A ideologia vingativo-punitiva do sistema penal

Maurício Gonçalves Saliba, Mestre e Doutor em educação pela UNESP de Marília; Professor de sociologia e política da Faculdade Estácio de Sá de Ourinhos e do programa de mestrado em Direito da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro-Fundinopi. E-mail: mauricio.saliba@terra.com.br. Marcelo Gonçalves Saliba, Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Mestre em Ciências Jurídicas pela Fundinopi, Professor de Direito Penal das Faculdades Integradas de Ourinhos - FIO. E-mail: marcelo.saliba@terra.com.br.

Fonte: Marcelo Gonçalves Saliba e Maurício Gonçalves Saliba

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Maurício Gonçalves Saliba e Marcelo Gonçalves Saliba ( * )

A sociedade brasileira encontra-se uma vez mais estarrecida e dilacerada diante de um horrendo crime. O fato concreto é que uma criança é morta em frente aos familiares e demais moradores do bairro, num ato de crueldade e desumanidade. A violência no Brasil aumentou na mesma proporção do desemprego, da miséria e do aprofundamento das desigualdades sociais.

A imprensa repercute incessantemente o crime e os políticos, aproveitando-se da comoção geral, se movimentam para recrudescer o sistema penal. É importante que saibamos considerar os fatos de forma racional e ponderada para não cometermos injustiças. Devemos ter cautela para não cairmos no clima apelativo e sensacionalista da grande mídia. A história nos mostra que em tempos de comoção as portas se abrem para ações antidemocráticas e autoritárias. Quem conhece o processo de ascensão do fascismo/nazismo saberá do que estamos falando.

A opinião de todo mundo é a opinião de quem? Das pessoas que escrevem os jornais, dos intelectuais que pregam "menos Estado" e que enterram depressa demais o público e o interesse do público pelo público....Temos aí um exemplo típico desse efeito de crença compartilhada, que põe imediatamente fora de discussão teses que deveriam ser discutidas para valer. Seria preciso analisar o trabalho coletivo dos "novos intelectuais", que criou um clima favorável ao retraimento do Estado e, mais amplamente, à submissão aos valores da economia (BOURDIEU, 1998, p. 15).

Por um lado, é importante observarmos que parcela da mídia sedenta por informações trágicas, mais interessada em índices de audiência do que na compreensão dos motivos e da busca de soluções dos problemas, difunde detalhadamente a notícia da morte e ela ressoa por todos os lados: depoimentos de familiares e amigos; imagens da criança; desespero.

Por outro lado, devemos avaliar esses acontecimentos numa outra perspectiva, para apontarmos soluções concretas e eficientes para o futuro. Para isso, precisamos nos afastar do discurso da vingança, cuidadosamente ensaiada na excitação pública dos políticos midiáticos.

Nossa primeira crítica será sobre a cobertura da grande mídia, uma vez que em nenhum momento ela se aprofunda nas causas e nos fatores que motivam um crime. Não há interesse nas razões que levam certas pessoas a cometer delitos violentos, valorizando mais o objeto de seu roubo, no caso um automóvel, do que a vida de uma criança. As análises, quando feitas, restringem-se a um conteúdo supérfluo, emocional, e retomam conceitos empiricamente difundidos: loucura; desrazão; delinqüência. É a compreensão mais simples e a que nos permite dizer que nenhuma participação tivemos com aquele episódio.

Por exemplo, a cobertura jornalística da maior emissora do país, utiliza-se, nos casos de violência, da mesma estratégia de seu programa policial intitulado "linha direta". O ardil, de conotação piegas, sensacionalista e apelativa, despreza o passado e a história de vida do "criminoso" e valoriza sobremaneira a vítima. Somente a vítima tem família, passado e amigos. O "criminoso" é apresentado ao público como um animal raivoso, que possui predisposição ao crime e prazer mordaz no massacre de suas vítimas. Ignora-se seu contexto social e sua história de vida. Separa, de modo simplista e pueril, em indivíduos "do bem" e "do mal". Os criminosos são sempre classificados como doentes; assassinos; loucos e matadores. A opinião sobre a punição mais adequada é fornecida por todos aqueles que compartilham de uma ideologia sancionatória, havendo preferência e prevalência sobre as mais duras: pena de morte; enforcamento; prisão perpétua.

Costuma-se dizer que a televisão torna muito mais clara e transparente a característica anárquica do jornal. O jornal é anárquico porque a essência da imprensa é misturar as coisas, desorganizar a estruturação racional da realidade e jogar o leitor num amontoado de fatos desconexos sem nenhuma lógica interna. Ao lado das manchetes que falam dos saques a estabelecimentos comerciais, do aumento dos roubos e assaltos (...) convivem pacificamente manchetes sobre vedetes, novos casamentos artistas de TV, sugestões para ganhar na loto e a vitória arrebatadora do time de futebol (MARCONDES FILHO, 1992, p. 53-4).

É bom ficar claro que, a rigor, a mídia não mente! Se tudo fosse mentiras não possuiria poder de persuasão. É verdade que o menino foi barbaramente assassinado, que muitos assassinatos acontecem de forma violenta e que no Brasil há muita impunidade, mas está oculto que isso é apenas uma parte da verdade. É possível criar uma farsa utilizando-se de verdades, desde que habilmente manipuladas. Para Marcondes Filho (1992) na TV, as pequenas manchetes, com pequenos assuntos misturados durante o noticiário, têm o efeito de distrair o telespectador sem que ele tenha tempo de refletir sobre elas, dando a falsa impressão de que está informado. Entretanto, não se quer dizer com isso que todos são inocentes e que devem continuar livres e sem punição, mas o que estamos afirmando é que as causas dessas barbáries são sempre dissimuladas e sorrateiramente escondidas. O motivo dessa manipulação está no desejo da classe dominante de não revelar as verdadeiras causas que, inevitavelmente, estariam na estrutura social do país. As mudanças necessárias atingiriam muitos interesses, tais como distribuição de renda, reforma agrária, investimento na educação pública. É evidente que países com menos desigualdades sociais são países menos violentos, mas é mais interessante, e politicamente mais vantajoso, recrudescer a pena, através de propostas como a de diminuição da maioridade penal, do que alterar nossa arcaica e injusta estrutura social. A utilização da estratégia de "fragmentação da notícia" é um mecanismo de descontextualizá-la, tornando o fato "personificado", ou seja, há sempre uma pessoa culpada pela ocorrido.

Sobre a grande mídia, há outra questão oculta em seu discurso ideológico, a destacar: a vida das pessoas não tem o mesmo valor! Há vidas que valem mais e vidas que valem menos. A vida de um menino de classe média vale muito mais do que a de um menino pobre. É só observar a reação que provoca. Quantos meninos estão morrendo nesse momento em razão da violência nas periferias e do descaso das autoridades públicas? Quantos meninos estão sendo espancados pelo simples motivo de serem pobres e não terem voz? Quantos meninos estão com seu futuro sacrificado por não poder se alimentar de forma adequada? Essa violência parece "coisas da vida", impossíveis de serem alteradas!

(...) as pressões da concorrência se conjugam com as rotinas profissionais para levar a televisão a produzir a imagem de um mundo cheio de violências e de crimes, de guerras étnicas e de ódios racistas, e a propor à contemplação cotidiana de um ambiente de ameaças incompreensíveis e inquietantes, do qual é preciso se manter distante e se proteger, uma sucessão absurda de desastres sobre os quais não se compreende nada e nada se pode fazer (BOURDIEU, 1998, p. 102).

Quem se recorda quando cinco crianças foram mortas enquanto dormiam sob a marquise da Igreja da Candelária no Rio de Janeiro, na madrugada de 23 de julho de 1993, na conhecida "chacina da Candelária"? Naquele momento quantas vozes se levantaram pedindo punição e exigindo justiça? Algumas vidas valem mais, outras valem menos! Por quê?

Talvez uma parte da resposta esteja na constatação de que vivemos numa sociedade pós-moderna com valores materiais muito bem definidos, mas valores pessoais esquecidos. A(s) comunidade(s) não mais existe(m) e nosso contato com outras pessoas tornou-se desprazeroso; as praças e demais locais públicos foram substituídos por lojas de departamento ou shoppings; as atividades de lazer se realizam em áreas fechadas; os bairros residenciais isolaram-se do restante da cidade; as residências isolaram-se das residências vizinhas, ao ponto de vizinhos não mais se conhecerem. Esse isolamento não é um acontecimento descompassado daquilo que se convencionou chamar "projeto da modernidade", mas encontra-se marcado por suas veias.

Ao nos isolarmos e nos afastarmos do contato das pessoas, dentro daquilo que Caldeira denominou "enclaves fortificados" (CALDEIRA, 2000, p. 214), estamos executando um processo de exclusão social e as favelas ou os guetos representam a máxima exclusão e eliminação do ser humano, num modelo de dominação e inutilização, característico das sociedades capitalistas. Nossa opção foi por bens materiais e não pessoais; preocupamo-nos com bens materiais e não com pessoas.

A criminalidade, violenta ou não, não é a antítese da nossa sociedade, mas representa a outra face da moeda, o que nos faz lembrar de uma conclusão de Bauman sobre a modernidade e o holocausto, onde "as duas faces estão presas confortavelmente e de forma perfeita ao mesmo corpo. O que a gente talvez mais tema é que as duas faces não possam mais existir uma sem a outra, como verso e reverso de uma moeda" (BAUMAN, 1998, p. 26). Ela não está restrita a um Estado determinado, nem se restringe à grupos sociais ou classes econômicas, mas se encontra difundida em nossa sociedade, sendo mais acentuada em algumas regiões que em outras. O caminho que optamos percorrer nos leva para a intensificação dos conflitos e dos atos criminosos, numa difusão ainda maior por todos os grupos ou meios sociais.

Os agentes políticos iniciaram uma nova discussão legislativa para apaziguar os ânimos e fazer crer que o sistema repressivo, com o aumento da punição, é a medida acertada para solucionar a criminalidade. Contudo, o direito repressivo ou, direito penal, somente produz mais problemas, exigindo-se a busca de algo melhor. O tradicional modelo de justiça penal está calcado no conflito e na imposição de uma pena, sem qualquer participação dos litigantes ou comunidade ofendida, o que aumenta as lides sociais, não permite a restauração das partes e não apresenta uma solução efetiva, com preparação dos envolvidos, para conflitos futuros.

A proliferação de leis penais ou sua rigidez em nada contribuiu para a diminuição da criminalidade, mas, ao contrário, aumenta o fosso da exclusão. Alguns países ditos de primeiro mundo fizeram do sistema penal uma empresa capitalista, a gerar lucros extraordinários para seus acionistas. Desse modo, aos enclausurados resta a lamentação, por desconhecer os motivos que os colocaram do lado errado da moeda. Ao menos, nesses países, sem qualquer hipocrisia, um valor econômico foi agregado ao "pobre", ou seja, alcançou a condição de mercadoria, um bem material. Essas medidas penalizadoras, adotadas em épocas em que a sociedade está fragilizada e aterrorizada, caminha em sentido oposto aos direitos humanos e dignidade da pessoa humana.

Uma revolução paradigmática, a superar essa "pedagogia do castigo" (PASSETTI, 2004, p. 16), impondo novos valores e conceitos, reavaliando dispositivos legais e punitivos, e possibilitando soluções específicas dentro de um processo de soberania e cidadania participativa com razão comunicativa, tem de ser implementada. O diálogo entre a(s) comunidade(s) e as pessoas tem de dar lugar ao monólogo punitivo, exigindo-se uma relação horizontal e não vertical. A materialidade de nossas ações tem de ser superada pela humanidade, pois senão estaremos fadados a nos acostumar com a hediondez e a brutalidade. Karan destaca a importância dessa relação jurídica horizontal, igualitária, com comprometimento social e comunitário, com opções de composição, para a restauração do conflito:

o enfrentamento de conflitos, através de vias de conciliação alternativas ao processo já é, em si, fonte de maior eficácia no restabelecimento da chamada paz social. Permitindo uma participação mais livre e mais ativa das partes diretamente envolvidas, com a intermediação de pessoas que, integrando a comunidade, lhes sejam psicologicamente mais próximas, as vias alternativas de conciliação podem permitir um exame das causas mais profundas do conflito enfrentado (KARAN, 2002, p. 150).

Será que chegaremos ao dia em que, ao invés de clamarmos por mais pena, pois sempre serão insuficientes, clamaremos por menos desigualdades econômicas? Será que viveremos um dia numa sociedade ética, no sentido de se "admitir que meus interesses não podem contar mais que os interesses alheios, pelo simples fato de serem meus interesses" (SINGER, 2002, p. 21). Isso pode ser definido na idéia de que eu posso sonhar em ter um monte de coisas, mas não devo tê-las, pois o custo social que terei que pagar por esse acúmulo é maior que o seu deleite individual!

Os gritos emocionados que hoje ecoam não são por justiça, mas por vingança! Justiça é algo muito mais amplo que passa, inevitavelmente, pela busca da igualdade social.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade - a busca por segurança no mundo atual. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

____________. Modernidade e holocausto. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros. Crime, segregação e cidadania em São Paulo. Tradução de Frank de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000.

KARAN, Maria Lúcia. O processo de democratização do Estado e o Poder Judiciário. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. N. 12, Rio de Janeiro: Revan, 2002.

MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão: a vida pelo vídeo. São Paulo: Moderna, 1992.

PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

SINGER, Peter. Ética prática. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.


Notas:

* Maurício Gonçalves Saliba, Mestre e Doutor em educação pela UNESP de Marília; Professor de sociologia e política da Faculdade Estácio de Sá de Ourinhos e do programa de mestrado em Direito da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro-Fundinopi. E-mail: mauricio.saliba@terra.com.br.

Marcelo Gonçalves Saliba, Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Mestre em Ciências Jurídicas pela Fundinopi, Professor de Direito Penal das Faculdades Integradas de Ourinhos - FIO. E-mail: marcelo.saliba@terra.com.br. [ Voltar ]

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3 Comentários

Marines Aparecida Magarotti Advogada20/06/2007 10:28 Responder

Gostaria de parabenizá-lo pela excelente matéria e compartilhar com todos um pensamento que acredito que deveria nortear a vida de todos nós. “E Deus, falando à multidão anunciou. "A partir de hoje chamar-me-eis Justiça". E a multidão respondeu-lhe: "Justiça nos já a temos e não nos atende". "Sendo assim, tomarei o nome de Direito". E a multidão tornou-lhe a responder: "Direito já nós o temos e não nos conhece". E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito". Disse a multidão: "Não necessitamos de caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite". José Saramago Que todos nós possamos ser respeitados e tratados como iguais, pois não existe distinção alguma entre nós, devemos tratar a todos como gostaríamos de ser tratados, só assim podemos transformar esse mundo, em um lugar melhor. Felidades e espero que um dia consigamos ver esse mundo tão sonhado.

Fred Gran Tanaka Gonçalves advogado/economiário20/06/2007 11:34 Responder

É um prazer ler um artigo como este, que tem o condão de desmascarar a imprensa, que a todo momento fica iludindo a população como um todo e dando opiniões sobre bens jurídicos de proteção maior sem a mínima formação jurídica. Recomendarei a leitura do texto para todos meus amigos e incentivo os autores a continuarem este trabalho, para conscientização social e colocar aquela migalha necessária por cada um de nós na mudança deste mundo cruel e desigual.

Luis Carlos Amaral empresário20/06/2007 18:19 Responder

Com todo o respeito, parece que o nobre autor quer fazer crer que as “elites” é que são culpadas pela barbárie. O autor não deve esquecer que, queira ou não, também faz parte das “zelites”. A imprensa, por seu lado, só faz noticiar os fatos e não é culpada por nenhuma violência. Boa é Imprensa venezuelana, que já não pode noticiar nada sem censura. Fora da punição ao crime, não há salvação!

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