Citação por hora certa no Processo Penal

Ivan Luís Marques da Silva. Autor do livro Reforma Processual Penal de 2008, editado pela RT. Autor de Pareceres em Ciências Criminais. Profere Palestras sobre a Reforma Processual Penal de 2008. Possui artigos publicados em revistas especializadas. Professor no Curso de Pós-graduação de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional da Escola Paulista de Direito - EPD; Professor da Escola Superior de Advocacia - ESA; Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP; Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC; Ex-examinador de Direito Penal da OAB/SP; Ex-professor de segunda fase para a OAB no Curso Jurídico PROORDEM; Coordenador-Chefe no IBCCRIM na gestão 2009-2010; Coordenador Editorial de Direito Público da Editora Revista dos Tribunais; Membro Efetivo da Comissão de Direito Criminal da OAB; Coordenador de assuntos relacionados a crimes contra a pessoa na OAB; Advogado criminalista.

Fonte: Ivan Luís Marques da Silva

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Ivan Luís Marques da Silva ( * )

Importante frisar que somos contrários à chamada Teoria Geral do Processo, tentativa acadêmica de unificar o Processo. Hoje, no âmbito das ciências criminais, estamos sofrendo com os reflexos desta teoria pois não está apta a tutelar, de forma respeitosa com o manto principiológico penal e processual penal, direitos indisponíveis.

De forma inédita, ingressou no sistema processual penal a chamada citação por hora certa, por determinação da Lei 11.719/2008.

Trazida do Processo Civil, num lampejo de unificação do Direito Público com o Direito Privado, o legislador entendeu por bem penalizar o réu que se oculta para não ser citado com uma modalidade de citação que viabiliza, em tese, o prosseguimento da ação penal à sua revelia.

O novo art. 362 do CPP praticamente manteve a sua redação inicial, mas inovou na conseqüência jurídica para a hipótese: a revelia no processo penal:

"Art. 362. Verificando que o réu se oculta para não ser citado, o oficial de justiça certificará a ocorrência e procederá à citação com hora certa, na forma estabelecida nos arts. 227 a 229 da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil."

A citação por hora certa no processo penal é inconstitucional.

Decorrência do princípio geral de Direito de que ninguém pode se valer de sua própria torpeza, o acusado será processado e sentenciado pelo simples fato de um oficial de justiça - e posteriormente o magistrado - decidir, de forma subjetiva, mas valendo-se das circunstâncias fáticas, que o réu se oculta propositadamente para não receber a citação e desta forma atesta, pleiteando os rigores do art. 362 do CPP.

Parece-nos que teremos muitos problemas em decorrência da nova redação do art. 362 do CPP, pois a lei atribuiu a um servidor público poderes de decisão que nem mesmo o magistrado criminal tinha antes da reforma.

Como poderá o réu restituir-se à situação anterior e provar que todo o processo que correu à sua revelia não poderia ter sido realizado? Qual é a palavra que mais valerá na prática no final da ação? A do réu recém-condenado ou a do oficial de justiça cujos atos administrativos presumem-se legítimos?

Ficando constatada a má-fé do oficial de justiça - o que na prática nos parece quase impossível de demonstrar -, responderá processo disciplinar e o ato será anulado, refazendo todo o processo desde a citação. entretanto, trata-se de uma análise subjetiva feita pelo agente público que dificilmente poderá ser contestada no caso concreto. Eventuais evidências desaparecem no tempo e o réu do processo, que seguirá seu curso à sua revelia, não estará presente para contestar a modalidade de citação escolhida pelo magistrado com base na certificação do funcionário responsável pela chamada do réu para integrar a ação penal.

Entendemos que agiu mal o legislador.

O oficial de justiça tem como atribuição cumprir fielmente os mandados judiciais, que são ordens exaradas pela autoridade judiciária competente. No caso desta nova modalidade de citação ficta em matéria criminal, não estará o magistrado atrelado ao consignado pelo oficial no processo, mas questionamos: terá o magistrado elementos concretos para contrariar o atestado pelo oficial, nos termos do 362 do CPP? Não lhe restará muitas opções a não ser determinar a citação por hora certa e, desta forma, permitir que uma pessoa seja processada e eventualmente condenada sem exercer a autodefesa, restando, nos termos do parágrafo único, apenas a defesa técnica.

O princípio da ampla defesa somente é respeitado de forma ampla com a presença, no decorrer da ação penal, da defesa técnica e da autodefesa. Faltando uma dessas modalidades, mitigado estará o princípio e, por razões lógicas, eivada a ação penal de vício passível de anulação futura.

Foi justamente para evitar este problema que a redação do art. 366 do CPP foi alterada pela Lei 9.271/1996, para evitar que o acusado fosse processado sem ter ciência disso. Vem agora o novo art. 362, com a citação por hora certa, desequilibrar, novamente, a relação processual e desrespeitar direito individual constitucional do acusado.

Defendemos a viabilidade desta modalidade de citação apenas quando os direitos atingidos por eventual prestação jurisdicional são disponíveis, o que, por óbvio, não é o caso do processo penal.

Estamos no âmbito do direito público, tutelando os bens jurídicos mais importantes para a sociedade e, por força disso, interferindo na esfera de liberdade dos cidadãos.

Nem mesmo as múltiplas etapas do procedimento previsto nos art.s 227 a 229 do Código de Processo Civil possuem força para legitimar essa intromissão privatística na seara do direito público.

Para ilustrar nossa preocupação, transcrevemos o § 2º do art. 363 (comentado a seguir) e suas razões de veto para demonstrar certa incoerência sistemática: "§ 2º Não comparecendo o acusado citado por edital, nem constituindo defensor: I - ficará suspenso o curso do prazo prescricional pelo correspondente ao da prescrição em abstrato do crime objeto da ação (art. 109 do Código Penal); após, recomeçará a fluir aquele; II - o juiz, a requerimento do Ministério Público ou do querelante ou de ofício, determinará a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; III - o juiz poderá decretar a prisão preventiva do acusado, nos termos do disposto nos arts. 312 e 313 deste Código."

Vejamos justamente as razões de veto deste art. 363, § 2º, no sentido do aqui afirmado: "A despeito de todo o caráter benéfico das inovações promovidas pelo Projeto de Lei, se revela imperiosa a indicação do veto do § 2º do art. 363, eis que em seu inciso I há a previsão de suspensão do prazo prescricional quando o acusado citado não comparecer, nem constituir defensor. Entretanto, não há, concomitantemente, a previsão de suspensão do curso do processo, que existe na atual redação do art. 366 do Código de Processo Penal. Permitir a situação na qual ocorra a suspensão do prazo prescricional, mas não a suspensão do andamento do processo, levaria à tramitação do processo à revelia do acusado, contrariando os ensinamentos da melhor doutrina e jurisprudência processual penal brasileira e atacando frontalmente os princípios constitucionais da proporcionalidade, da ampla defesa e do contraditório." (grifos nossos).

Percebam que o veto afirma expressamente que a revelia do acusado ataca os princípios constitucionais da proporcionalidade, da ampla defesa e do contraditório. Sabendo que um dos efeitos da citação por hora certa é a revelia, pergunta-se por que o § 2º do art. 363 contraria os princípios mencionados pelo presidente nas razões de veto e o art. 362 não?

Parece-nos haver manifesta incoerência nessa justificativa. Trata-se de situação jurídico-processual idêntica, onde há veto presidencial por desrespeito aos princípios da proporcionalidade, da ampla defesa e do contraditório no art. 363, § 2.º e não há manifestação presidencial no mesmo sentido para o art. 362 do CPP, que trata da citação por hora certa.

Conclusão

Do apresentado acima, conclui-se pela inconstitucionalidade material do novo artigo 362 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei 11.719, de 20 de junho de 2008.

Cabe a qualquer magistrado tomar as seguintes decisões:

a) Não aplicar a regra do art. 362 por força de sua inconstitucionalidade material e utilizar a citação por edital;

b) Fazer uma interpretação constitucional sem redução de texto e aplicar, após a citação por edital e o não comparecimento do acusado e de seu defensor, o art. 366 e seus efeitos: suspensão do trâmite processual e do prazo prescricional.

Somente desta forma os princípios basilares do processo penal - ampla defesa e contraditório - serão integralmente mantidos.

Qualquer interpretação que aceite a revelia e seus efeitos no âmbito das ciências criminais é privilegiar a disponibilidade da ampla defesa (autodefesa) e do contraditório, entendimento inadmissível após as duras conquistas sociais plasmadas em nossa Carta Cidadã.



Notas:

* Ivan Luís Marques da Silva. Autor do livro Reforma Processual Penal de 2008, editado pela RT. Autor de Pareceres em Ciências Criminais. Profere Palestras sobre a Reforma Processual Penal de 2008. Possui artigos publicados em revistas especializadas. Professor no Curso de Pós-graduação de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional da Escola Paulista de Direito - EPD; Professor da Escola Superior de Advocacia - ESA; Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP; Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC; Ex-examinador de Direito Penal da OAB/SP; Ex-professor de segunda fase para a OAB no Curso Jurídico PROORDEM; Coordenador-Chefe no IBCCRIM na gestão 2009-2010; Coordenador Editorial de Direito Público da Editora Revista dos Tribunais; Membro Efetivo da Comissão de Direito Criminal da OAB; Coordenador de assuntos relacionados a crimes contra a pessoa na OAB; Advogado criminalista. [ Voltar ]

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3 Comentários

Paulo Sérgio da Cunha servidor público28/05/2013 10:37 Responder

Ora isso é conversa de advogado, sempre apto a ganhar a vida dificultando o trabalho daqueles que querem descobrir a Verdade. As pessoas que estão dispostas a viver em harmonia com a Sociedade têm o compromisso de manter seus endereços de trabalho e de residência atualizados nos cadastrados dos órgãos públicos (quem não deve, não teme). Se os endereços registrados não espelham a verdade já se tem um forte indício de que se esquivam astuciosamente, com o fim de não contribuir com a obtenção da Verdade.

Antonio TJSP16/05/2014 17:04 Responder

O Oficial de Justiça não é um carteiro ou office-boy. É um servidor concursado e, diga-se de passagem, muito mal remunerado no Estado de São Paulo. Possui responsabilidade, perícia e conhecimento para identificar quando o acusado está se ocultando. Ademais, a Citação com hora certa deve ser realizada cercada de todas as cautelas e de acordo com os requisitos da lei. Um Oficial de Justiça não é um mero copiador e colador de petições. Trabalha nas ruas e favelas das cidades, dia e noite, colocando seu veículo e sua vida em risco, entrando em locais onde nem mesmo a polícia (muito menos advogados) entram, a não ser que sejam os patronos do PCC. Quando certos advogados e parte da população entenderem a importância do Oficial de Justiça, todos teremos a ganhar. Afinal, se o Oficial pode libertar presos nas penitenciárias, executar Reintegrações de Posse, Despejos, Busca e Apreende Veículos e pessoas, cobra e apreende processos nos escritórios de advogados desidiosos, por que não poderia fazer uma citação com hora certa?

Paulo estudante23/05/2014 16:09 Responder

Porque a questão não é o oficial de justiça agir mal intencionado e sim o terceiro ser mal intencionado em relação a intimação e não avisar a pessoa (ex: devido algum motivo pessoal) e assim o oficial de justiça oficializar a intimação sem a pessoa estar sabendo e não tendo sido realizado o direito do contraditório. O problema é a consequencia desta citação, se fosse que nem por edital o processo era suspenso.

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