Julgamento unipessoal do mérito da causa por meio da apelação: interpretação dos arts. 557 e 515, § 3º, ambos do CPC

Fabiano Carvalho, Mestre e doutorando em Direito Processual pela PUC/SP. Professor do curso de especialização em Direito Processual Civil na PUC/SP. e da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP. Professor Associado da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Advogado militante em São Paulo.

Fonte: Fabiano Carvalho

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Fabiano Carvalho ( * )

Em regra, a competência para o julgamento dos recursos é atribuída aos tribunais. Nos tribunais, internamente, há órgãos colegiados (v.g. turma, câmara) e órgãos individualizados (v.g. presidente, vice-presidente, corregedor, relator, revisor). Diz-se que a competência desses órgãos é funcional, também chamada de hierárquica ou recursal.

O art. 557 do CPC, de acordo com a redação dada pela Lei nº 9.756, de 18.12.1998, confere poderes ao relator para julgar unipessoalmente o recurso.

No entanto, impõe-se saber o limite dentro do qual é exercida a atividade do relator e se esses poderes podem sofrer limitações à luz da sistemática recursal. Em outras palavras: se se há de exigir, para tornar exercitável a atividade unipessoal do relator, o simples enquadramento do recurso em um dos fundamentos do caput ou que a decisão recorrida esteja compreendida em uma das classes § 1º-A.

Indaga-se: pode o relator julgar a causa de acordo com o disposto no § 3º do art. 515 do CPC?

O exame desse dispositivo permite assentar que é lícito ao tribunal decidir desde logo o mérito da causa, desde que a lide verse matéria exclusivamente de direito e esteja em condições de imediato julgamento. Repare-se que a lei estabelece competência ao tribunal, ao dar provimento à apelação interposta contra sentença terminativa, para julgar o mérito da causa.

De outra parte, o art. 557, caput, estabelece que o relator poderá negar seguimento a recurso quando manifestamente inamissível, improcedente, prejudicado ou em contraste com súmula ou com jurisprudência do tribunal competente, do STF, ou de Tribunal Superior.

Confrontados, infere-se que os dois dispositivos não se harmonizam. Bem ao contrário: o texto do § 3º do art. 515, além dos requisitos expressos (questão exclusivamente de direito e condições de imediato julgamento), estabelece como condição para o tribunal julgar o mérito da causa os juízos positivos de admissibilidade e mérito da apelação. O relator, ao enquadrar a apelação em uma das classes do caput do art. 557, nega-lhe seguimento, de maneira que o juízo admissibilidade ou o juízo de mérito é sempre negativo.

Problema de maior protuberância é ter conhecimento se o relator, ao dar provimento à apelação unipessoalmente (§ 1º-A), para afastar a carência de ação, poderá, em ato contínuo, passar ao exame do mérito da causa para acolher ou rejeitar o pedido sem a participação do órgão colegiado.

A leitura desse dispositivo, ao lado do § 3º do art. 515 do CPC, pelo método estritamente literal de interpretação, impeliria o leitor a concluir que as normas não coincidem, uma vez que o tribunal tem competência para julgar o mérito da causa, e, de outro lado, o relator tem competência para julgar o mérito do recurso. Todavia, como é sabido de todos, a interpretação literal nem sempre permite extrair resultados satisfatórios, porque, afinal, freqüentemente, esse sentido coincide com o sentido sistemático.

Não se tolera a idéia segundo a qual os poderes do relator se desenvolvam em um método precisamente geométrico. A atividade do relator está longe de realizar-se por meios mecânicos.

Os dispositivos, inclusive os processuais, precisam ser interpretados no sentido que melhor corresponda à consecução do resultado que o processo procura obter.

Com efeito, se a decisão que extinguiu o processo sem a resolução do mérito - sentença terminativa - estiver em manifesto contraste com súmula ou jurisprudência dos tribunais de superposição, e a causa versar questão exclusivamente de direito, e, ainda, estiver em condições de imediato julgamento, o relator poderá dar provimento ao recurso de apelação e apreciar o mérito da causa.

Note-se que se ocorrente o quadro descrito no § 3º do art. 515 - questão exclusivamente de direito e condições de imediato julgamento -, o mérito da causa estará inteiramente transferido ao tribunal, ainda que não se tenha formulado, propriamente, esse pedido.(1)

Rodrigo Barioni admite que o relator possa valer-se do § 3º do art. 515 e julgar desde logo a lide.(2) Para tanto, afirma ser "indispensável preencher os requisitos estabelecidos em lei: (i) contrariedade da sentença de extinção do feito sem julgamento do mérito em relação à súmula ou à jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior; (ii) existência de jurisprudência dominante ou súmula do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior sobre a matéria de mérito. Preenchidos esses requisitos, pode-se conciliar a aplicação do art. 557, § 1º-A, ao caso mencionado pelo § 3º do art. 515 do CPC."

O pensamento desse autor merece uma análise mais cuidadosa. De fato, os termos do primeiro requisito são indispensáveis, pois, em realidade, se apóiam no próprio texto do § 1º-A do art. 557, e sem os quais o relator não está autorizado a julgar o mérito da apelação para dar-lhe provimento. Em relação ao segundo requisito, "existência de jurisprudência dominante ou súmula do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior sobre a matéria de mérito", não encontra guarida em nenhum dispositivo processual, muito menos no § 3º do art. 515. Todavia, nem por isso se faz dispensável.

Cogita-se que o relator, como órgão unipessoal ou singular do tribunal, após dar provimento à apelação interposta contra sentença terminativa, possa julgar o mérito da causa quando preenchidos os requisitos próprios da lei, isto é, matéria exclusivamente de direito e condições de imediato julgamento. Mas, no caso sub examine, como se trata de matéria que originariamente deveria ser conhecida e julgada pelo órgão colegiado, tal requisito se torna indispensável. A razão dessa exigência, no sentido de que a matéria da causa esteja consolidada por meio de súmula ou jurisprudência dominante dos tribunais de superposição, para que o relator possa julgar o mérito da causa, está na possibilidade de um dos membros do órgão colegiado entender que a questão (mérito da causa) comporta decisão diversa. Nessa ordem de idéias, impera aqui o princípio da dupla conformidade (supra 4.5) entre a decisão do relator e a decisão do tribunal de superposição.

Cumpre afastar qualquer dúvida sobre a competência do relator para apreciar o mérito da causa. A palavra "tribunal" foi empregada no § 3º do art. 515 em sentido amplo, de maneira que não quer exprimir, apenas, "órgão colegiado". O enunciado é mais amplo e compreende todos os órgãos do tribunal: relator, turma, câmara etc.

Uma advertência final: não é lícito ao relator dar provimento à apelação para afastar a extinção do processo sem julgamento do mérito e, em seguida, submeter a causa ao órgão colegiado.

O resultado preferível, na visão da atual conjuntura processual, que procura dar maior dinamismo e efetividade ao processo, é o da possibilidade de o relator julgar unipessoalmente o mérito da causa, quando der provimento à apelação interposta contra sentença terminativa, e a matéria versada na demanda seja exclusivamente de direito e o processo esteja em condições de imediato julgamento.

Bibliografia

ARRUDA ALVIM NETTO, José Manoel de. "Notas sobre algumas das mutações verificadas com a lei 10.352/2001", in Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, série 6. Coord. Teresa Arruda Alvim Wambier e Nelson Nery Junior. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002.

BARIONI, Rodrigo. Efeito devolutivo da apelação civil, dissertação de mestrado, PUC/SP, 2003.

MEDINA, José Miguel Garcia. "A recentíssima reforma do sistema recursal brasileiro - análise das principais modificações introduzidas pela lei 10.532/2001", in Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, série 6. Coord. Teresa Arruda Alvim Wambier e Nelson Nery Junior. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002.


Notas:

* Fabiano Carvalho, Mestre e doutorando em Direito Processual pela PUC/SP. Professor do curso de especialização em Direito Processual Civil na PUC/SP. e da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP. Professor Associado da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Advogado militante em São Paulo. [ Voltar ]

1 - Cf. ARRUDA ALVIM, "Notas sobre algumas das mutações verificadas com a Lei 10.352/2001", in Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, série 6, pág. 81; LUIZ RODRIGUES WAMBIER e TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER, Breves comentários à 2ª fase da reforma do código de processo civil, pág. 31; RODRIGO BARIONI, Efeito devolutivo da apelação, pág. 178. [Voltar] 2 - Efeito devolutivo da apelação, pág. 171. JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA: "o fato de não se estar diante de inconstitucionalidade, contudo, não torna, só por isso, menos criticável o preceito, porquanto nos casos em que, em atenção ao § 3º do art. 515 do CPC, o tribunal - ou o relator, sozinho (cf. art. 557 do CPC) - julga questão de mérito que não havia sido sequer examinada pelo juízo a quo, estará realizando julgamento que só excepcionalmente poderá vir a ser reapreciado." ("A recentíssima reforma do sistema recursal brasileiro - análise das principais modificações introduzidas pela lei 10.352/2001, e outras questões", in Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, 6ª série, pág. 343). [Voltar]

Palavras-chave: mérito

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