Um líder onipresente

Senador é sócio de empresa que executa emenda que ele propôs, além de ter grande força na autarquia que fornece os recursos e fiscaliza seu uso

Fonte: Congresso em Foco

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Dos R$ 7,1 milhões que compõem o patrimônio declarado à Justiça eleitoral pelo senador Fernando Bezerra (PTB-RN), líder do governo no Congresso e candidato à reeleição, mais de R$ 5 milhões correspondem à participação acionária que ele tem na construtora Ecocil, uma das grandes empresas do setor na região Nordeste.

Entre várias outras obras em andamento, a Ecocil é a executora do projeto de saneamento básico em implantação no município de Extremoz (RN). Vizinho à cidade de Natal, ele é conhecido por suas belas dunas e praias, das quais a mais famosa é a de Genipabu.

A Ecocil já recebeu até o momento da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), para tocar a obra, exatamente R$ 1.710.615,28. Mas o valor representa menos de um quarto do total de recursos federais empenhados (isto é, compromissados) para a execução do projeto. Ao todo, os empenhos somam R$ 7.276.538,28 - clique aqui para ver o detalhamento das dotações orçamentárias da Funasa destinadas às obras de saneamento em Extremoz.

O investimento tem um custo global ainda maior. Segundo o site da prefeitura, o plano de esgotamento sanitário está dividido em três projetos, orçados no total em mais de R$ 16,5 milhões. Segundo o site, parte dos recursos virá do Ministério das Cidades e da Caixa Econômica Federal. Mas a assessoria de imprensa da Caixa informou à reportagem que a operação não passou pela CEF, nem existem recursos contratados para projetos de esgotamento sanitário no município.

Não bastasse o fato de envolver um dos principais representantes governistas no Parlamento, o caso chama atenção por certas coincidências curiosas. A principal delas é que o próprio Fernando Bezerra é um dos autores da emenda, feita ao orçamento da União de 2004, que permitiu o repasse do dinheiro para a Ecocil. Fez o mesmo em relação a outra emenda, destinada ao plano de saneamento de Extremoz e incluída na lei orçamentária de 2005, que até agora não resultou em qualquer liberação de recursos.

Ambas as emendas foram de bancada. Ou seja, foram apresentadas coletivamente pelo conjunto dos representantes potiguares na Câmara e no Senado.

Há sinais, no entanto, de que o envolvimento de Bezerra no episódio foi além da mera subscrição das emendas, como integrante da representação do Rio Grande do Norte no Congresso.

Indícios de irregularidades

Em entrevista ao Congresso em Foco no final de agosto, o próprio senador admitiu ter coordenado as emendas da área de saúde apresentadas pela bancada de seu estado aos orçamentos de 2004 e 2005. A mesma informação foi dada a este site pelo ex-assessor parlamentar do Ministério da Saúde Christian Schneider, que também já foi assessor de Bezerra. Na oportunidade, Christian revelou o acordo pelo qual o Palácio do Planalto garantiu o pagamento de até R$ 500 mil para cada um dos 52 deputados federais do PL.

Quanto às obras de saneamento a cargo da Ecocil, o secretário municipal de Tributação de Extremoz, Nazareno Neto, disse que a liberação dos recursos foi obtida em Brasília pelo senador do PTB. Acrescentou, porém, que outra parte do dinheiro saiu com a participação do senador Garibaldi Alves (PMDB), ex-aliado e atual adversário de Bezerra.

Em nota, Garibaldi, candidato ao governo estadual e ex-relator da CPI dos Bingos, afirmou que no acordo da bancada para o orçamento de 2004 lhe coube indicar a destinação de R$ 2,8 milhões de um total de R$ 8,9 milhões incluídos na lei orçamentária. "Como de costume, foi distribuído entre vários municípios. Vale destacar que a Funasa não efetivou nenhum dos empenhos indicados pelo senador", diz a nota assinada pela sua assessoria de imprensa.

O prefeito de Extremoz, Enilton Trindade (PSDB), também nega a versão do seu secretário de Tributação. Afirma que Fernando Bezerra limitou-se a assinar as emendas, assim como todos os outros parlamentares da bancada potiguar. É o que também diz, aliás, a assessoria de imprensa da Funasa.

Bastante irritado, o prefeito declarou: "Vocês têm que perguntar para o senador se isso é imoral ou não. Se fosse por mim, empresas do próprio município tinham ganhado essa licitação, mas o processo é publico e aberto para qualquer empresa do Brasil".

Embora pertença a um grupo político adversário ao do líder do governo no Congresso, Trindade tem ligações com João Maria Ferreira Silva, assessor de Fernando Bezerra. Os dois chegaram a dividir apartamento em Brasília quando ambos trabalhavam no gabinete do ex-senador Geraldo Melo (PSDB), ex-sogro do prefeito Trindade.

Mas, para Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo e autor do livro O desvio de poder na função legislativa, o simples fato de Bezerra ter sido um dos signatários de emenda que beneficiou sua empresa representa um grave indício de irregularidade e já justifica a abertura de investigação tanto no Conselho de Ética do Senado, por quebra do decoro parlamentar, quanto no Ministério Público Federal.

Ao subscrever as emendas, explica Serrano, o senador do PTB executou um ato concreto de fiscalização do Legislativo sobre o Executivo. "Por ser beneficiado desse ato, o parlamentar não poderia fiscalizar a si mesmo", afirma o jurista. "O fiscalizador não pode ser o fiscalizado. Essa licitação deve ser investigada porque foi ferido o espírito da lei de licitações, mesmo que formalmente não exista uma ilegalidade aparente. Um indício de fraudes desse tipo precisa ser analisado pelo Ministério Público Federal, pois, na maioria das vezes, elas não são comprovadas por documentos oficiais da licitação".

De acordo com o professor, o líder do governo no Congresso pode ter violado o artigo 37 da Constituição Federal, que obriga a administração pública, em todos os níveis, a seguir os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

O senador e a Funasa

Mas, repita-se, há nítidas indicações de que o envolvimento de Fernando Bezerra no episódio vai além da mera subscrição das emendas. O senador é reconhecido, pelas fontes mais bem informadas do Congresso e da Esplanada dos Ministérios, como homem forte na Funasa.

A assessoria de imprensa da fundação nega. Em nota enviada ao Congresso em Foco, afirma que "a indicação à Funasa é da bancada do PMDB, que ficou responsável pela recomposição de cargos na Saúde quando da reforma ministerial em junho do ano passado".

A afirmação, porém, não resiste aos fatos. Com efeito, um deputado federal peemedebista (o mineiro Saraiva Felipe) foi nomeado ministro da Saúde naquela data. Mas o PMDB há muito reclama do fato de jamais ter recebido um ministério "de porteira fechada", quer dizer, com direito de fazer todas as nomeações de confiança no órgão.

Mais. O diretor executivo da Funasa, Danilo Forte, assessorou Fernando Bezerra entre maio de 2004 e julho de 2005. Danilo deixou o cargo exatamente para assumir a direção da fundação. E um irmão do senador, Lauro Bezerra, é o diretor regional da Funasa no Rio Grande do Norte.

A assessoria de imprensa da fundação também nega a participação do seu diretor executivo no caso. Reconhece, no entanto, que, embora a fiscalização da obra seja da competência da prefeitura, a Funasa também tem a obrigação de fiscalizar a execução física e o cronograma físico-financeiro do projeto.

Segundo a Funasa, o projeto é alvo de supervisões conjuntas da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades e da própria fundação. A fiscalização, diz a nota enviada pela assessoria de imprensa, não está a cargo de Lauro Bezerra, mas do diretor da Divisão de Engenharia de Saúde Pública (Diesp) da mesma direção regional.

A assessoria acrescenta que essa fiscalização é acompanhada e checada por técnicos do Departamento de Engenharia de Saúde Pública (Densp) da Funasa em Brasília. De qualquer forma, vale destacar que o diretor do Diesp está subordinado a Lauro Bezerra.

A assessoria da Funasa acrescenta que dois dos três convênios destinados às obras de Extremoz foram assinados antes da chegada de Forte à fundação. E garante que o outro, de 2005, foi definido por meio de portaria interministerial dos ministérios das Cidades e da Saúde.

Esse último convênio, explica a Funasa, faz parte do Projeto de Saneamento Ambiental para Regiões Metropolitanas, publicado no Diário Oficial da União, por meio da Portaria Interministerial nº 233, no dia 22 de junho de 2005.

"A Funasa é apenas executora desses projetos que, vale salientar, são analisados e selecionados por cooperação interministerial com base nos critérios definidos pelos dois ministérios. É importante deixar claro, também, que do convênio de 2005 ainda não foi liberado nenhum recurso", diz a assessoria.

Deve-se lembrar, finalmente, que a Funasa é vinculada ao Ministério da Saúde, área em que, como já demonstrou o Congresso em Foco, a ação do senador Fernando Bezerra resultou na liberação de mais de R$ 3 milhões para a Fundação Aproniano Sá. A entidade é controlada pelo ex-deputado Múcio de Sá (PSB), denunciado na Justiça por envolvimento com a máfia dos sanguessugas.

Obras e política

As obras em Extremoz começaram no último mês de maio depois que a Ecocil venceu uma concorrência pública da qual participaram outras 11 empresas.

Como admitiu a secretária de Infra-Estrutura do município, Lizélia Maria de Souza, a licitação foi realizada em 2005, antes mesmo da liberação dos recursos, na época ainda sob a análise técnica da Funasa. Ela confirmou que as duas emendas para utilização de recursos da Funasa na obra possibilitaram a assinatura de dois convênios, entre a fundação e a prefeitura de Extremoz.

O primeiro, no valor de R$ 4,2 milhões, para o saneamento da praia de Genipabu. O outro, de R$ 3 milhões, para obras no centro da cidade.

"A ordem de serviço para o esgotamento em Genipabu e a construção de dois reservatórios de água, uma na Praia de Pitangui e outra no centro da cidade, foi dada no dia 10 de maio", informou a secretária. Segundo Lizélia de Souza, ela esclareceu que outras obras do plano de saneamento estão para ser aprovadas. Uma delas já teria o sinal verde do Ministério das Cidades: o projeto para a Praia de Santa Rita, que também deve seguir para a liberação dos recursos na Funasa. Já para as praias de Redinha Nova e Barra do Rio, a secretária afirma que ainda aguarda a aprovação do projeto.

A secretária disse que ignorava a participação de Fernando Bezerra no caso até ser procurada pela reportagem. "Foi de uma emenda, mas não sabia que era do senador", afirmou. Questionada sobre a participação da Ecocil no processo licitatório, respondeu: "Eu não tenho opinião formada sobre isso e não sei quem são os proprietários reais dessa empresa, nem conheço o contrato social. O processo foi de concorrência pública e empresas de Fortaleza chegaram a recorrer à Justiça".

De acordo com um assessor parlamentar ouvido pelo Congresso em Foco, que acompanhou um prefeito do Rio Grande do Norte em visita ao Ministério das Cidades, a política atropelou a técnica nessa história. Conforme o assessor, municípios como Ceará Mirim, também na região metropolitana de Natal, mais populoso e igualmente com sérios problemas de saneamento básico, estavam na frente de Extremoz, à luz dos critérios técnicos estabelecidos pelo Programa de Ação Social em Saneamento, que conta com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (PASS/BID).

Areia Branca, Apodi e Açu, também estariam nas prioridades do mesmo programa antes de Extremoz, complementa o assessor. O PASS/BID, segundo o portal do Ministério das Cidades na internet, restringe sua atuação aos municípios de pequeno e médio porte com maiores déficits de cobertura de serviços de infra-estrutura sanitária e ambiental.

O Congresso em Foco apurou que outros convênios também tiveram origem nas emendas da bancada de 2005, mas foram remanejados a pedido de Fernando Bezerra para recursos orçamentários do Ministério das Cidades no orçamento de 2006. De todo modo, estão previstos para serem liberados pela Funasa.

Laços de família

Por fim, o episódio apresenta peculiaridades de difícil compreensão para os não-iniciados na política do Rio Grande do Norte, estado onde política, família e poder econômico se confundem de maneira particularmente forte.

Uma regra inescapável é que poucas famílias exercem, há décadas, o poder político e econômico. Mas, seja nos negócios, seja na política, os rumos que os integrantes dessas famílias seguem são muitas vezes contraditórios.

O prefeito de Extremoz, Enilton Trindade, foi genro do ex- senador Geraldo Melo (PSDB), adversário direto de Fernando Bezerra na disputa pelo Senado nestas eleições. Como Bezerra (leia mais), Melo é um homem rico.

Dos candidatos a senador e a governador da região Nordeste, ele foi o que declarou o segundo maior patrimônio pessoal à Justiça eleitoral (leia mais). Suas posses somam mais de R$ 33 milhões, dos quais R$ 28 milhões se referem às ações que detém na Companhia Açucareira Vale do Ceará Mirim.

Geraldo Melo, entretanto, nada tem a ver com o projeto de saneamento de Extremoz. "Eu não conheço licitação de Extremoz nem de nenhuma outra prefeitura, mas acho uma coincidência estranha", resumiu Geraldo Melo ao se referir ao fato de seu concorrente na disputa eleitoral ser sócio da empresa encarregada de executar a obra viabilizada graças aos recursos incluídos no orçamento federal.

Melo enfatiza que Enilton não está mais casado com sua filha, embora o casal tenha dois filhos desse relacionamento. "Se ele faz lá as maluquices dele, eu não tenho nada a ver com isso", completou.

Também não é sempre que Fernando Bezerra e o irmão Lauro, o diretor regional da Funasa, falam a mesma língua. Além de lutar por sua reeleição, Bezerra é um dos principais cabos eleitorais da governadora Wilma de Faria (PSB), que tenta se reeleger.

Lauro, porém, não esconde sua simpatia pelo grande adversário de Wilma na disputa, o senador Garibaldi Alves Filho (PMDB), de quem Fernando Bezerra já foi suplente de senador. Foi assim que terminou tornando público que participaria da campanha à reeleição do irmão, mas que não pediria votos para a governadora-candidata.

Inconformado com o ato de indisciplina, Fernando afastou Lauro da presidência municipal do PTB de Natal. Nada mudou, contudo, na direção regional da Funasa, que continua sob o comando de Lauro Bezerra.

Nada a declarar

O Congresso em Foco fez várias tentativas de ouvir Fernando Bezerra antes de publicar esta reportagem. O assessor de imprensa do senador, Luciano Hebert, disse que o líder governista não tinha por que comentar o assunto. Mas prometeu que alguém da Ecocil entraria em contato com o repórter, o que não ocorreu.

Também entramos em contato com o Ministério das Cidades em busca de explicações para os critérios adotados na assinatura e execução dos convênios com a prefeitura de Extremoz. Até o fechamento desta edição, não obtivemos retorno.

Palavras-chave: líder

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