Xô, trevas! Entenda a Idade Média
Le Goff[1] propõe uma visão global da Idade Média, guiada para a densidade concreta, rotineira e lenta da vida cotidiana. Em verdade, a cultura medieval marcou muito grande parte da aventura da história do Ocidente, deixando traços, que de tão rotineiros, se tornaram invisíveis. Não há trevas. A Idade Média está no purgatório, uma ideia desenvolvida pelos anos 1170 quando se percebeu a mudança no vocabulário do adjetivo purgadores para o substantivo purgatório. Trata-se de um lugar intermediário, no qual os mortos se beneficiavam de um período suplementar de expiação para enfim obterem a salvação, e não se restringiu à seara religiosa, mas afetou as estruturas sociais, os comportamentos e também as mentalidades coletivas. Precisamos lançar mão da interjeição: Xô trevas! para iluminar nossa compreensão sobre o medievo
Há um errôneo preconceito a se
referir à Idade Média como sendo o "período das trevas" o que
concretiza um grosseiro equívoco. Afinal, foi na ambiência medieval e no
significado do medievo que se deu a fundação da Europa.
Exatamente no bojo da Idade
Média que se gerou o mundo moderno. E, onde germinaram os fundamentos da
ciência moderna e a contemporânea. Foi a pecha de obscurantista que os críticos
liberais se insurgiram contra a Renascença e que se formou no Baixo Medievo.
A Renascença não começou com
os humanistas, mas sim, com Francisco de Assis, e significou a eclosão contínua
de diversas renascenças, como a carolíngia, a do século XII[2], a Franciscana, a
Otoniana, a Escolástica e a Nominalista.
Aliás, foi a Escolástica[3], ocorreu com a Patrística[4] o encontro do Cristianismo
com o mundo. Esse encontro foi preparado pelos padres gregos, sobretudo
Clemente e Orígenes. Foi o momento da maturidade do platonismo, que iluminou
toda a Idade Média.
A autoridade coerciva da
Igreja estava consubstanciada no Direito Canônico, definido como o ramo do
direito que trata de cinco assuntos principais: jus, judicium, clerus,
connubia e crimen. Abrangia todos os casos de pecado (em contraste com o
crime, que é de competência dos tribunais leigos), e todos os casos
respeitantes às igrejas, às pessoas do clero e seus bens (exceto quando isso
era mantido em domínio laico).
A partir do século XII, o Direito
Canônico[5] da Igreja ocidental foi reunido
em cinco grandes coleções oficiais tais como o Decretum de Graciano, as
Decretais gregorianas, a Sexta, as Clementinas e as Extravagantes — as quais
formam juntas aquela seção do direito Canônico que se designa por Jus Novum.
Era considerado obrigatório para todas as pessoas batizadas, e tribunais
eclesiásticos zelavam por seu cumprimento em todas as partes da Cristandade
ocidental.
Apesar de a civilização
medieval foi uma civilização eminentemente religiosa, mas não divorciou o homem
da terra. Com o nascimento das cidades aceleraram-se as trocas, desenvolveu-se
o comércio.
Delinearam-se as bases de uma
economia monetária. Não há erro em dizer que no século XII estabeleceram-se
princípios econômicos que ainda hoje regem a nossa civilização.
De fato, a Idade Média possuía
uma sociedade intensamente hierarquizada e, por isso, fora placo de tantas
revoltas sociais contínuas e que tiveram seu paradigma na Jacquérie[6], onde os camponeses
oprimidos tentaram quebrar as correntes do feudalismo, assassinando muitos
senhores feudais e violando suas mulheres. Foi em 1358 que se deu a mais
sangrenta de todas as revoltas, do século XIV.
Destaque-se o fato singelo,
mas que fulmina o mito do obscurantismo medieval. Este é encontrado no traje, sobretudo
no vestuário feminino. A Idade Média tinha aversão às cores sombrias. As
mulheres medievais usavam roupas que seguiam a linha do corpo, expondo-lhes
sobretudo o busto e não tinham nada de monacal. Serviam ao corpo e não à alma.
Porém, a valorização da mulher
padeceu, na Idade Média, de grave limitação, consubstanciada no “direito de
pernada”: versão popular do ijus primae noctis. Significando que a
camponesa que casasse era obrigada, na primeira noite de núpcias, a entregar a
sua virgindade ao patrão ou ao capataz por ele indicado.
Lembremos de Abelardo que foi
a primeira figura do intelectual moderno, um autêntico cavaleiro da dialética[7]. E, o seu romance com
Heloísa[8] que foi um amor que
realçou o significado da mulher no mundo, reforçando a tese do amor natural.
O estudo da dialética, no
sistema educativo medieval, adquiriu pleno destaque frente às demais áreas de
pesquisa. Tornou-se um domínio do saber que assegurava ao homem, de um modo
racional, a possibilidade de discernir o discurso verdadeiro do falso. [...] A
dialética era empregada para uma análise racional de problemas, inclusive os do
âmbito da teologia.
Já no século XIII, o ponto de
partida da reflexão econômica é o mesmo de Adam Smith: o problema da divisão do
trabalho[9]. Em um curso ministrado em
1763, em Glasgow, Adam Smith conservava ainda o esquema do tratado dos
escolásticos. Só posteriormente, no Inquérito sobre a natureza e as causas da
riqueza das nações, separará a filosofia moral da ciência econômica,
emancipando esta última.
O latim, língua comum, se
assim podemos dizer, perde a sua hegemonia cultural. Surgem as línguas
nacionais. Começa a se desenvolver uma analogia entre o mundo e o homem, entre
o macrocosmo e esse universo em miniatura que é o ser humano.
A Idade Média foi constituída
de ciclos, a saber: o de Carlos Magno, o de Alexandre, o Grande, o de Rolando[10], o do Rei Artur[11], do qual demanda um ideal
de justiça e de fé religiosa, de procura da bem-amada inatingível, da
galanteria cavaleiresca, dos sentimentos de honra, do misticismo e das façanhas
guerreiras.
Mas esses ciclos guardaram
entre si profundas diferenças. No bretão, predomina o sentimento amoroso; no
ciclo carolíngio, a predominância é guerreira[12].
Ninguém ignora que o lirismo
trovadoresco[13]
derivado das formas da poesia da Igreja Cristã, apesar dos trovadores
provençais[14]
serem heréticos e anticlericais.
A educação na Idade Média foi
um luxo sempre reservado à minoria;
estava principalmente organizada para benefício do sexo masculino e, na medida
em que era acessível ao leigo, o mais provável é que fosse solicitada, na grande maioria dos
casos, por aqueles que precisavam
adquirir algum conhecimento no governo, na administração ou no comércio, e por aqueles que podiam se
permitir dedicar-lhe seu tempo e seus
recursos materiais.
Havia grande divergência entre
teoria e prática na estrutura da educação formal. As disciplinas estavam
divididas, em termos nocionais, nas sete artes liberais: gramática, retórica e
dialética (o +), aritmética, geometria, astronomia e música (o Quadrivium),
e as matérias de nível superior, que eram a teologia, o direito e a medicina.
Mas, enquanto a divisão das
matérias de ensino superior estava estritamente refletida na organização da
universidade, pelo menos até o final da Idade Média, no nível inferior, não se
tratava na realidade de um programa de estudo mas de uma estrutura conceitual indefinida,
no âmbito da qual havia grande liberdade de variação de ênfase e de
desenvolvimento.
Os professores podiam selecionar
e dar maior destaque às matérias conforme seu próprio interesse, ou ainda,
discutir aqueles tópicos e textos que consideravam mais importantes para a sua época.
Finalmente, alguns, como Hugo
de Saint-Victor[15],
propuseram classificações alternativas, se bem que estas continuassem sendo também
modelos de teoria pedagógica, muito mais do que causa para uma revolução no que
era realmente ensinado.
Os elementos do Quadrivium[16],
os quais também poderiam, sem dúvida, serem ensinados em escolas de nível médio,
ou escolas de gramática, tornaram-se frequentemente o foco de um tipo diferente
de escola, conhecida em sua forma mais humilde como uma escola de “ábaco”,
muito próxima de uma escola de comércio na gama de qualificações aí ensinadas
(por exemplo, qualificações notariais e dictamen, a arte de escrever
cartas).
A sala de aula medieval
refletia a natureza preponderantemente oral da cultura medieval, com o
professor lendo e explicando o texto, e o estudante absorvendo-o e confiando-o
à memória; a capacidade da memória
estava altamente desenvolvida na Idade Média.
Essa ênfase na transmissão
oral impregnou todos os níveis de educação e afetou o método de estudo e
exercício (por exemplo, o debate e o diálogo), a estrutura dos compêndios e até
mesmo as atitudes ainda hoje contemporâneas[17].
Hoje, felizmente, grandes historiadores ingleses e franceses, dentre os quais se destacam Georges Duby e Jacques le Goff, Guy Fourquin e George Holmes, estão desmontando o mito[18] alinhavado pelos historiadores liberais do século XIX, sobretudo por Michelet.
Referências
ABELARDO, P. A História das
Minhas Calamidades (carta autobiográfica). Tradução de Ruy Afonsa da Costa
Nunes. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973.
LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro:
Editora Civilização brasileira, 2005.
LOYN, H.R. (Organizador). Dicionário
da Idade Média. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1989.
Notas:
[1]
Jacques Le Goff foi um historiador francês especialista em Idade Média. Autor
de dezenas de livros e trabalhos, era membro da Escola dos Annales, pertencente
à terceira geração, empregou-se em antropologia histórica do ocidente medieval.
Recebeu o Prêmio Gobert em 1996. Em sua obra intitulada "Em busca da Idade
Média" que um trabalho apaixonado capaz de projetar uma imagem completa e
articulada das diversas facetas do homem na Idade Média.
[2]
A partir do século XII o direito passou a ser estudado nas universidades,
instituições recentemente criadas que não estavam dependentes das escolas dos
mosteiros e que, por conseguinte, conferiram importância às disciplinas
lecionadas individualmente. No âmbito do direito urbano verificou-se nos
séculos XII e XIII a criação de cidades novas com aplicação da legislação de
outros núcleos urbanos existentes, fossem estes de grande importância ou não,
tornando-se as segundas dependentes das primeiras. Entre os códigos
legislativos sistematizados e instituídos nesta altura destacam-se o de Lübeck
(Alemanha), de Teruel e de Cuenca (Espanha).
[3]
A Escolástica foi um período da Filosofia Medieval em que a filosofia
aristotélica e a junção entre fé e razão ganharam centralidade para explicar os
elementos teológicos. Tomás de Aquino foi um padre e professor católico
medieval, representante do período escolástico da Filosofia.
[4]
A Patrística foi uma vertente filosófica que teve início no período de
transição entre a Antiguidade e a Idade Média. O nome “Patrística” faz uma
referência aos primeiros padres da Igreja Católica, que se dedicaram a
desenvolver uma filosofia que se aproximava do pensamento cristão e do
conhecimento religioso
[5]
Direito Canônico é o conjunto de leis que rege a estrutura institucional da
Igreja Católica Apostólica Romana. Ele regulamenta todos os segmentos da vida
eclesiástica; sua organização, governo, ensino, culto, disciplina e práticas
processuais. O Direito Canônico é de fundo religioso, como são os Direitos
Muçulmano, Hindu e Hebraico, edificando regras sobre preceitos divinos,
aspergidos de livros sagrados, no caso, o Antigo e o Novo Testamento.
[6]
A Grande Jacquerie foi uma revolta camponesa que ocorreu em 1358 em diversas
regiões do norte da França, tais como: Ilha de França, Picardia, Champanhe,
Artésia e Normandia. O cronista
aristocrático Jean Froissart e sua fonte, a crônica de Jean le Bel,
referiam-se ao líder da revolta como Jacque Bonhomme ("Jack Goodfellow"),
embora na verdade o "grande capitão" Jacquerie se chamasse Guillaume
Cale. A palavra jacquerie tornou-se sinônimo de revoltas camponesas em
geral tanto em inglês quanto em francês.
[7] O pai de Pedro Abelardo (1079-1142) era
militar, porém o filósofo não seguiu seus passos, preferiu seguir o caminho da
docência e do estudo da dialética. Conhecido como “cavaleiro da dialética”, ele
proferiu em suas calamitates: “[...] renunciei completamente à corte de Marte
para ser educado no regaço de minerva. E, visto que eu preferi as armas dos
argumentos dialéticos a todos os ensinamentos da filosofia, troquei as outras
armas por essas e antepus os choques das discussões aos troféus das guerras.”.
[8]
Heloísa tornou-se discípula de Abelardo e ambos viveram um apaixonado romance,
contra a vontade do tio e tutor da jovem, Fulbert. Tiveram um filho,
Astrolábio, e se casaram secretamente em Paris, após muita resistência da
jovem, que se recusava a se unir ao amado pelo matrimônio.
[9]
A divisão do trabalho, na medida em que pode ser introduzida, gera, em cada
oficio, um aumento proporcional das forças produtivas do trabalho. A
diferenciação das ocupações e empregos parece haver-se efetuado em decorrência
dessa vantagem.
[10]
Rolando em francônio: Hrōþiland; em latim medieval: Hruodlandus
or Rotholandus; em italiano: Orlando ou Rolando) foi um líder militar
franco sob o comando de Carlos Magno que se tornou uma das principais figuras
do ciclo literário conhecido como a Matéria da França. O histórico Rolando foi
governador militar da Marcha bretã, responsável pela defesa da fronteira da
Francia contra os bretões. Seu único atestado histórico está na Vida de Carlos
Magno de Eginhardo, que observa que ele fazia parte da retaguarda franca morta
em retribuição pelos bascos na Península Ibérica na Batalha de Roncesvales.
[11]
Rei Artur é um lendário líder britânico que, de acordo com as histórias
medievais e romances de cavalaria, liderou a defesa da atual Grã-Bretanha
contra os invasores saxões no final do século V e no início do século VI. Os
detalhes das histórias Arturianas são em sua maioria compostos por folclore e
invenções literárias, e sua existência histórica é motivo de debate acadêmico
entre os historiadores contemporâneos. O contexto histórico escasso sobre Artur
foi construído a partir de várias fontes, incluindo o Annales Cambriae,
a História Brittonum e os escritos de Gildas. O nome de Artur também é citado
em poesias medievais, como a de Y Gododdin.
[12]
No fim da Idade Média, na Europa deu-se a crença generalizada em bruxas
canibais e adoradoras do Diabo e que praticavam o mal por meio de habilidades
mágicas. E, a crescente perseguição culminaria em grandes caçadas que nos
séculos XVI e XVII produziram muitas mortes.
A magia branca, com suas inúmeras manifestações por toda a Europa,
estava frequentemente associada, o que não deixa de ser uma ironia, aos
símbolos sagrados e poderes mágicos da Igreja, e suas celebrações persistiram
mesmo depois do advento do Iluminismo.
[13]
O trovadorismo é um movimento literário que esteve marcado pela produção de
cantigas líricas (focadas em sentimentos e emoções) e satíricas (com críticas
diretas ou indiretas). Considerado o primeiro movimento literário europeu, ele
reuniu registros escritos da primeira época da literatura medieval entre os
séculos XI e XIV. Embora o trovadorismo tenha surgido na região da Provença
(sul da França), ele se espalhou por outros países da Europa, pois os
trovadores provençais eram considerados os melhores da época, e seu estilo foi
imitado em toda a parte.
[14]
O "eu lírico" (sujeito que expressa os sentimentos do autor) compõe
um poema que trata do fazer poético (deseja fazer uma cantiga de amor conforme
os modelos convencionais da Provença, região do sul da França, onde surgiram os
primeiros poemas desse tipo. Trata-se do uso da metalinguística, pois usa o
código de comunicação como assunto ou explicação para o próprio código. É o que
fazem os dicionários, mas é também comum em textos literários, quando o
escritor se volta para as formas de construção do texto.
[15]
Hugo de São Vítor, C.R.S.A. foi um filósofo, teólogo, cardeal e autor místico
da Idade Média. Nascido na Saxônia, no Sacro Império Romano-Germânico, foi um
importante professor da escola do mosteiro da Abadia de São Vítor, em Paris,
tendo recebido seu nome por isso. Nas duas obras do mestre medieval Hugo de
Saint-Victor (1096-1141): Didascalicon, da arte de ler e de
sacramentis christianae fidei. A História da Educação, compreende-se que a
reflexão sobre valores, independentemente de seu período histórico de
elaboração, é pertinente à formação humana. Assim, entende-se que passado e
presente estão relacionados e que, sem essa percepção, não é possível
compreender as prioridades educacionais em distintos momentos históricos.
[16]
Quadrívio (em latim: quadrivium; de quatro e via: caminho, ou seja os
"quatro caminhos") era o conjunto de quatro matérias—aritmética,
geometria, astronomia e música—ensinadas nas escolas helênicas na fase inicial
do percurso educativo, cujo ápice eram as disciplinas teológicas.
[17]
Depois da primeira metade do século XIX, ocorreram várias transformações no
Ocidente. A indústria e as comunicações
mostraram o notável crescimento. E, outro setor que igualmente aperfeiçoou foi
o militar, aliás, a oportunidade de seguir carreira no exército era tido como
grande atração para a juventude plebe, influenciada pela filosofia liberalista.
[18] Foi a dominação religiosa que teria impedido o desenvolvimento da razão, gerando uma era de retrocessos e primitivismo. Então, para os iluminados do Renascimento, a Idade Média seria o tempo da escuridão e sombras. Atualmente os historiadores discordam porque acredita-se que ouve grandes avanços científicos e históricos nessa época.
*Gisele Leite, Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC – Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores – POA -RS.
*Ramiro Luiz Pereira da Cruz, Advogado, Pós-Graduado em Direito Processual Civil. Articulista de várias revistas e sites jurídicos renomados. Vice-Presidente da Seccional Rio de Janeiro da ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional.