Lei
de nº20, que buscou a legalização do aborto realizado pelo Sistema Único de
Saúde - SUS. Em contrapartida foi criado um projeto de emenda constitucional,
PEC25AJ95, que pretendeu incluir no texto constitucional o direito à vida
“desde a sua concepção”. Tal tentativa não teve êxito, visto que de 524
deputados, apenas 32 foram favoráveis.
A primeira controvérsia que se
apresenta é saber se o STF pode atuar nessa questão, quando se questiona a
legitimidade para decidir sobre o tema. Afinal, os doutos Ministros do STF,
indicados pelo Presidente da República e que não são eleitos pelo povo estão
aptos a dar a palavra final sobre uma questão essencialmente moral (além de
jurídica) como a do aborto?
Discute-se que o direito ao
aborto seria derivativo diretamente do texto constitucional vigente e, a
possibilidade de os magistrados da Suprema Corte brasileira virem em atividade
hermenêutica, criá-lo, o que para os críticos traça uma leitura muito antidemocrática.
Importante salientar que a
jurisprudência prevalente do STJ vem reconhecendo os nascituros como sujeitos
de direito, apesar de que o artigo 2º do Código Civil vigente afirme que a
personalidade civil começa com o nascimento com vida, mas a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça tem reconhecidos direitos aos que ainda não são
nascidos.
Ronald Dworkin respondendo
acerca do conceito de democracia afirmou que a democracia albergada por
Constituições tais como a norte-americana e a brasileira não é essencialmente
estatística, procedimental, mas sim, substancial. E, democracia, na dicção do
doutrinador estadunidense´, não é mero governo da maioria, mas significa que há
três princípios ou condições que devam ser assegurados.
O primeiro princípio é o da
participação que aponta que numa democracia legítima é necessário garantir a
todo e qualquer cidadão a possibilidade de ter um papel na tomada de decisões
políticas[2], de fazer a diferença no
direcionamento das ações desse agente moral autônoma.
Isso é indispensável para
exista uma unidade de responsabilidade, porque ninguém se sente parte ou
integrante numa ação coletiva, caso não tenha a real capacidade de influir
nesta.
A referida participação deve
então ser garantida inertemente de juízos sobre o merecimento, classe social,
talento ou habilidade da pessoa e, ainda, envolve o direito não somente ao
voto, mas também a voz.
O segundo princípio
democrático citado por Dworkin é the
principle of stake (princípio da
aposta). De fato, um Estado que todos possuem o direito ao voto e à voz, está
em plena democracia estatística e, pode, ainda assim, ser arrebato pela vã
tirania da maioria, privando as minorias, sistematicamente, da justiça social.
Prosseguiu o doutrinador
norte-americano que democracia "means
government both by and for the people"(significa governo pelo e para o
povo). Não olvidemos que o conceito comunitário do regime democrático não pode
se restringir apenas às garantias procedimentais, à participação política e
deve ainda adicionar a justiça[3] substancial.
Aliás, a partir da obra “Taking rights seriously”, de Ronald
Dworkin, cabe enfatizar a existência de parâmetros para o desenvolvimento
prático-judicial da justiça, sendo fruto da criação interpretativa. E, nessa se
inscrevem a ideia de razoabilidade e coerência, na perspectiva de uma discussão
de princípios, o que nos leva a debater a abertura dos juízos de decisão
jurídica e, até do próprio conceito de Direito.
Assim, reacendemos o debate
sobre as fragilidades do positivismo, automaticamente, Dworkin reacende a chama
que o faz colocar-se também em face do jusnaturalismo e do pragmatismo. Abrindo
espaço de interlocução que terá fértil terreno para haver trocas intelectuais
com Neil MacCormick, Jürgen Habermas e John Ralws.
Realmente Dworkin enfatizou
tal noção de democracia, comunitária e por iguais, exige reciprocidade. Se uma
pessoa não for parte da comunidade, dividindo responsabilidades, a menos que
seja tratada por todos, como um igual membro do grupo.
Portanto, o impacto das decisões
políticas do povo pode causar resultados na vida e nos interesses de cada
cidadão e, deve, sem distinção ser seriamente levado em conta para o sucesso
geral da ação coletiva.
Frisou-se sobre o igual
respeito e preocupação em cada cidadão como condição para existir genuína
democracia, e nisso se pauta a distinção da democracia estatística para a
democracia comunitária e substancial.
O derradeiro princípio
apontado por Dworkin é o princípio da independência. A exigência de
independência ética e moral dos membros da comunidade é o que distingue uma
democracia comunitária de um governo totalitário. E, consiste em afirmar, que
primeiramente, que uma democracia genuína deve criar os incentivos e condições
propícias para que os cidadãos construam suas próprias convicções e reflexões
sobre temas da política, ética e moral.
Com tal princípio almeja-se
vedar é que a comunidade, por outro meio que não o legítimo debate
argumentativo, intente mudar as convicções de um cidadão. E, o uso de meios
coercitivos ou obscuros para incutir na pessoa uma moral comunitária que fara
da ação coletiva um pleno totalitarismo.
Por conta do espectro do
princípio da independência, não apenas procura-se incentivar que a pessoa tenha
suas próprias reflexões, mas igualmente em assegurar que possa viver sob estas.
E, por vezes, o ter concepções autônomas de ética e moral e o agir conforme
estas, são coisas tão umbilicalmente relacionadas que pretender dissociá-las
seria consagrar uma independência meramente artificial e infrutífera.
O doutrinador Dworkin apontou
importantes consequências dessa derradeira afirmação e, extrai desta que uma
certa dose de tolerância liberal faz parte do conceito de democracia, é a
condição de uma concepção substantiva. Assim, reconhecemos que existem áreas em
que decisões estão tão firmemente ligadas aos julgamentos subjetivos pessoais
que subtraí-las da esfera privada, impondo concepções comunitárias, seria negar
a própria existência da pessoa enquanto sujeito ético e, assim, excluí-lo da
comunidade democrática.
Com a decisão sobre a
anencefalia na ADPF 54, o Supremo acrescentou mais uma exceção de
descriminalização do aborto, conforme disposto nos artigos 124 a 128 do Código
Penal. Aliás, mais do que isso, pois a maioria não considerou tratar-se de
aborto, pois ali não havia vida.
O principal argumento do Supremo
Tribunal Federal para autorizar a prática do aborto (ou “a interrupção da gestação”,
termo utilizado pela maioria dos Ministros do STF) foi a impossibilidade de
sobrevida do feto fora do útero, apesar de dados diferentes apresentados pela comunidade
científica. Ou seja, não existe vida possível no caso de anencefalia.
Assim entendeu a Suprema Corte
brasileira. A fundamentação é que a anencefalia é uma grave malformação fetal
que resulta da falha do fechamento do tubo neural (a estrutura que dá origem ao
cérebro e a medula espinhal).
Naquela oportunidade, alguns
Ministros assim votaram: “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em
síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. Anencefalia é
incompatível com a vida” (Ministro relator Marco Aurélio).
O Supremo Tribunal Federal
sempre procurou ressaltar que a Corte não estava autorizando práticas
abortivas, mas sim dando à mulher a possibilidade de escolher ou não sobre a
interrupção da gravidez em caso de anencefalia[4].
De modo contrário, sustentou o
então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso: “No caso de
extermínio do anencéfalo encena-se a atuação avassaladora do ser poderoso
superior que, detentor de toda força, infringe a pena de morte a um incapaz de prescindir
à agressão e de esboçar-lhe qualquer defesa”.
Nota-se que o Supremo Tribunal
Federal entendeu não se tratar de aborto. A maioria dos Ministros que julgaram a matéria
disseram que não havia vida ou possibilidade de vida, portanto não haveria o aborto.
Logo, não pode ser procedente para
o julgamento da ADPF 442, que não trata de feto com má formação ou sem vida, como
na anencefalia. Aqui, ao contrário, são fetos normais de até 12 (doze) semanas
de vida.
Da mesma forma, houve outro
precedente que é a ADI 3510, citado na ADPF 442 e não guarda qualquer
semelhança com o aborto, pois naquela actio que tramitou por oito anos,
discutiu-se sobre os embriões que nunca seriam implantados no útero materno,
isto é, muito distante de ser embriões saudáveis no curso da gravidez natural,
conforme se discute na ADPF 442.
Em síntese, não servem os
precedentes para o deslinde da ADI 3510 e, muito menos a ADPF 54, pois o STF
afirmou não existir a probabilidade de via nessas situações. E, por conta dessa
impossibilidade de ser entendidos por precedentes, o caso da anencefalia e dos
embriões.
A ideia principal é, portanto,
descriminalizar o aborto cometido até a décima-segunda semana de gravidez e, na
audiência pública convocada pela Ministra Rosa Weber, relatora do caso,
centrou-se na possibilidade de recepção ou não pela Constituição Federal
brasileira de 1988, dos artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro vigente.
Conveniente é recordar as
teses defensivas da professora Débora Diniz sobre a ADPF 442 que expôs em
audiência pública no STF em agosto de 2018, sustenta que a pesquisa realizada
no Brasil, onde 86% dos consultados são contra o aborto, não contém erro de
amostras, nem de coleta de dados, mas de pergunta. Diz que se trata de pergunta
inquisitorial e centra o seu raciocínio no fato que a lei penal ameaça de
prisão as mulheres.
Cogita, ainda, na
possibilidade de prisão de milhões de mulheres por prática de aborto. Afirma,
por fim, que o Código Penal brasileiro é ultrapassado e que deve prevalecer a
Constituição Federal de 1988 para a elucidação desta matéria.
O ataque proferido pela
Professora Débora Diniz sobre a ameaça da lei penal relativa ao aborto não deve
subsistir. O ataque ao Código Penal fere a própria democracia. Não existe
sistema democrático sem regras e princípios que normatizem juridicamente a vida
em sociedade. Há mais de trinta anos que todos os tribunais do país, incluindo
o Supremo Tribunal Federal, decidiram pela recepção do Código Penal.
Se assim não fosse,
poder-se-ia praticar qualquer tipo de barbárie. A norma penal tem como uma de
suas finalidades, justamente, coibir a criminalidade. A ideia das leis penais é
justamente essa, a tipicidade é o perfeito enquadramento do fato com a norma
penal incriminadora. Com isso, o legislador quer que não ocorram crimes, inclusive
o aborto, excetuando a forma permissiva.
Afinal, quando o legislador
tipificar um crime, e impor a respectiva pena, o objetivo deste é justamente
esse, que não se cometa o crime ou crimes, e então passamos entender o conceito
de antijuridicidade, que é o fato cometido contra a norma penal incriminadora.
Em sendo transgredida qualquer
das normas penais incriminadoras, a pessoa responderá dentro dos exatos termos
da lei penal. Sendo relevante ressaltar que o Código Penal brasileiro vigente,
está em consonância com a vigente Constituição Federal brasileira.
Conveniente sublinhar que a
pena estipulada no Código Penal de 1940 atualmente não leva para a cadeia como
suscitado. O artigo 124 do Código Penal, no caso de aborto voluntário da
mulher, tem como pena a detenção de 1 (um) a 3 (três) anos.
Ou seja, em 1940 poderia ter
consequências, mas atualmente, com a Lei 9.099/1995, que trouxe os institutos
da transação penal[5],
suspensão condicional do processo e muitas outras penas alternativas, isso não
acontecerá. Com certeza, a prisão poderá se dar por outros fatos criminosos,
mas não somente pelo aborto.
Se o questionamento deve
indagar sobre a possibilidade de prisão dos que cometem aborto é outra
pergunta, já respondida anteriormente. Assim torna-se mais fácil defender a
descriminalização do aborto sob o argumento da prisão do que o aborto em si,
pois essa tem a repulsa de quase todo o país. Conclui-se que o enfoque de
descriminalizar é muito melhor e mais palatável do que o enfrentamento puro e
simples do tema sobre o aborto.
Exemplificando: se uma estrada
está bloqueada, o motorista deve procurar outra via desobstruída para alcançar
o seu intento. É mais fácil defender a tese da descriminalização do aborto, sob
o prisma que tantas milhões de pessoas irão para a cadeia, a manter o sistema
penal vigente.
Em resumo, em matéria de decisions of personal commitments, o
princípio da independência, ao ver do doutrinador norte-americano, viria a
objetar legislações moralizadoras, ainda quando estas deixem espaço para que os
cidadãos pensem o que quiserem contanto que façam o que lei recomenda
positivamente.
Enfim, as condições de Dworkin
para haver uma legítima democracia e, serve para considerar uma posição
fundamental, ainda que assimilada como típico freio contramajoritário, seria,
em verdade constituinte de uma democracia genuína.
E, para o referido doutrinador
quando estes princípios estiverem sendo ameaçados, quando estas condições
estiverem em jogo, não poderá haver dúvida, os juízes são dotados não apenas de
competência, mas também de legitimidade democrática para afirmar tais direitos
contra a vontade majoritária. Ao aplicar tais posições jusfundamentais contra a
maioria, a Suprema Corte não viola a democracia, antes reafirma-a.
Questiona-se se a
criminalização do aborto ofende ou não algumas dessas condições à uma genuína
democracia. E, porém, questão prévia a essa é a de saber como STF deve
interpretar a Constituição nessa missão.
E, para Dworkin a democracia
harmônica com a concepção da democracia comunitária é aquela em que os juízes
devem decidir as questões de moral de forma coordenada, com base nos princípios
que estão na Constituição, caracterizam a comunidade, como se fosse uma única
pessoa a decidir, isto é, o povo.
A decisão judicial deve,
assim, ter sempre um poder explicativo geral sobre a estrutura e história
constitucional e a prática jurídica da comunidade, mantendo uma visão singular
e coerente de justiça e equidade.
Eis que, para elucidar a
atitude interpretativa esperada do guardião da Constituição em um Estado
democrático, o autor lança mão de uma analogia. Trata-se da figura do romance
em cadeia. Dworkin concebe a hipótese de um grupo de romancistas que escreve um
romance em série, em que cada um deve interpretar os capítulos anteriores e dar
continuidade à obra. Eles devem criar um romance[6] com a melhor qualidade
possível, como se fosse empreendimento de um único autor.
Quando um romancista recebe os
capítulos anteriores, a interpretação que ele deve adotar, para então dar
continuidade, deve possuir um poder explicativo geral e fluir ao longo do
texto.
Se ele gostaria que fosse dado
determinado caminho à história, mas ao receber o texto entende que aquela
interpretação seria incompatível com o que já foi escrito, deve abandonar a
empreitada, e adotar outra interpretação que tenha compatibilidade com o
conjunto da obra.
Por outro lado, que mais de
uma interpretação se ajusta ao contexto legal, deverá fazer um juízo acerca de
qual agregaria mais propriamente à obra. Não há total liberdade criativa para
cada romancista e nem coerção mecânica. Haverá liberdade de criação se comparar
sua tarefa com a do tradutor de um texto em língua alienígena.
É similar a tarefa
interpretativa do julgador[7] pois como autores, estão
escrevendo com sua decisão judicial, um capítulo de obra conjunta consistente
na história institucional da comunidade integral. E, sua contribuição deverá se
encaixar, fazer sentido, quando a história é lida como um todo.
Ainda analisando os
precedentes da Suprema Corte acerca do tema (HC 84.025; ADI 3.510; ADPF 54; HC
124.306), se extrai facilmente que, de forma coordenada e harmônica, o “povo”
enuncia e dá especial ênfase ao princípio da autodeterminação da mulher em
detrimento da vida do feto. Exige-se, assim, que siga neste caminho, caso, é
claro, adotada a integridade hermenêutica, constrição à atitude interpretativa
aventada por Dworkin.
O que se retira destas
decisões judiciais é que, ao ver do STF, ao longo de anos de prática jurídica
coerente, a criminalização do aborto ofende o princípio da independência.
Porque ao negar à mulher a
condição de sujeito ético e político, ao obstar-lhe a tomada de uma decisão
profundamente pessoal, que diz respeito ao seu próprio corpo e ao seu projeto
de vida. A título de exemplo, destaca-se passagens dos pronunciamentos
judiciais supracitados:
“A criminalização viola, em primeiro
lugar, a autonomia da mulher, que corresponde ao núcleo essencial da liberdade
individual, protegida pela dignidade humana [...] a autonomia expressa a
autodeterminação das pessoas, isto é, o direito de fazerem suas escolhas
existenciais básicas e de tomarem as próprias decisões morais a propósito do
rumo de sua vida [...]
Quando se trate de uma mulher, um aspecto
central de sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as
decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez.
Como pode o Estado – isto é,
um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito – impor a
uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se
tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no
gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?” (Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Relator: Min. Marco Aurélio.
Brasília, DF, 12 de abril de 2012. Diário da Justiça Eletrônico, n. 80, 30 abr.
2013)
[...] a reprovação moral do
aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente
legítima. Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e
convicções [...], no entanto, o papel adequado do Estado não é tomar partido e
impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma”
(Habeas Corpus nº 124.306. Relator:
Min. Marco Aurélio. Brasília, DF, 29 de novembro de 2016)
[...] “cabe a cada pessoa, e
não ao Estado ou a qualquer outra instituição pública ou privada, o poder de
decidir os rumos de sua própria vida [...] esta é uma ideia essencial ao
princípio da dignidade humana” (Habeas
Corpus nº 84.025/RJ, Relator: Min. Joaquim Barbosa. Brasília, DF, 04 de
março de 2004. Diário da Justiça, Brasília, DF, 18 mar. 2004)”.
Conforme menciona a inicial da
ADPF 442 que a criminalização do aborto ofende o principle of stake, ou se escolha. O que impõe a mulher uma
concepção moral coletiva e cujos efeitos deletérios são suportados
integralmente pela mulher, e principalmente pelas menos abastadas
economicamente.
E, diante de uma indesejada
gravidez, as mulheres têm a dolorosa escolha entre interromper seus estudos,
trabalho, sua vida ou, se submeter a procedimentos clandestinos e perigosos e
cuja precariedade é sempre sensível, principalmente para as mulheres pobres,
colocando-as em risco d vida. Ao impor a gestão às mulheres da comunidade
democrática, erra-se em dispensar-lhes igual respeito e consideração.
Diante das premissas sugeridas
de se ter o direito ao aborto seguro e gratuito, erige-se, portanto, como
indicam os precedentes do STF, em condição para uma democracia genuína, para a
afirmação da mulher enquanto um ser igual e livre membro da comunidade
democrática. E, assim, antes de atentar contra a democracia, a Suprema Corte,
caso decida pela não recepção do tipo penal em questão, estará enfim
afirmando-a.
Qual o limite da competência
do Supremo Tribunal Federal para normatizar esse tipo de matéria? E a
legitimidade da criação do direito pela jurisdição constitucional? E quais
seriam as técnicas decisórias para a superação de omissões constitucionais? Ou
a interpretação será “conforme” a Constituição, analisando o pedido de recepção
do Código Penal, em seus artigos 124 a 126.
Caso o entendimento fosse de
omissão, como sugere a petição inicial da ADPF 442, pois quer que o Supremo Tribunal
Federal legisle, ao acrescentar a descriminalização do aborto até a 4ª (quarta)
semana de gravidez, matéria sem precedência no Brasil, estaríamos diante de uma
sentença aditiva e não, simplesmente, interpretação constitucional admissível
conforme a lei. Trata-se de estado de omissão inconstitucional (lacunas
normativas que produzem resultados normativos inconstitucionais).
In
casu,
para que isso ocorra, o Supremo Tribunal Federal tem que assumir a posição de
legislador positivo e deve se observar o princípio democrático e a
independência dos poderes, evitando, assim, o ativismo judicial que tanto
prejudica a relação entre poderes na insipiente república pátria. Em suma, o
que se pleiteia é inserir, no rol das exceções relativas ao aborto, a
descriminalização, até a 12ª semana de gravidez.
O termo utilizado na
interpretação, “conforme a Constituição”, é inconsistente juridicamente. Nesse
sentido, Ademar Borges apud Neto, em artigo
onde fala sobre a possibilidade de o STF atuar como legislador positivo,
destaca: Ocorre que o problema não está em saber se a interpretação conforme
permite ou não a produção de novas normas jurídicas.
Evidente que não permite. O
problema real consiste em definir, em cada caso, se o pedido apresentado para o
STF atue como legislador[8] positivo deve ou não ser
admitido à luz da ordem jurídica constitucional. (...) O importante é verificar
se o Supremo deve ou não assumir a função de legislador.
A norma jurídica é o resultado
da interpretação de um texto legal, ou seja, texto e norma não se confundem, porquanto
esta decorre da atividade sobre aquele. O ex-Ministro Eros Roberto Grau diz: “a
norma é o resultado da tarefa de interpretação. Equivale afirmar: o significado da norma é
produzido pelo intérprete. Por isso dizemos que as disposições, os enunciados,
os textos nada dizem o que os intérpretes dizem que eles dizem”.
Os doutrinadores debruçaram
sobre esse tema[9],
sendo que a divisão das normas em regras e princípios partem de Ronald Dworkin
e Robert Alexy.
Para Ronald Dworkin as regras
e princípios são semelhantes, tendo em vista que as duas espécies normativas
estabelecem obrigações jurídicas. As diferenças, contudo, não seriam os graus –
maiores ou menores – de vagueza da disposição, os tipos de diretivas
apresentados por cada espécie.
Ainda, segundo Dworkin[10], as regras diferem dos
princípios, pois “as regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os
fatos que uma regra estipula, então a regra é válida, e, neste caso, a resposta
que ela fornece deve ser aceita ou não é válida, e, neste caso, nada contribui
para a decisão”.
Se houver conflito entre
regras, então uma delas não pode ser válida e a “decisão de saber qual delas é
válida e qual deve ser abandonada ou reformulada deve ser tomada recorrendo-se
a considerações que estão além das próprias regras”. A solução para o conflito,
portanto, deverá considerar os critérios clássicos de solução de antinomias, ou
seja, hierarquia, especialidade, cronologia.
Os princípios “possuem uma
dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os
princípios se intercruzam (...), aquele que vai resolver o conflito tem de
levar em conta a força relativa de cada um”.
Os conflitos entre princípios
não são resolvidos colocando um como exceção do outro, mas com a realização de
um confronto de pesos entre normas.
Os princípios constituem
comandos de otimização, caracterizados pela possibilidade de satisfação em
graus variados, além de que a medida jurídica de sua satisfação não depende
somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O
âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras
colidentes.
Nota-se que Robert Alexy
afirma que os princípios constituem comandos de otimização caracterizados pela
possibilidade de satisfação de graus variados. E, ainda afirmou, que a medida
jurídica de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas
também das possibilidades jurídicas. Relata, ainda, que as possibilidades jurídicas
são determinadas pelos princípios e regras colidentes[11].
Esse ponto é importante para o
deslinde do caso em debate, pois não existem regras colidentes no presente
caso. No Código Penal, estão inseridos os artigos que tratam do aborto, nos 124
ao 128, sem qualquer conflito entre regras
As regras são normas que estão
satisfeitas ou não satisfeitas. Se a regra é válida, então deve se fazer
exatamente aquilo que ela determina, nem além, nem aquém. Destarte, as regras
são dotadas de determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente
possível.
Os princípios aqui mencionados
são direitos fundamentais, cláusulas pétreas e limitadores do poder político.
Com isso, visa-se estabelecer determinados direitos e garantias que são
protegidos das alterações legislativas, apesar de passíveis de mudança,
preservando a sua essência, o seu núcleo.
Se a pena para a mulher que comete aborto é de
detenção de um a três anos, ainda que condenada, não irá para a cadeia, pois
hoje existem os cumprimentos de penas alternativas, além da suspensão
condicional da pena, entre outras possibilidades (excepcionando-se as
reincidentes).
Diante do exposto, a ADPF 442
alguns defendem que deve ser julgada improcedente, pois a Lei 9.882 de 3 de
dezembro de 1999 tem como objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental,
resultante de ato do Poder Público.
As regras e princípios estão
dentro da perfeita legalidade constitucional e infraconstitucional, não
necessitando de qualquer intervenção do Supremo Tribunal Federal nem para
interpretar conforme a Constituição, nem para legislar e normatização possíveis
situações de omissão dentro do ordenamento jurídico.
A questão é bastante complexa[12], mas deve-se ter em mente a preservação da dignidade da pessoa humana para se interpretar as normas conforme a Constituição e, enfim, propiciar a maior justiça que possível.
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Notas:
[1] A justificativa principal para não punir a
gestante é que o feto inevitavelmente terá morte prematura, pois possui uma
condição incompatível com a vida. Não há possibilidade alguma de que ele viva
fora do útero. Como o feto sem cérebro é incapaz de sentir dor, antecipar sua
morte não o prejudica de modo algum. Na anencefalia, a inexistência das
estruturas cerebrais (hemisférios e córtex) provoca a ausência de todas as
funções superiores do sistema nervoso central. Estas funções têm a ver com a
existência da consciência e implicam na cognição, percepção, comunicação,
afetividade e emotividade, ou seja, aquelas características que são a expressão
da identidade humana. Há apenas uma efêmera preservação de funções vegetativas
que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e as
dependentes da medula espinhal. Esta situação neurológica corresponde aos
critérios de morte neocortical (high
brain criterion), enquanto que, a abolição completa da função encefálica
define a morte cerebral ou encefálica (whole
brain critério).
[2]
No debate entre juridicização da política e politização da justiça, Dworkin
estaria entre aqueles que não advogam nem uma coisa nem outra, mas muito menos
apela para a típica atitude positivista negadora dos laços recíprocos entre
direito e política, assim como entre direito e moral.
[3]
A justiça não pode ser construída fora da linguagem. Este é um dado inegável
para a reflexão jusfilosófica que assume problematizar a interpretação na
esfera das práticas jurídicas. Não por outro motivo, o Direito não é visto como
uma investigação, especialmente no processo, que reconstrói dados do passado,
como um historiador o faria, mas sim um tipo de atitude investigativa sobre a
realidade que realiza interpretações sobre fatos ocorridos e juridicamente
relevantes, dentro de um contexto decisório.
[4]
Pela primeira vez na seara jurisdicional, foi debatido perante o Supremo
Tribunal Federal a questão acerca da permissão da interrupção da gravidez de
fetos anencéfalos, onde uma gestante pretendia a interrupção de uma gravidez,
em razão do diagnóstico de ausência de crânio. Foi concedida uma liminar pelo
Ministro Marco Aurélio de Melo, autorizando tal prática. Posteriormente tal
liminar foi revogada pelo Plenário da Corte, a qual nunca julgou o mérito da
causa, porém posicionando-se através de uma questão preliminar, onde destacou
que ao tratar da interrupção, sendo o feto anencéfalo, não estaria se
configurando como aborto, já que não havia chance de vida extra-uterina. Sobre
este tema, o Ministro Joaquim Barbosa posicionou-se da seguinte maneira:
"O que eu tenho a lamentar é que uma violência dessa natureza tenha sido
cometida por força de uma decisão judicial" completou ainda, que "o
Tribunal, por força de procedimentos postergatórios típicos da prática
jurisdicional brasileira, perdeu a grande oportunidade de examinar uma questão
de profundo impacto na sociedade brasileira".
[5]
A transação penal (art. 76): cuida-se de um acordo elaborado entre o Ministério
Público e o autor do fato, em que a acusação formula ao agente uma proposta de
aplicação imediata de pena alternativa e, com isso, propõe-se a não processá-lo
formalmente — se a medida for aceita, pelo investigado e seu advogado, e
devidamente cumprida, dar-se-á a extinção da punibilidade; A suspensão condicional
do processo (art. 89): trata-se de um acordo entre Ministério Público (ou
querelante) e o réu, por meio do qual se propõe a suspensão do processo penal,
logo em seu nascedouro, mediante o cumprimento de algumas condições previamente
definidas, durante certo tempo, ao término do qual se extingue a punibilidade.
A composição civil extintiva da punibilidade e a transação penal apenas podem
ser aplicadas em infrações de menor potencial ofensivo, ao passo que a
suspensão condicional do processo, aos crimes cuja pena mínima não exceda um
ano.
[6]
Dworkin, a partir de uma analogia com a ideia de escritura de um romance compartilhada entre vários autores
("Gostaria agora de comparar o desenvolvimento do Direito à elaboração desse, digamos, romance
em cadeia"), não acredita que os
juízes, mesmo em caso difíceis (hard
cases), estejam autorizados a criar, e simplesmente criar, direito novo, na medida em que ao agirem, o
fazem de acordo com uma tradição, pois
tomam o romance já pré-escrito, em parte, com a tarefa de dar-lhe
continuidade ou dar acabamento
definitivo. Isto significa que o juiz não está a autorizado a criar uma estória
desvinculada de sua escrita anterior, muito menos que o juiz possa se
desvencilhar do dever de considerar a coerência narrativa da ordem discursiva
com a qual processa a estória ou lhe põe um término. Desta forma, não há
somente a imposição dos valores subjetivos do juiz ao caso concreto, mas uma
atividade que leva em consideração o resto da estória escrita pelos demais
atores sociais (agentes econômicos, morais, religiosos...) e jurídicos (legisladores, políticos, juízes,
advogados...).
[7] Como afirma Dworkin, diante de uma mesma querela, um juiz de vanguarda e um juiz simpatizante do positivismo, podem decidir de modos díspares; o juiz de índole positivista, vinculado à ideia de previsibilidade, pensaria que, se a lei concede tal possibilidade, o próprio assassino herde na sucessão os bens daquele que matou (!), apesar de entender que o legislador deveria mudar a legislação no futuro. O outro juiz poderia pensar que existem princípios (ainda que a lei diga o contrário) no ordenamento contrários ao favorecimento do praticante de um assassinato, especialmente se se trata de receber a herança da vítima do ato criminoso. A subjetividade, portanto, não está eliminada do processo hermenêutico, pelo contrário. A interpretação sempre será algo de natureza subjetiva, afirma Dworkin. "Para cada pessoa, há uma interpretação diferente" Este pensamento é extremamente democrático, porque abre exatamente a vivência do Direito à vivência da diferença e da complexidade, fugindo, portanto, à base de inspiração do raciocínio de toda a fundamentação filosófica da modernidade positivista: a busca pela homogeneidade. Mais que isto, a concepção hermenêutica de Dworkin permite que o juiz se libere através de suas decisões suas convicções, suas ideias pessoais, e as miscigene ao conjunto dos valores institucionais aplicáveis.'"
[8]
A AGU acrescenta que o STF já se manifestou nesse sentido, “entendendo que, ao
almejar a parte autora, no controle de constitucionalidade dos atos normativos,
modificar o sistema da Lei pela alteração do seu sentido, desfalece a
competência do Poder Judiciário, que só atua como legislador negativo, e não
como legislador positivo”.
[9]
O IAB – Instituto dos Advogados Brasileiros aprovou parecer favorável à
descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A decisão se deu com
base nos fundamentos da ADPF 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade
– PSOL no STF. A autora do parecer, a advogada Kátia Rubinstein Tavares, da
Comissão de Direito Penal do instituto, salienta que, na ação, o partido requer
que o STF declare inconstitucionais os artigos 124 e 126 do CP, que
criminalizam a prática de aborto. "Os dois dispositivos violam princípios
constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, e os direitos
fundamentais das mulheres à vida, à liberdade, à saúde e ao planejamento
familiar", afirma Kátia. De acordo com a advogada, o aborto até a 12ª
semana de gestação é admitido em diversos países europeus, tais como Alemanha,
Áustria, Bulgária, França, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Espanha, Finlândia e
Hungria, e em alguns da América Latina, como Cuba, Uruguai e Guiana Francesa.
"Na Suécia, a interrupção da gravidez é permitida até a 16ª semana",
pontuou... (In: IAB é favorável à descriminalização do aborto até a 12ª semana
de gestação. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/na-midia/16907/IAB+%C3%A9+favor%C3%A1vel+%C3%A0+descriminaliza%C3%A7%C3%A3o+do+aborto+at%C3%A9+a+12%C2%AA+semana+de+gesta%C3%A7%C3%A3o
Acesso em 9.8.2023).
[10]
Ontologicamente, Dworkin se posicionou contra a vertente positivista exatamente
por não admitir nenhum tipo de fundamentação de metalinguagem externa para a
existência do Direito, como regra de reconhecimento (que faz com que a
comunidade reconheça a autoridade de algum órgão ao qual se atribui o poder
emanar regras válidas), em Hart, ou um norma fundamental (que faz com que tudo
se vincule logicamente ao princípio sintático e hierárquico de relacionamento
entre as validades das normas jurídicas em Kelsen. Decorre daí a extrema
relevância para a crítica hermenêutica hodierna às matrizes do positivismo
jurídico contemporâneo.
[11]
A reflexão de Dworkin, centrada na ideia de que o Direito nunca se pode alhear aos processos de linguagem e que,
portanto, é produto do processo hermenêutico,
não desconsidera e nem menospreza a importância do conservantismo de
valores que medra no processo de
aplicação de um sistema de regras em um conjunto de casos concretos (hard or easy cases).
[12] Nosso país, o contexto legal e jurídico com relação à prática do aborto voluntário é um dos mais restritivos em todo mundo, seguindo na contramão de recomendações das autoridades internacionais de saúde e das evidências científicas. A OMS reitera em todo documento sobre o tema, a descriminalização do aborto surge como fundamental estratégia para contemplar os direitos sexuais e reprodutivos e ainda diminuir a mortalidade materna. O primeiro passo para garantir a realização do abordo diante das situações específicas já evidenciada em lei e na jurisprudência (anencefálicos), como é o caso da violência sexual. E, também para garantir a atenção dos profissionais de saúde de atenção primária para prover redução de danos e evitar abortos temerosos e inseguros e reduzir a mortalidade materna.
Autores: Gisele Leite. Professora universitária aposentada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Presidente da Seccional RJ da ABRADE. Pesquisadora-Chefe do INPJ.
Dionísio E. Souza Gomes. Advogado. Professor Universitário. Bacharel em Administração de Empresas pela Universidade Paulista UNIP. (2013) - Bacharel em Direito - Faculdade de Belém (2014). Pós-graduado em Direito Constitucional e Direito Civil e Processual Civil (2017) e Mestrando em Ciências Criminológica Forense UDE - Universidad de la Empresa - Assessor de Promotoria de Justiça de 1ª Entrância do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO PARÁ - Docente da Faculdade Conhecimento e Ciência - FCC.