Cesare Battisti e crimes políticos

Joycemar Tejo, advogado no Rio de Janeiro, pós-graduado em Direito Público.

Fonte: Joycemar Lima Tejo

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Joycemar Tejo ( * )

1. Colocação do tema

Trazemos aqui algumas considerações sobre o status de refugiado, concedido a Cesare Battisti pelo governo brasileiro, mediante decisão do Ministro da Justiça em 13/01/2009. A Itália, que pedia sua extradição, tem protestado contra tal medida, sob o argumento de que Battisti foi condenado não pelas suas idéias (era membro de um grupo de esquerda nos anos 70, acusado de terrorismo), mas sim pelos seus atos- foi julgado por assassinato pela Justiça italiana, cometido no período de militância.

Trazemos aqui questões relacionadas ao assunto, como a definição de crime político e a concessão de asilo como ato de soberania, para que se mostre, a toda evidência, que o reconhecimento da condição de refugiado no caso em comento encontra-se albergado pela boa doutrina jurídica.

2. Crime político- definição

O tema aqui tratado é o chamado "crime político", que possui duas espécies. O crime político próprio é o de opinião- aquele que causa ameaça à ordem institucional, ao sistema vigente. O impróprio é aquele que consiste em crime de natureza comum, mas com conotação, com pano de fundo, político/ ideológico. É o caso de assaltar um banco, por exemplo, para obter fundos para determinado grupo político. Assim explica Delmanto(1): os crimes políticos próprios "somente lesam ou põem em risco a organização política", ao passo que os impróprios "também ofendem outros interesses além da organização política". Ou nas palavras de Acquaviva(2): "O crime político próprio objetiva subverter apenas a ordem política instituída, sem atingir outros bens do Estado ou bens individuais; o crime político impróprio visa a lesar, também, bens jurídicos individuais e outros que não a segurança do Estado".

3. Do pedido de asilo e do reconhecimento da condição de refugiado

Inicialmente, informamos que, não obstante se falar em diferença entre "asilo" e "refúgio"(3), tomaremos ambos aqui como sinônimos, a uma, pela grande confusão que é feita entre os termos, a duas, pelo caráter sintético do nosso trabalho.

Diz Luis Ivani Araújo(4): "Alicerça-se o asilo -que pode ser conceituado como um lugar onde o indivíduo que nele se encontra não pode ser retirado- na necessidade de se proteger o homem vítima de persecução do Estado por motivos políticos que, sem ele, ficaria à mercê das iniqüidades dos detentores do poder".

O artigo XIV, da Declaração Universal dos Direitos Humanos(5) de 1948 assim dispõe: "1. Toda pessoa vítima de perseguição tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. 2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos ou princípios das Nações Unidas."

Note-se que há uma ressalva no trecho transcrito: o direito de asilo não pode ser invocado em caso de crime de direito comum. A legislação brasileira segue o mesmo caminho, como se vê no Estatuto do Estrangeiro(6): "Art. 77. Não se concederá a extradição quando: (...) VII- o fato constituir crime político; (...) § 1° A exceção do item VII não impedirá a extradição quando o fato constituir, principalmente, infração da lei penal comum, ou quando o crime comum, conexo ao delito político, constituir o fato principal". Também a lei 9.474 exclui da condição de refugiado os praticantes de crime comum, em seu art. 3º.(7)

Portanto, toda pessoa vítima de perseguição tem o direito de buscar asilo, contanto que a perseguição tenha fundamento político/ideológico, e não motivada por crime comum. Protege-se a perseguição por crime político próprio, portanto, e não por crime político impróprio.

Anotamos, contudo, o seguinte entendimento de José Afonso da Silva, citado por Savonitti Miranda(8): "Doutrinariamente, José Afonso da Silva afirma que 'é, portanto, inconstitucional o §1° do art. 77 da lei 6.815/80 ao declarar que o fato político não impedirá a extradição quando constituir principalmente, infração da lei penal comum, ou quando o crime comum, conexo ao delito político, constituir fato principal. Ora, o fato principal, para a tutela constitucional, é sempre o crime político. Este é que imuniza o estrangeiro da extradição. Logo, onde ele se concretize, onde ele exista, predomina sobre qualquer outra circunstância, e, portanto, não cabe a medida, pouco importando haja ou não delito comum envolvido, que fica submergido naquele'". Vale dizer, o caráter político absorverá o caráter comum do crime, mantendo-se a vedação da extradição.

4. O caso Cesare Battisti

Pois bem- tendo Battisti sido condenado por crime comum (assassinato), não seria, à primeira vista, perseguido político, não fazendo jus à concessão de asilo. Mas surge o ponto nodal da questão- o modo pelo qual se deu tal condenação. Como fundamentado pelo Ministro da Justiça, na decisão reconhecedora do status de refugiado(9), além da revelia do julgamento, o magistrado italiano baseou-se em um único testemunho (à base da delação premiada, isto é, através de um delator, ex-companheiro de Battisti, em troca de benefício), como elemento para condenação. Portanto, além da falta de consistência do julgado, somemos o caráter da luta política de Battisti à época. Parece claro haver teor persecutório político.

5. A soberania do Estado asilante

A concessão do asilo é ato soberano do país concedente. Daí dizer José Afonso da Silva(10): "Cabe ao Estado asilante a classificação da natureza do delito e dos motivos da perseguição". Assim, todo Estado tem o direito de conceder asilo, de modo que "se trata de assunto interno". É o Estado asilante quem deliberará sobre a natureza do ato imputado; uma vez entendido que possui caráter político, tem o condão de outorgar o status de refugiado.

Portanto, em que pese o protesto das autoridades italianas, o Estado brasileiro, no exercício de sua soberania, entendeu por reconhecer a condição de refugiado- tal decisão há de ser respeitada, à luz dos princípios basilares de Direito Internacional.

6. Conclusão

Os delitos imputados a Cesare Battisti têm natureza política; mesmo que se enxergue neles crime político impróprio (comum), pode-se invocar a tese de que, havendo pano de fundo político, o político absorve o comum. Ademais, a condenação se deu de forma nebulosa, baseada em mero testemunho de delator premiado- acrescente-se a isso o período conturbado de repressão política em que se deu o julgamento, e o vício da condenação assume ares evidentes. Uma vez reconhecido o status de refugiado, qualquer pedido de extradição em curso perde o objeto, devendo ser arquivado, sendo a decisão do Ministro da Justiça irrecorrível(11).

Desta feita, concluímos que o trâmite, e o desfecho, do caso Cesare Battisti, com o reconhecimento de sua condição de refugiado, encontram-se de acordo com o ordenamento vigente. Cabe aos descontentes, o governo italiano, inclusive, aceitar o ato soberano de reconhecimento da condição de refugiado.


Notas:

* Joycemar Tejo, advogado no Rio de Janeiro, pós-graduado em Direito Público. [ Voltar ]

1 - DELMANTO, Celso [et al]. "Código Penal Comentado". p.64. 7.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.Voltar

2 - ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. "Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva". p. 427. 12. ed. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2004.Voltar

3 - O CONARE diz ser o asilo decorrente de perseguição particular, e o refúgio, quando se trata de grandes fluxos de pessoas, decorrente de guerra ou invasão armada, por exemplo. Mas observe-se que a própria decisão do Ministro da Justiça, no caso Battisti, fala no reconhecimento da condição de REFUGIADO, não obstante tratar-se de caso individual.Voltar

4 - ARAÚJO, Luis Ivani de Amorim Araújo. "Curso de Direito Internacional Público". p.97. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.Voltar

5 - PIOVESAN, Flávia. (coord). "Código de Direito Internacional dos Direitos Humanos Anotado". p.17. São Paulo: DPJ, 2008.Voltar

6 - Lei 6.815 de 1980. "Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração".Voltar

7 - Lei n° 9.474 de 1997. "Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências". Voltar

8 - MIRANDA, Henrique Savonitti. "Curso de Direito Constitucional". p.255. 5.ed. Brasília: Senado Federal, 2007.Voltar

9 - A decisão, na íntegra, aqui: http://www.4shared.com/fileVoltar

10 - SILVA, José Afonso da. "Curso de Direito Constitucional Positivo". p.340. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.Voltar

11 - DALLARI, Dalmo. "Refúgio concedido, extradição impossível". Em http://jbonline.terra.com.br/nextra, acesso em 26/ 01/ 2009.Voltar

Palavras-chave: Cesare Battisti

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3 Comentários

Carlos Bonasser Advogado21/02/2009 14:35 Responder

Caro Professor Joycemar, li seu texto e vejo que ao fazer alusão à Lei do Refugiado, a decisão do ministro Tasso cai por terra, visto que o criminoso italiano encontra-se enquadrado nos incisos III e IV do art. 3ª da referida Lei. Jamais o Brasil deveria ter concedido refugio, o elemento não preeenche os pressupostos requeridos nos dispositivos legais. Há um País inteiro clamando e se justificando de forma oficial, pondo à disposição das autoridadesw do brasil todas as informações e os responsaveis dão credito a um elemento que está coberto pelo manto das estorias mirabolantes e fugas sem fim. Creio que estamos nesse caso invertendo valores. Esse elemento diz qualquer coisa e o Estado brasileiro acena positivamente com a cabeça; o ESTADO e a NAÇÃO italiana se justificam de todas as formas e não as aceitamos, algo está. errado. Vejo nesse episódio um cheiro ruim de ideologia vermelha barata, sem mais sustentação nos dias de hoje. Invocar soberania das nossas decisões sem contudo respeitar a soberania da Justiça italiana é não ter respeito pela sociedade brasileira e pelo cargo que ocupa.

Joycemar Tejo Advogado17/04/2009 15:33 Responder

Prezado Carlos, agradeço seu comentário. O tema é rico e, como em tudo no Direito, suscita controvérsias. O debate é justamente o que permite a evolução dialética da ciência jurídica. No que tange ao caso Battisti, sustento minha posição. O Direito Penal nos mostra que a condenação foi ilegal e abusiva, de modo que, à luz dos Direitos Internacional e Constitucional, a concessão do status de refugiado (ou asilado, como queira) foi correta. É um entendimento, naturalmente, e pode estar equivocado. Mas estou bem secundado, dentre outros, pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, que em moção aprovada no dia 04/ 03 apoiou a decisão do governo brasileiro, e pelo constitucionalista José Afonso da Silva (nome mais autorizado que o meu) cujo parecer sob o caso, feito a pedido do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, é um primor de doutrina jurídica. O parecer está aqui: http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=16483. Mais uma vez, agradeço o comentário, e que possamos sempre, através do diálogo, enriquecer os temas jurídicos. Com abraços fraternos,

Joel Policial em Brasília11/09/2013 20:16 Responder

Caro, doutor, A mim quer parecer que, o status de refugiado político de Cesare Battisti no Brasil, decorre apenas por parecer ideológico do governo brasileiro. Isto porque, não cabe ao Brasil redefinir pena de qualquer condenado por outro país. Ainda mais nas circunstâncias em ocorreu a do refugiado em comento, envolvido direta ou indiretamente em crimes de assassinatos, assaltos etc.

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