Presunção de Inocência no Direito Processual Penal brasileiro
Na vigência de tempos sombrios diante da insuficiência das tradicionais respostas a intensa conflituosidade social e da criminalidade social, tornam-se um premente desafio constante, especialmente, para Poder Judiciário resguardar os parâmetros, princípios e valores constituintes das garantias constitucionais entre estas, a presunção de inocência do réu.
Realmente
tal presunção remonta do Direito Romano, nos escritos de Trajano, porém, fora
constantemente alvejada e, até mesmo invertida durante a Santa Inquisição[1]. Convém recordar que na
Idade Média, durante a Inquisição a dúvida gerada por insuficiência de provas,
equivalia a uma semiprova, que comportava, um juízo de semiculpabilidade e
semicondenação e correspondia a uma pena leve.
Era em
verdade, uma presunção de culpabilidade[2]. Quem fosse suspeito e tivesse
uma testemunha contra ele, era torturado até a confessar[3]. Tanto um boato como um
depoimento constituíam uma semiprova e, juntos era suficientes para a prolação
de condenação.
Ferrajoli
em lapidar lição demonstrou que a presunção de inocência bem como a
jurisdicionalidade do processo criminal, finalmente, foi consagrada pela
Declaração de Direitos do Homem de 1789.
Novamente,
ao final do século XIX e começo do século XX, a presunção de inocência voltou a
ser atacada pelo totalitarismo e, pelo fascismo, tanto que Vincenzo Manzini
chegou a chamar de estranho e absurdo extraído do empirismo francês[4]. Manzini chegou mesmo a
estabelecer uma equiparação entre os indivíduos que justificam a imputação e
prova de culpabilidade.
Afinal,
como a maior parte dos indiciados resultavam em ser culpados ao final do
processo, não se justificando a proteção e a presunção de inocência. Com
fundamento na doutrina de Manzini, o princípio do Código Rocco[5] de 1930 não consagrou a
presunção de inocência, pois era vista como um excesso do individualismo e
garantismo[6].
Em
nosso país, a presunção de inocência está constitucionalmente no artigo 5º,
LVII, sendo um vetor principal do processo penal e, em última análise, podemos
verificar a qualidade do sistema processual através do seu nível de observância
(eficácia).
Tanto
que Amilton de Carvalho (2018) chega a afirmar que o princípio da presunção da
inocência não precisa estar positivado em lugar algum, posto que seja
pressuposto e marca um momento histórico da condição humana. A respeito deste
princípio, aponta Oliveira que o mesmo impõe ao Estado a observância de duas
regras específicas em relação ao acusado, a saber: uma de tratamento, segundo o
qual o réu em nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restrições pessoais
fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação e a outa de fundo
probatório, a estabelecer que todos o ônus de prova relativo à existência do
fato e de sua autoria deve recair somente sobre a acusação.
Por
outro lado, resta claro que o princípio, sobretudo, depois da CADH (Convenção
Americana de Direitos Humanos)[7] não pode ser visto apenas
com não-presunção de culpa, como se fosse possível que alguém pudesse ser
considerado nem culpado, nem inocente[8].
É
verdade que o cidadão está ameaçado pelos delitos bem como pelas penas
arbitrárias, fazendo que a presunção de inocência não seja apenas uma garantia
de liberdade e, também uma garantia de segurança (ou de defesa social),
enquanto oferecida pelo Estado de Direito e que expressa, a confiança do
cidadão na Justiça. Representa uma defesa em face do arbítrio punitivo.
Destacou
Ferrajoli que o medo que a Justiça inspira nos cidadãos é inconfundível signo
de perda de ilegitimidade política da jurisdição e, ao mesmo tempo de sua
involução irracional e autoritária[9].
Beccaria,
por sua vez, já apontava para o fato de que um homem não pode ser condenado
culpados antes da sentença do juiz e a sociedade só lhe pode retirar a proteção
pública depois que seja decidido ter ele violado as condições com as quais tal
proteção que lhe foi concedida.
A
presunção da inocência sob a perspectiva do julgador deveria ser um princípio
de maior relevância, principalmente no tratamento processual que o juiz deve
dar ao acusado. Portanto, isso obriga o juiz não só manter a posição negativa
(não o considerando culpado) mas sim, a ter postura positiva e efetiva
(tratando-o realmente como inocente).
Pode-se
extrair da presunção da inocência que: a) predetermina a adoção da verdade
processual, relativa, mas dotada de um bom nível de certeza prática, eis que obtida
segundo determinadas condições; b) como consequência, a obtenção de tal verdade
determina um tipo de processo, orientado pelo sistema acusatório, que impõe a
estrutura dialética e mantém o juiz em estado de alheamento e, significa a
consagração do juiz de garantias[10] ou garantidor;
c)
Dentro do processo se traduz em regras para julgamento orientando a decisão
judicial sobre os fatos (carga da prova);
d)
Resume-se, por derradeiro, em regras para o julgamento para tratamento do
acusado posto que a intervenção do processo penal se dá sobre um inocente.
Nesse sentido, Vegas Torres apud Moraiz ao abordar o artigo 24.2 da Constituição Espanhola[11] explica que tal garantia estende sua eficácia além do processo penal, incluindo os demais ramos da jurisdição e, mais além, pois também abrange a atividade administrativa sancionadora.
Analisando
também o artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 o
mesmo doutrinador espanhol já citado, aponta as três principais manifestações
(não excludentes, mas sim, integradoras) de presunção de inocência.
É um
princípio fundante em torno do qual é construído todo o processo penal liberal,
estabelecendo essencialmente garantias para o imputado em face da atuação
punitiva estatal. Tal presunção de inocência é postulado diretamente voltado ao
tratamento do imputado no processo penal, segundo a premissa de que seja
inocente e, portanto, deve reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus
direitos durante o processo (incluindo-se a fase pré-processual); finalmente, a
presunção de inocência é uma regra diretamente referida ao juízo do fato que a
sentença penal faz.
É a
sua incidência no âmbito probatório, vinculando à exigência de que haja prova
plena da culpabilidade do fato é uma carga da acusação, impondo-se a absolvição
do imputado se a culpabilidade não ficar suficientemente demonstrada.
A garantia
de que será mantido o estado de inocência até o trânsito em julgado da sentença
condenatória implica diversas consequências no tratamento da parte passiva, na
carga da prova (ônus da acusação) e na obrigatoriedade de que a constatação do
delito e a aplicação da pena, será por meio de processo com todas as garantias
e, através de uma sentença fundamentada (motivação) como instrumento de
controle da racionalidade.
Sistematicamente
quando a Constituição federal brasileira ordena que todos sejam julgados pelo
juiz natural (predeterminado por lei), que os acusados em geral estão
assegurados o contraditório e a ampla defesa.
Lembrando
que os atos processuais são públicos que ao imputável está assegurado o direito
ao silêncio e de não fazer prova contra a si mesmo (nemo tenetur se detegere);
a garantia da presunção de inocência, enfim, ao assegurar todas as garantias
inerentes ao devido processo legal, não está afirmando outa coisa, conforme
leciona Francesco Carrara[12] in litteris: “Haced
esto, porque el hombre de quien vostros sospecháis es inocente, y no podeis
negarle su inocência mientras no hejáis demostrado su culpabilidade y no podeis
llegar a essa demonstración si no marchais por el amino que os señalo”.
A
influência de Francesco Carrara no Brasil é expressamente reconhecida pelo
legislador no passado e, a atualidade do seu pensamento na nossa doutrina
evidencia-se pela preocupação de nossos juristas em trazer o seu nome e os seus
argumentos para fundamentar soluções ou interpretações que o mestre já apontava
com segurança e discernimento.
A
ideia de uma ordem de valores acima do homem e da sociedade, que esta deve
procurar conservar, a ideia do delito como um ente jurídico e da liberdade do
homem, ao mesmo tempo súdito e conservador dos princípios morais, a da tutela
jurídica como fundamento da repressão, são princípios básicos da doutrina
estabelecida por Carrara (1956) que, com algumas modificações, não se acham
ausentes do pensamento contemporâneo em matéria penal.
A
aplicação elementar do princípio constitucional de isonomia e do ubi lex non
distinguir nec nos distinguere debemus, não existem acusados mais
presumidos inocentes e nem pessoas menos presumidas. De forma que, todos são
presumivelmente inocentes, qualquer que seja o fato que nos é atribuído.
Suannes
citado por Mirabete afirma categoricamente: “nada justifica que alguém
simplesmente pela hediondez do fato que se lhe imputa deixe de merecer o
tratamento de sua dignidade de pessoa humana exige”. Nem mesmo sua condenação
definitiva no processo penal o excluíra do rol de seres humanos, ainda que em
termos práticos isso nem sempre se mostre assim.
Qualquer
distinção, portanto, que se pretenda fazer em razão da natureza do crime
imputado a alguém inocente contraria o princípio da isonomia pois, a
Constituição Federal não distingue entre um mais inocente ou menos inocente. O
que deve constar não é o interesse da sociedade que tem a Constituição Federal,
que prioriza o ser humano, o devido tratamento, mas o respeito à dignidade do
ser humano, qualquer que seja o crime que lhe é imputado.
Por
conta de tudo isso, a presunção de inocência enquanto princípio reitor do
processo penal deve ser maximizado em toda sua extensão, mas especialmente no
que se refere à carga de prova (regia del jucio) e às regras de
tratamento do imputado (restringindo a publicidade abusiva e evitando a
estigmatização do impetrado) bem como impondo limites ao abuso das prisões
cautelares. Sendo imputado presumidamente inocente não lhe incumbe provar
absolutamente nada.
Existe
uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o acusado e nem o
juiz tenha qualquer dever de contribuir nessa desconstrução (direito ao
silêncio[13]).
É a acusação tem a carga de descobrir hipóteses e provar e, a defesa tem o
direito (e não dever) de contradizer com contra-hipóteses e contra-provas.
O juiz
com sua peculiar imparcialidade, tem a tarefa de analisar todas as hipóteses,
aceitando a peça acusatória, somente se estiver provada e, não aceitação, se
desmentida, ou ainda, que não desmentida, não restar suficientemente provada.
Juntamente
com a presunção de inocência, como critério pragmático de solução de incerteza
(dúvida) judicial, o princípio do in dubio pro reo[14]
corrobora a atribuição da carga probatória ao acusador.
A
única certeza exigida no processo penal refere-se à prova de autoria e da
materialidade, necessárias para que se tenha a sentença condenatória. Do
contrário, em não sendo alcança do tal grau de convencimento (e liberação de
cargas probatórias), a absolvição é imperativa.
Isso se justifica ao estar a inocência assistida pelo postulado de sua presunção, até prova em contrário, esta prova contrária deve aportá-la quem nega sua existência, ao formular a acusação. Trata-se de estrita observância ao nulla accusatio sine probatione[15]. Merece destaque a primeira parte do artigo 156 do CPP[16] que deve ser interpretado à luz da garantia constitucional da inocência[17].
O
Pacote Anticrime de 2019 inseriu um dispositivo no CPP que parece sanar longos
debates acerca do sistema processual penal brasileiro. E, o dispositivo foi
direto ao positivar que é com sistema acusatório que o Brasil procede a persecutio
criminis.
O art.
3º-A, além de dirimir as vastas discussões doutrinárias acerca dessa questão,
cumpriu complementar o sentido dessa alteração, considerando “vedadas a
iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação
probatória do órgão de acusação”.
Apesar
de parecer uma simples afirmação, é evidente que um Código de Processo Penal
redigido há muitas décadas e, mesmo já tendo passado por reformas legislativas,
apresentaria desafios à coerência da legislação processual penal brasileira já
vigente com essa nova determinação legal que, como supramencionado, não deixa
margem para muitas interpretações.
Não é
difícil perceber que os demais dispositivos não alterados pela Lei 13.864/2019
apresentam caráter que mais se aproximam do sistema inquisitório bem como
também podem aproximar-se da estrutura acusatória. Cumpre distinguir as duas
estruturas. O sistema inquisitório é caracterizado pela aglutinação de funções
da figura do juiz, que se apresenta como verdadeiro dono da persecução penal,
justamente porque as atribuições de poderes instrutórios recaem apenas sobre
ele.
O que
se observar nesse sistema é a ausência de estrutura dialética ou de
contraditório, já que o juiz tem o escopo de produzir provas, instruir o
julgamento e concluir com a sentença por ele mesmo proferida. Além disso, não é
característico desse sistema inquisitório a garantia à publicidade, ou seja, o
julgador pode estruturar todo o processo sem a ciência das partes, o que, por
sua vez, acaba por tornar o acusar um mero objeto de verificação.
Por
outro viés, o sistema acusatório guarda a nítida distinção entre a função de
acusar e a de julgar, proporcionando, também, a imparcialidade do juiz. A
iniciativa probatória somente concerne às partes, ao passo que é também
garantida a publicidade dos atos e o direito ao contraditório.
Art.
156 CPP[18]. A prova da alegação
incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I –
Ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas
consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e
proporcionalidade da medida;
II –
Determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização
de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
A Lei
13.964/2019 finalmente consagrou, de modo expresso, o sistema acusatório no
processo penal brasileiro.
Havia
certa divergência, pois, embora muitos defendessem, com fundamento no inciso I,
do art. 129, da CFRB/88, que o sistema penal consagrado era o acusatório,
existiam, antes da aprovação do Pacote Anticrime, diversas disposições no CPP
que permitiam uma atuação de ofício por parte do julgador, circunstância
incompatível com mencionado sistema.
Dentre
essas disposições, merece destaque aquela contida no art. 156 do CPP, a qual
permite que o juiz tenha iniciativa probatória.
A
partir do momento em que a nova lei expressamente diz que “o processo penal
terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação
e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” (art. 3º-A), fica
evidente a incompatibilidade do mencionado art. 156 do CPP.
Porém,
a Lei 13.964/2019 não determinou, de modo expresso, que as disposições
existentes no art. 156 do CPP estarão revogadas.
Cumpre
sublinhar que a revogação pode ocorrer de dois modos:
a)
expresso: quando a nova lei evidencia quais dispositivos anteriores serão
revogados, a exemplo do que fez o próprio Pacote Anticrime ao determinar, em
seu art. 19, a revogação do § 2º, do art. 2º, da Lei 8.072/1990 (Crimes
Hediondos);
b)
tácito: quando, embora a nova lei não diga expressamente que a anterior será
revogada, presume-se a revogação em razão da incompatibilidade entre o conteúdo
de ambas.
Assim,
a questão ligada ao art. 156 do CPP corresponde perfeitamente às hipóteses de
revogação tácita, vez que, como dito, a atuação de ofício pelo juiz na gestão
da prova, característica marcadamente inquisitiva, é incompatível com o
disposto no novo art. 3º-A, o qual, ao expressamente consagrar o sistema
acusatório, rejeitou todo e qualquer ranço inquisitivo[19] existente no processo
penal brasileiro.
O
Sistema Processual Penal adotado no Brasil, com o advento da Constituição
Federal de 1988, foi o acusatório, visto que as funções de acusar e julgar
competem a órgãos distintos; este tem uma base democrática e preza pela
liberdade individual, ao contrário do Sistema Inquisitório onde predominam a
repressão, autoritarismo e redução de garantias individuais.
A lei
nova insere o art. 3-A, no CPP, afirmando uma suposta estrutura acusatória do
processo penal brasileiro: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas
a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação
probatória do órgão de acusação.”
Noutras
palavras, a partir da vigência da Lei 13.964/2019, somente se admite, no
processo de conhecimento, iniciativa probatória pro reo pelo juiz presidente da
instrução processual. Eis, a melhor interpretação que se pode conferir ao art.
156, II, do CPP (é facultado ao juiz, de ofício, “determinar, no curso da
instrução ou antes de proferir sentença, a realização de diligência para dirimir
dúvida sobre ponto relevante), em cotejo com o novo art. 3-A, do CPP, que veda,
ao juiz da fase processual, que se substituía nas funções do órgão de acusação.
Realmente, caminhou mal o legislador ao estabelecer, no art. 20 da Lei 13.964/2019, o prazo de vacatio legis de 30 (trinta) dias para a entrada em vigor do Pacote Anticrime. Isso porque o “Pacote Anticrime”, consubstancia, conforme outrora já alegado, a maior alteração processual penal do ordenamento jurídico brasileiro desde 1984. É impossível que tamanhas e profundas mudanças sejam implantadas em um prazo tão exíguo[20].
Nesse
sentido, a contradição legislativa é ainda mais latente se observarmos que a
Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.689/2019), recentemente promulgada, cujas
alterações são muito menos profundas se comparadas com a Lei 13.964/19,
estipulou, no seu art. 4510, vacatio legis de 120 (cento e vinte) dias –
período de “adaptação” à nova legislação quatro vezes maior do que o
estabelecido pelo Pacote “Anticrime”[21].
O dispositivo
legal determina que a prova da alegação incumbirá a quem fizer. Mas, a primeira
e principal alegação realizada é a que consta na denúncia aponta para autoria
delitiva e a materialidade do crime, logo incumbe ao Ministério Público (MP) o
ônus total e intransferível de provar a existência do delito.
Há um
gravíssimo erro que é cometido por expressiva doutrina e também da
jurisprudência ao afirmar que a defesa incumbe a prova de uma alegada
excludente.
Afinal,
esse entendimento é equivocado. Enfim, a carga do acusador é de provar o
alegado, logo demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime, isto é, um
fato típico, ilícito e culpável. Isso significa que incumbe ao acusador, provar
a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a
culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação.
Então,
tanto pela regra de ônus da prova quanto pela existência da presunção de
inocência, se o réu aduzir a existência de uma causa de exclusão da ilicitude,
cabe ao acusador provar que o fato é ilícito e que a causa justificadora não
existe (através de prova positiva).
Conclui-se
que o acusador inicia com imensa carga probatória, constituída não apenas pelo
ônus de provar o alegado (a autoria do crime), mas também, pela necessidade de
derrubar a presunção de inocência instituída na Constituição federal brasileira
vigente.
À
medida que o acusador vai demonstrando as afirmações feitas na inicial
(denúncia), vai se libertando da carga probatória e, ao mesmo tempo, enfraquece
a presunção inicial de inocência, até chegar ao ponto de máxima liberação de
carga. Em sentido contrário, sem a
demonstração cabal das afirmações realizadas na denúncia, dá-se a absolvição do
réu.
Outro
fator relevante é publicidade abusiva e a estigmatização do acusado nas
audiências, principalmente, por conta da acessibilidade de todos. Inicialmente,
a publicidade fora colocada sob o controle pois era entendida como garantia de
um juízo justo.
A
publicidade de uma audiência, oralidade, legalidade e motivação representam
garantia secundária e, se destina a dar maior transparência ao processo e ao
debate, permitindo o controle interno e externo de toda atividade processual
penal.
Contudo,
quando a publicidade é hipertrofiada (segredo) ou sobredimensionada (publicidade
abusiva) torna-se antigarantista.
Os
tempos mudaram e a imprensa igualmente. Com a era da informação, tudo se torna
um bizarro espetáculo. A imprensa é pródiga em criar uma cultura da suspeita e
os juízos de papel são capazes de produzir maiores prejuízos que o próprio
processo judicial.
Em decisão judicial do Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministro Luiz Fux autorizou a prisão imediata dos quatro condenados da boate Kiss o que foi considerada por seus advogados como ilegal ou inconstitucional. Isso porque a suspensão de liminar não pode ser usada para reverter Habeas Corpus[22] e porque violou a presunção da inocência. O Ministro Fux concedeu medida cautelar em suspensão de liminar para derrubar a decisão do Desembargador José Manuel Martinez Lucas, do TJRS, que deferiu liminar em Habeas Corpus para impedir o juiz de primeiro grau de determinar a imediata prisão dos quatro réus.
Os
réus foram condenados pelo Tribunal do Júri pelo homicídio e tentativa de
homicídio, em face de duzentos e quarenta e dois óbitos e mais de seiscentas
pessoas feridas, em razão de incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), em 27
de janeiro de 2013.
De
acordo com o Ministro Fux, a execução da condenação pelo Tribunal do Júri
independe do julgamento de apelação ou qualquer outro recurso. E, sua
argumentação é que a segunda instância não pode reapreciar fatos e provas
quando analisar os recursos interpostos em face da sentença condenatória.
E,
assim, deveria prevalecer a soberania do veredito do júri, conforme prevê o
vigente texto constitucional brasileiro. A imediata prisão imposta pelo corpo
de jurados representa o interesse público na execução da condenação.
Declarou
o Ministro Fux, in litteris: "Nesse sentido, considerando a altíssima
reprovabilidade social das condutas dos réus, a dimensão e a extensão dos fatos
criminosos, bem como seus impactos para as comunidades local, nacional e
internacional, a decisão impugnada do TJRS causa grave lesão à ordem pública ao
desconsiderar, sem qualquer justificativa idônea os precedentes do STF e a
dicção legal explícita do artigo 492, §4º do CPP".
De
acordo com o jurista Lenio Streck a decisão do ministro foi baseada na Lei
8.347/1992, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do
Poder Público, mas que jamais foi pensada para o âmbito penal. Portanto,
inaplicável para sustar Habeas Corpus. Afirma Streck que o STF extrapolou os
limites das garantias.
Já o
Ministério Público do Rio Grande do Sul deveria ter esperado que o TJRS
julgasse o mérito do HC. Por isso, temos um impasse: e se o TJRS conceder o HC
no mérito?
O MPRS
ingressará com qual medida? Não poderá utilizar novo pedido de suspensão de
liminar. Só lhe restará o recurso ordinário em HC. A suspensão parece mais
servir para pressionar a Primeira Câmara Criminal do TJRS, conclui Streck.
No
mesmo sentido, Aury Lopes Junior opina que é uma decisão absolutamente
lamentável em todos os aspectos. Os réus respondem ao processo em liberdade há
anos, nunca geraram
qualquer
situação de perigo que justificasse uma prisão preventiva, então a decisão é
completamente despida de qualquer natureza cautelar. Nunca antes se suspendeu
uma decisão liminar em HC assim, per saltum, monocraticamente e, o
próprio artigo 297 do Regimento Interno do STF[23] não têm essa dimensão
penal.
É
curioso ainda que o tribunal tenha súmula como a 691, a qual afasta a
competência do STF para conhecer de HC impetrado contra liminar indeferida em
outro tribunal superior, se permita conhecer de questão ainda não julgada no
tribunal de origem nem pelo STJ. Pior, o mesmo STF, com invulgar constância,
tem proclamado, até em Habeas Corpus, a impossibilidade de conhecer,
agora, diretamente da matéria posta pelo MPRS?
Questiona
Alberto Zacharias Toron apud Rodas que também destacou a Súmula 604 do
STJ que estabelece que "o mandado de segurança não se presta para atribuir
efeito suspensivo a recurso criminal interposto pelo Ministério Público".
Embora o STF tenha precedentes da Primeira Turma afirmando a possibilidade de
se executar a pena imediatamente em caso de decisão do júri, isso não outorgava
competência direta ao STF para impor sua jurisprudência.
Lenio
Streck também indicou que o STJ já decidira que, também no júri, só é possível
executar a pena, depois do trânsito em julgado da sentença condenatória, como
fixado pelo STF nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54.
O
dispositivo do Pacote Anticrime que manda prender automaticamente nos casos de
condenações acima de quinze anos, fique no limbo da inconstitucionalidade. E, o
STF já decidiu pelo primado da presunção da inocência. E, o STJ seguiu o STF.
E, o Desembargador do TJRS seguiu a ambos.
O
júri, como se sabe, é órgão de primeiro grau e suas decisões podem ser
amplamente revisadas pelo Tribunal de Justiça, inclusive em relação à questão
provatória, pela
via do
artigo 593, III, d do CPP, quando a decisão dos jurados for manifestamente
contrária à prova dos autos. E, ressalta o doutrinador
Aury
Lopes Junior que o conceito de soberania do júri está sendo totalmente
distorcido, nunca teve essa dimensão. Além disso, é uma absurda violação da
presunção de inocência, sendo o artigo 491, I e, manifestamente
inconstitucional. Se a execução antecipada da pena, em segundo grau, é inconstitucional,
o que afirmar a respeito de uma decisão de primeiro grau? Questiona Aury Lopes
Jr apud Rodas.
No
julgamento do Recurso Extraordinário 1.235.340, já iniciado, os Ministros da
Suprema Corte Luís Roberto Barroso, relator, e Dias Toffoli se manifestaram no
sentido de que a soberania do veredito do júri que não pode ser substituído por
pronunciamento de nenhum outro tribunal autoriza o início imediato da execução
da pena. Houve um voto divergente, do Ministro Gilmar Mendes, e o julgamento
foi suspenso por pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski.
"Esse
artigo [492, I, 'e', do CPP] contraria o artigo 5º da Constituição Federal, que
versa sobre o direito à ampla defesa e prevê a prisão quando se encerram as
possibilidades de recursos. O próprio STF já definiu, anteriormente, que a
prisão antes do trânsito em julgado tem que ser definida com base no artigo 312
do CPP", opina Jacqueline Valles apud Rodas, citando o dispositivo
que estabelece as hipóteses que autorizam a decretação de prisão preventiva.
Mesmo
que o artigo 2º do CPP preveja o princípio da imediaticidade, a alteração do
artigo 492, I do CPP corresponde a norma restritiva de liberdade do acusado,
sendo aplicada apenas nos casos em que o fato criminoso tenha ocorrido após a
entrada em vigor da lei. E, assim, por um critério intertemporal, a lei não
poderá retroagir, devendo ser afastada a aplicação da execução imediata da pena
por esse aspecto.
Destaca-se
ainda que a soberania dos vereditos é reconhecimento direto que não se admite a
reforma de mérito da decisão prolatada pelo Tribunal de Júri. O que não
significa afirmar que com a decisão do júri, ocorra espécie de trânsito em
julgado automático. Pois são inúmeros os casos de anulação da sessão de
julgamento não somente por decisões manifestamente contrárias à prova dos
autos, mas, principalmente por conta de nulidade.
A
criação do Tribunal do Júri francês se deu através do Decreto de 30 de abril de
1790, sendo posteriormente consolidado na própria Constituição Francesa de
1791, constituindo fonte de grande influência ao Júri brasileiro, quando da
entrada dos ideais políticos-burgueses do século XVIII no território nacional.
É de
se concluir que a instituição do Júri no Brasil foi marcada por uma intensa
oscilação entre períodos de crise e momentos áureos, conforme se vê desde sua
consolidação até os dias atuais. Em verdade, no mundo todo o Júri sempre teve
essa feição; ora respeitado e imponente, ora desacreditado e decadente.
No
Brasil, isso não foi diferente, já que, como se percebe, a cada Constituição a
instituição teve seu tratamento bastante diverso, tendo sua importância
restringida, ou então gozando de extrema relevância.
Sendo
princípio constitucionalmente previsto, a soberania dos vereditos atribui às
decisões do Conselho de Sentença caráter de imodificabilidade. Esta é, na visão
de Távora e Alencar (2021), consequência de a impossibilidade dos magistrados
exercerem simultaneamente o chamado judicium rescindens e o judicium
rescisorium, uma vez que as decisões do conselho não podem ser
subtraídas nem substituídas por sentença qualquer.
Para
Nucci (2008), o princípio não pode ser considerado sinal de poder absoluto, uma
vez que poderá o juízo recursal, determinar nova sessão de julgamento se
provada que a decisão do Conselho de Sentença foi contrária às provas dos
autos. Não se permite que a instância superior reexamine a causa e profira nova
decisão.
Autoriza apenas que corrija distorções, erros do presidente do tribunal do júri e mesmo nulidades processuais. Quando versar sobre a decisão, poderá caber nova apreciação, mas sempre pelo Tribunal Popular[24].
O
instituto das nulidades que se irradia do próprio princípio constitucional do
devido processo legal (art. 5º, LIV, da CFRB/1988), vem consagrado no Código de
Processo Penal (arts. 563 / 573) e pode-se ser compreendido, como comumente o é
pela doutrina pátria, em quatro espécies, a saber: 1) irregularidades, 2)
nulidades relativas, 3) nulidades absolutas e 4) atos inexistentes, pois, como
observa Gustavo Badaró, “o ato típico é aquele que em sua prática obedece a
todos os requisitos do modelo previsto em lei. Já a atipicidade pode variar em
sua intensidade”.
As
nulidades absolutas são aquelas que apresentam um grave defeito e maculam
indelevelmente algum dos princípios constitucionais que norteiam o devido
processo penal, sendo, portanto, “aquela que decorre da violação de uma
determinada forma do ato, que visava à proteção de interesse processual de
ordem pública. No processo penal há nulidade absoluta toda a vez que for
violada uma regra constitucional sobre o processo”.
Nesse
sentido, é possível identificar que tais nulidades violam normas que tutelam
verdadeiro interesse público ou ainda, como referido, acabam por violar
determinado princípio constitucional. Desta forma, justamente por apresentar relevante
interesse público e ser tida como insanável (pois não se convalida, e muito
menos é convalidada pela preclusão), tais nulidades podem ser declaradas de
ofício pela autoridade judicial e em qualquer grau de jurisdição (ou ainda, é
claro, por meio de provocação da parte interessada), não sendo necessário
demonstrar-se qualquer prejuízo, pois se trata de prejuízo presumido.
Já as
nulidades relativas, segundo a doutrina majoritária, são aquelas mais graves
que os atos meramente irregulares, mas que não chegam a macular matéria de
ordem pública, sendo, portanto, menos graves que as nulidades absolutas. É,
nesse sentido, “aquela que decorre da violação de uma determinada forma do ato
que visa à proteção de um interesse privado, ou seja, de uma das partes ou de
ambas”.
Portanto,
compreende-se que as nulidades relativas, ao contrário das absolutas, seriam
aquelas que violam normas que tutelam o interesse privado das partes e que não
podem ser declaradas de ofício, sendo fundamental a provocação da parte interessada,
sob pena de ocorrer sua convalidação.
Além
do mais, afirma-se, com frequência, que é preciso que a parte suscitante
demonstre o prejuízo sofrido, conforme art. 563 do Código de Processo Penal
(lógica essa inversa à das nulidades absolutas, pois o prejuízo em tais casos
seria presumido, não havendo necessidade de ser demonstrado).
A pena
pública e infamante do Direito Penal foi reeditada através da exibição pública
do mero suspeito nas primeiras páginas dos jornais, ocupando as manchetes
sangrentas, ou em telejornais quando existe apenas mera acusação, quando nem
fora formulada a denúncia, quando, todavia, o indivíduo ainda deveria estar
protegido pela presunção de inocência.
Frise-se
que a publicidade realmente prejudicial não é a imediata e, sim, a mediata sob
as dimensões de limitação local em que são realizadas as audiências ou outras
providências tomadas, tais como, o depoimento da polícia e que só permitem que
algumas poucas pessoas assistam ao ato.
Assim,
o maior prejuízo vem, justamente, da publicidade mediata, levada a cabo pelos
meios de comunicação de massa, como o rádio, televisão e a imprensa escrita que
informam multidões de pessoas sobre todo o ocorrido, muitas vezes, deturpando a
verdade em prol do sensacionalismo.
Num
mundo globalizado, onde as informações se disseminam de forma célere e
dinâmica, podemos saber de fatos que acontecem em qualquer lugar e a qualquer
hora. Assim, os meios de comunicação se tornaram indispensáveis à vida em
sociedade. E, por essa rapidez com que a informação circula, a mídia é vista
como grande formadora de opinião, podendo trazer paz ou conflito. Ressalte-se
que nos casos concretos de maior repercussão na mídia, o princípio do juiz
natural, que afirma que o acusado tem direito a um julgamento imparcial, resta
vulnerável, uma vez que os jurados podem acabar se influenciando pelo que é
noticiado.
Essa
influência acaba se tornando ainda mais evidente pelo fato de que as decisões
não precisam ser fundamentadas ao público, mas apenas aos juízes togados.
Diante de um caso onde exista uma dúvida razoável sobre a autoria do crime,
como será possível julgar de forma isenta, quando os meios de comunicação já
estão em campanha para a condenação, juntamente, com a população se
manifestando na frente do Tribunal com a sede de vingança e, muitas vezes, com
a vontade de linchar o acusado?
Se
ocorrências como essas descritas, forem inevitáveis, é preciso pensar em
mudanças e, por mais que se tenha a certeza da culpabilidade do réu, quem deve
decidir isso são os jurados. E, se estes já iniciaram o julgamento dispostos a
acreditar apenas uma das partes, não há mesmo possibilidade de um julgamento
justo.
Aliás,
segundo Carnelutti (1960) a crônica judicial interpõe entre o processo e o
público o diafragma do cronista, uma pessoa que, por desconhecer a técnica do
processo, oculta outros interesses detrás da simples atividade de informar.
Também
como qualquer morte, o cronista tem suas paixões, opiniões, simpatias e
antipatias e, basta ler algumas manchetes dos jornais e revistas para constatar
que as crônicas municiadas de adjetivos impressionantes oferecem geralmente um
juízo acerca da responsabilidade criminal do imputado.
A
informação é, antes de tudo, uma mercadoria e como tal, caráter prevalece de
longe sobre a missão fundamental da mídia que é a de esclarecer e enriquecer o
debate democrático. Como mercadoria que é a informação deve ser vendida ao
maior número possível de interessados e, também, desinteressados, utilizando-se
os instrumentos de marketing sensacionalista (vindo inclusive alterar a
verdade) que são necessários para estimular e despertar o interesse do leitor.
A
massificação da informação atende sua atualidade, não só de interesses
econômicos, senão igualmente aos interesses políticos, cujos prejuízos para a
escorreita investigação, processo e administração da justiça são como um todo
patentes.
A
publicidade abusiva comprovadamente contribui para a distorção de comportamento
dos sujeitos processuais aumentando o estigma do imputado. E, uma das
consequências pejorativas é a hiperpenalização através da espetacularização do
julgamento.
Defende
Aury Lopes Jr., que necessitamos de uma censura garantista democrática pautada
pelo respeito à presunção da inocência, à intimidade, imagem e a vida privada
do imputado.
É
preciso sublinhar que os princípios da presunção de inocência e in dubio
pro reo não são sinônimos. Apesar de existir estreita relação entre estes.
Pode-se
concluir que o in dubio pro reo decorre de dois princípios, a saber: o
da presunção da inocência e a favor do réu, que proclama que no conflito entre
o jus puniendi do Estado, por um lado, e o jus libertatis do
acusado, a justiça deve inclinar-se a favor deste derradeiro, se quiser
consagrar o triunfo da liberdade.
De
acordo com Fernando Capez (2007) o princípio da presunção de inocência para
muitos só se aplica no campo da apreciação probatória, nunca para interpretar a
norma jurídica. Outros doutrinadores, ao revés, entendem que o princípio pro
reo se aplica na interpretação da lei, ao usar a interpretação mais
benéfica ao réu.
O
princípio da presunção de inocência encontra-se inserido no texto
constitucional brasileiro de 1988, em seu artigo 5º, inciso LVII.
Para
alguns doutrinadores e juristas, o princípio in dubio pro reo[25]
não vem sendo aceito implicitamente em razão da distribuição do ônus da prova.
Tourinho Filho (2018) ao cogitar do tema, afirma que a regra do ônus da prova
cabe ao autor da tese (acusação)[26].
Caberá ao Promotor de Justiça, no bojo da denúncia, o ônus de provar que determinado agente é o autor do crime, por exemplo, de lesão corporal. A defesa, caberá provar a inocência do agente, invertendo o ônus probandi[27].
Advertimos
que o ordenamento jurídico-penal brasileiro contempla mitigações ao ônus probandi,
como os poderes instrutórios do Juiz e o princípio da presunção de inocência.
Igualmente, o descumprimento do ônus da prova pode ser amenizado pelo princípio
da comunhão da prova (ou da aquisição processual), no sentido de que o sujeito
poderá se valer de prova requerida e produzida por seu adversário com o fito de
ver prevalecer sua tese.
Nessa
dimensão, unindo os conceitos de ônus e de prova (enquanto atividade
probatória), podemos definir, em sentido amplo, o ônus da prova como a
faculdade que as partes da relação jurídica processual possuem de trazer aos
autos elementos de convicção que embasem suas alegações, com a finalidade
última de influir na decisão do julgador, evitando o risco de ver sua pretensão
naufragar caso não se dê por provados os fatos que embasem sua pretensão.
A
mitigação do princípio da presunção de inocência julgada pela Suprema Corte
brasileira em face da eficiência do sistema penal, atinge contundentemente, aqueles
indivíduos que não possuem condições financeiras para operar e buscar o acesso
à justiça dentro do sistema judiciário existente.
Notório
que o sistema judiciário, notadamente, o criminal encontra-se sobrecarregado e,
os principais argumentos dos Ministros do STF em que há uma (de)mora
jurisdicional, a interposição exacerbada de recursos processuais e o sentimento
de impunidade no sei da sociedade são legítimos e verdadeiros. porém, a solução
que a maioria dos Ministros do STF encontrou para combater esses males e
mazelas torna-se ilegal e inconstitucional ao suprimir as garantias processuais
e um direito fundamental do acusado face a efetividade jurisdicional.
Afinal,
tanto o princípio da presunção de inocência[28] juntamente com o
princípio da efetividade do sistema penal segue em mesmo sentido. Portanto, não
faz sentido que trilhem caminhos opostos, consequentemente, devem ser sopeados.
Portanto, não se pode sacrificar o direito fundamental de um cidadão por causa
da ineficiência do sistema, responsabilidade, em grande parte, do Estado.
Talvez, a mais adequada solução seja a simplificação do processo, tornando-o
menos ritualístico e mais concentrado, mais oralizado.
Deve-se repensar a fase inquisitorial, ao menos em alguns casos, a exemplo do tráfico de drogas e, colher desde logo a prova em contraditório, tornando desnecessária a repetição de atos instrutórios em juízo, proporcionaria maior efetividade ao sistema judiciário e reduziria a sua morosidade.
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Notas:
[1]
O início da Inquisição se deu, oficialmente, através do Papa Gregório XI, em
1233. Entretanto, a luta contra a
heresia já acontecia anos antes e a prática da tortura contra os hereges não
era algo novo. Enquanto aconteciam cruzadas que visavam retomar a cidade santa
dos infiéis islâmicos, iniciava-se, em 1208, uma caçada contra os hereges do
sul da França, também conhecidos como “cátaros” (BAIGENT; LEIGH, 2001).
Concentrados em especial na cidade de Albi – razão pela qual também eram
conhecidos como “albigenses”, os cátaros possuíam crenças opostas às da Igreja
Católica e o tamanho do movimento acabou por ameaçar a instituição. A
Inquisição propriamente dita se iniciou devido a um fator político: após anos
de batalhas a expansão dos cátaros continuava – ainda que de forma clandestina.
Portanto, em 1232, o Imperador Frederico II, temendo que esses movimentos
gerassem divisões internas, mandou que todos os hereges fossem executados. Por
sua vez, o atual Papa, Gregório IX, reivindicou essa tarefa para que pudesse
salvaguardar o poder da Igreja. Posteriormente, o poder foi distribuído por
igual entre bispos locais. Os inquisidores, aos olhos da igreja, eram fruto da
piedade divina, representantes de Deus que deveriam garantir que as verdades
salvíficas fossem interpretadas e executadas da maneira adequada, razão pela
qual estavam sempre corretos. O controle repressivo foi ganhando força e se
tornando cada vez mais severo. As ações brutais, entretanto, eram legitimadas
com documentos pontifícios, bulas papais, que permitiam a tortura como meio de
“quebrar” a resistência. Finalmente, em 1542, o Papa Paulo III estatuiu a
Sagrada Congregação da Inquisição Romana e Universal, ou Santo Ofício, como
corte suprema de resolução de todas as questões ligadas à fé e à moral, No
Tribunal do Santo Ofício, o processo foi idealizado com o propósito de garantir
a justiça. Todavia, logo nas primeiras diligências, o que se averiguava era a
culpa do suspeito. Ou seja, todo o
processo era moldado para comprovar a veracidade de uma suspeita inicial. O
objetivo era garantir uma espécie tácita de presunção de culpabilidade daquele
contra quem havia indícios de conduta delituosa.
[2]
O referido princípio possui muitos nomens na doutrina, como: Presunção de não
Culpabilidade; Estado Jurídico de Inocência; Situação Jurídica de Inocência
etc. Entretanto, acredito que a definição mais adequada, precisa e correta para
fins da hermenêutica jurídica seja justamente como o princípio da Presunção de
Inocência, uma vez que, sendo o direito de caráter alográfico, tal definição
impossibilita, absolutamente, a flexibilização desta garantia, como feito
outrora por regimes totalitários e absolutistas.
[3] Aos confessos normalmente era concedido o
perdão. Baigent e Leigh (2001) denunciam, entretanto, que até o perdão era uma
forma de punição. Aquele que confessasse ter praticado ou acreditado em uma
crença herege, era obrigado a delatar outros hereges, o que colocava a
sociedade em um estado de medo constante e tornava o controle inquisitivo
incrivelmente eficiente. Os hereges confessos comumente eram açoitados diante
da comunidade em eventos religiosos ou após determinados períodos de tempo,
além de serem marcados com uma cruz em suas roupas, bem como multados pelos
inquisidores, o que acabou incitando a corrupção. Quanto à severidade da
acusação, o Padre Antônio Vieira (2001) denuncia, no texto intitulado Reflexões
sobre o papel intitulado Notícias Recônditas do Modo de Proceder do Santo Ofício como eram tratados os acusados
presos durante o processo do Santo Ofício: [...] nem todos os réus são presos,
nem todos os presos são réus; porém como em
todo o tempo que corre entre a prisão e a sentença, todos são tratados
igualmente com a mesma severidade e
opressão, é força coligir que desde o instante da prisão os têm os inquisidores por condenados na sua
ideia [...] (VIEIRA, 2001, p.175).
[4] O empirismo é teoria do conhecimento que afirma que o conhecimento sobre o mundo vem somente da experiência sensorial. O método indutivo, por sua vez, afirma que a ciência como conhecimento só pode ser derivada a partir dos dados da experiência. Tal vigorosa afirmação acerca da construção do conhecimento gera o problema da indução. Um dos vários pontos de vista da epistemologia, juntamente com o racionalismo, o idealismo e historicismo, o empirismo enfatiza o papel e importância da experiência e da evidência sensorial, especialmente, na formação de ideias, sobre a noção de ideias inatas ou tradições. Os empiristas podem argumentar, porém, que as tradições ou costumes, surgem devido às relações de experiências sensoriais anteriores. Com essa denominação, o empirismo surgiu na Idade Moderna resultante de uma tendência filosófica que se desenvolveu principalmente no Reino Unido desde a Idade Média. Em oposição ao chamado racionalismo, mais característica da filosofia continental europeia. Atualmente a oposição empirismo e racionalismo, como a distinção analítico-sintética, é geralmente entendida de forma contundente, mas sim uma ou outra posição, devido às questões metodológicas heurísticas ou atitudes vitais, em vez de princípio filosóficos fundamentais. Em relação ao problema dos universais, empiristas, muitas vezes simpatizam com as críticas e continuam nominalista como no final da Idade Média. Por exemplo, o próprio John Locke, considerado o pai do empirismo, continha em seu pensamento alguns elementos que podem ser considerados racionalistas. Com o tempo, autores de cada vertente produziram reflexões próprias e bastante diversas. Atualmente, esse conflito já é considerado ultrapassado por alguns. Uma das novas teorias do conhecimento que propõe essa superação é a fenomenologia. A experiência de que tratam os empiristas não é simplesmente uma situação vivenciada por uma pessoa, já que o estabelecimento de conhecimento requer que as experiências possam ser confirmadas, e isso envolveria, minimamente, que tal experiência possa ocorrer mais de uma vez. Por tratar-se de um conhecimento adquirido por meio dos sentidos, a preocupação com a certeza e a caracterização da evidência são temas recorrentes. Por outro lado, já que se investiga uma realidade mutável, coloca-se em questão a validade dessas propostas. A importância do mundo material para os empiristas aproxima suas reflexões de teorias dos pensadores da ciência experimental, que obteve muitos avanços no mesmo período. Francis Bacon, considerado o fundador do método científico moderno, deixa claro que a experiência é o elemento fundacional do conhecimento. O conhecimento científico, em todo caso, só seria alcançado após o afastamento das fontes de equívoco e engano, nomeadas por ele como ídolos, e a aplicação de raciocínios indutivos. A disputa entre racionalismo e empirismo ocorre na epistemologia, o ramo da filosofia dedicado ao estudo da natureza, fontes e limites do conhecimento. Enquanto os racionalistas afirmam que nosso conhecimento é adquirido pela razão e conhecimentos inatos, os empiristas afirmam que a fonte de todo o nosso conhecimento é a experiência sensorial. A indução é o princípio mais crucial para o empirismo, semelhante à razão para os racionalistas. A indução é a crença de que poucos objetos de estudo podem ser conclusivos, especialmente sem experiência. Se uma árvore cai na floresta e ninguém está perto para ouvi-la, sua queda produzirá som? Este é um exemplo da perspectiva empirista da indução. Como não há ninguém na floresta para escutar o som da árvore caindo, o empirista afirmaria que não se pode determinar se é verdade que a queda fez algum barulho.
[5]
Vincenzo Manzini foi o principal penalista italiano do período fascista e, fora
responsável pela elaboração do Código de Processo penal italiano, a mando do
jurista do regime Alfredo Rocco. Daí, o código ser comumente chamado de Código
Rocco. No Brasil, tarefa semelhante fora atribuída a Francisco Campos. A
exposição de motivos do CPP italiano expõe evidente matriz autoritária e
critica o excesso de garantias dos modelos anteriores, relativizando a
presunção de inocência, ampliando as possibilidades da prisão em flagrante,
reduzindo o valor das nulidades e, principalmente, ampliando os poderes
instrutórios do juiz. Essas duas derradeiras intenções promoveram o
enfraquecimento das nulidades e atuação ativa do julgador, têm como pressuposto
filosófico demarcado na ideia de verdade real ou substancial. Argumento a favor
da importância da discussão filosófica no Processo Penal com palavras do
próprio fascista Manzini: Resulta absolutamente supérflua, para nossos estudos,
aquela parte estritamente filosófica que os criminalistas dos séculos XVIII e
XIX costumavam levantar em suas exposições. Buscar os chamados fundamentos
supremos e a noção do direito… hoje já não é mais permitido a uma disciplina
eminentemente social, positiva e de bom senso, como é a nossa (Vide Manzini, Trattato
di diritto penale italiano, Utet, Torino, 1933, vol. I, par. 3, p. 6) Os
filósofos, com seus artificiosos sistemas, nada criaram… A filosofia nunca teve
e nunca terá influência alguma sobre as relações sociais, se não reflete a
consciência e a opinião da coletividade dominante (Trattato di diritto
processuale penale italiano secondo il nuovo códice, Utet, Torino, 1931, 1,
p. 63). Extraído da página 196 do livro de Ferrajoli, Teoria e Razão, edição de
2002.
[6]
A noção de garantismo do jurista Luigi Ferrajoli em sua obra intitulada Direito
e Razão, nasceu como fundamento válido de proteção aos direitos fundamentais em
um período de Estado totalitário na Itália e emprega a seguinte definição, in
litteris: “Garantismo designa uma filosofia política que requer do direito e do
estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos
quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste último sentido o
garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre o direito e a moral,
entre a validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista
externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o ‘ser’ e o ‘dever ser’ do
direito. E equivale à assunção, para os fins da legitimação e da perda de
legitimação ético-política do direito e do estado, do ponto de vista
exclusivamente externo” (FERRAJOLI, 2014, p. 787).
[7]
Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (CADH; também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica) é um
tratado internacional entre os países-membros da Organização dos Estados
Americanos (OEA) e que foi subscrita durante a Conferência Especializada
Interamericana de Direitos Humanos, em 22 de novembro de 1969, na cidade de San
José da Costa Rica. Entrou em vigor em 18 de julho de 1978, sendo atualmente
uma das bases do sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos.
Vide: BRASIL (9 de novembro de 1992).
Decreto Nº 678 de 06 de novembro de 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm
Acesso em 16.12.2021. Entrou em vigor em 18 de julho de 1978, sendo
atualmente uma das bases do sistema interamericano de proteção dos Direitos
Humanos.
[8] A Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948 em seu artigo XI, 1, dispõe: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso
tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido
provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. A Convenção Americana
Sobre os Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, em
seu artigo 8º, 2, diz: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se
presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa".
[9]
É a radicalização do poder do Estado é um dos principais sintomas do fascismo.
E, outra característica é a restrição aos direitos fundamentais do cidadão. O
processo penal deve ser o dispositivo tendente a limitar o poder do Estado, mas
tem sido manejado justamente para o contrário, isto é, para aumentá-lo. É o que
se chama de processo penal fascista ou fascismo processual penal. O atual CPP
brasileiro claramente inspirado no Código Rocco da Itália (1930), da era fascista,
escolheu o modelo inquisitorial de aplicação da lei processual. Vale afirmar,
as práticas autoritárias foram importadas e replicadas em nosso país. O
processo penal fascista é aquele que abandona os mandamentos constitucionais e,
se ocupa somente de um punitivismo extremado, esse não deve ser aceito no
terreno jurídico brasileiro, pois não é compatível com o Estado Democrático de
Direito e com a nova ordem constitucional inaugurada com a Constituição Federal
brasileira de 1988. Inicialmente cumpre destacar que em 1941 o Brasil estava em
pleno Estado Novo, ou seja, submetido a Ditadura Vargas que teve início em
1937. Conforme frisado anteriormente, o Estado Novo iniciou-se em 1937 e
perdurou até 1945. Registre-se inclusive que a Constituição de 1934 foi
abandonada, tendo sido criada em seu lugar uma nova Carta Magna, no caso a de
1937. Aliás, uma das principais características ditatoriais brasileiros do
século XX é justamente a sua criação através da força e a busca por legitimação
através da elaboração de uma nova Constituição.
[10]
Nas palavras do mestre Luiz Flávio Borges D’Urso, o juiz de garantias
oportunizará a ampliação do direito de defesa, uma vez que “o novo projeto
amplia os mecanismos de restrição impostos ao investigado, apresentando
alternativas para o juiz substituir o encarceramento, utilizando a cadeia com
mais parcimônia. As medidas abrangem suspensão do exercício de função pública,
veto para frequentar determinados lugares, comparecer periodicamente em juízo e
monitoramento eletrônico, entre outras”. Desta forma, acredita o advogado
criminalista que tal inovação é a mais compatível com a tendência do direito
penal contemporâneo em todo o mundo. Isso porque a atuação de dois juízes traz
a possibilidade de obtenção de duas visões distintas: uma controlando
judicialmente a investigação, e a outra examinando as provas produzidas na fase
preliminar e decidindo o mérito da causa. In: D’URSO, Luiz Flávio
Borges. Juiz de garantias – são positivas as mudanças propostas pelo novo
Código de Processo Penal? Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2003201008.htm . Acesso em 15.12.2021.
[11]
No continente europeu, o artigo 24.2 da Constituição Espanhola de 1978 prevê
que “todos têm direito a um Juiz ordinário predeterminado pela lei, à defesa e
à assistência de advogado, a serem informados da acusação formulada contra
eles, a um processo público sem dilações indevidas e com todas as garantias, a
utilizar os meios de prova pertinentes à sua defesa, a não prestar declarações
contra si mesmo, a não se confessar culpado e à presunção de inocência.
[12]
Francesco Carrara (1805-1888) foi jurista e político liberal italiano. Foi um
dos principais estudiosos do direito penal e defendia a abolição da pena de morte
na Europa do século XIX. Depois de
estudos e um doutorado em Pisa, Carrara praticou a advocacia em Florença e
Lucca, onde ele foi logo envolvido em debates sobre a reforma do direito penal.
Em 1848, ele foi nomeado para a cadeira de direito penal da Universidade de
Lucca, sua obra principal, escrita lá, foi o volume de dez Programas do Curso
de Direito Criminal, que sintetizou o pensamento italiano em direito penal
desde Beccaria, Carrara obteve também tinha influência significativa no
exterior. Como um político jovem, Carrara primeiramente, aproximou-se dos
grupos liberais na da Itália na década de 1840, embora sempre permanecesse um
moderado. Ele ajudou a organizar a adesão de Lucca para a Toscana, e, após a
unificação italiana, foi eleito para o Parlamento em 1863,1865 e 1867. Lá, ele
foi um membro influente da comissão de elaboração do Código Penal da Itália, o Codice
Zanardelli concluída em 1889. Nomeado senador em 1879, Carrara morreu em
Lucca, onde muitos de seus manuscritos permanecem. Carrara defende a concepção
do delito como ente jurídico, constituído por duas forças: a física (movimento
corpóreo e dano causado pelo crime) e a moral (vontade livre e consciente do
delinquente). Define o crime como sendo "a infração da lei do Estado, promulgada
para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem,
positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso".
[13]
Conclui Geraldo Prado que os limites pertinentes à intervenção sobre o
investigado, a confissão e o direito ao silêncio decorrerão, conforme o caso,
de práticas constitucionalmente válidas, ao mesmo tempo em que a proteção à
dignidade da pessoa investigada alcançará limites reais e não simplesmente
retóricos, obstando-se a fraude à Constituição na produção do material com o
qual o juiz formará o seu convencimento. Não há prova ou mesmo indício, caso
não se considere a este último como prova, na confissão desprovida da
implementação do direito ao silêncio, em qualquer etapa da persecução penal.
[14]
Também conhecido como princípio do favor rei, o princípio do “in dubio pro reo”
implica em que na dúvida interpreta-se em favor do acusado. Isso porque a
garantia da liberdade deve prevalecer sobre a pretensão punitiva do Estado. É
perceptível a adoção implícita deste princípio no Código de Processo Penal, na
regra prescrita no artigo 386, II. In dubio pro reo é uma expressão
latina que significa literalmente na dúvida, a favor do réu. Expressa o
princípio jurídico da presunção da inocência, que diz que em casos de dúvidas
(por exemplo, insuficiência de provas) se favorecerá o réu. O princípio in
dubio pro reo, segundo René Ariel Dotti, aplica-se "sempre que se
caracterizar uma situação de prova dúbia, pois a dúvida em relação à existência
ou não de determinado fato deve ser resolvida em favor do imputado. Oriundo do
Direito Anglo-Saxão, o standard de prova beyond a reasonable doubt
(além da dúvida razoável) constitui o critério atualmente mais aceito, no
âmbito do processo penal, para se proferir um julgamento justo (fair trial).
Além do mais, tal standard conduz à interpretação mais lúcida e adequada
do princípio in dubio pro reo. Aliás, já passou da hora de se fazer uma
releitura honesta deste princípio. Conforme o standard de prova beyond a reasonable
doubt, havendo prova além da dúvida razoável da culpabilidade do réu, é o
que basta para a prolação de uma sentença condenatória, sendo certo, também,
que tal dúvida razoável deve ser valorada de acordo com as dificuldades
probatórias do caso concreto e, também, em função do delito praticado.
Observa-se que pelo referido standard de prova apenas a dúvida que seja
razoável – e não qualquer simples dúvida – afasta a condenação, e é sob essa
ótica que deve ser compreendido o princípio do in dubio pro reo.
[15]
Em sua obra clássica intitulada “Direito e Razão” de Luigi Ferrajoli elenca dez
axiomas, que são valores, princípios garantidores de direitos mínimos do
acusado que devem nortear tanto o processo penal quanto o direito penal. Os
referidos axiomas não apenas servem para legitimar a punição, sobretudo, são
condicionantes para a existência da punição, uma vez que o poder de punir não
pode ser ilimitado, devendo seu exercício ser limitado por regras claras. E,
foram idealizados ainda nos sistemas jusnaturalistas, mas incorporadas às
constituições e codificações dos ordenamentos modernos, em maior ou menor grau.
Cada axioma tutela um valor, como igualdade, liberdade pessoal contra
arbitrariedades, direitos e liberdades políticas, certeza jurídica, controle
público das intervenções punitiva, etc. São dez axiomas propostas por
Ferrajoli. Nulla poena sine crimine. Nullum crimen sine lege. Nulla lex
poenalis sine necessitate. Nulla necessitas sine injuria. Nulla injuria sine
actione. Nulla actio sine culpa. Nulla judicium sine accustone. Nulla accusatio sine probatione. Nulla
probatio sine defensione. (Não há pena sem crime), (Não há crime sem lei).
Não há lei penal sem necessidade). (Não há necessidade sem ofensa ao bem
jurídico). Não há ofensa ao bem jurídico sem ação). (Não há ação sem culpa).
Não há culpa sem processo, (Não há processo sem acusação). Não há acusação sem
prova). Não há prova sem ampla defesa.
[16]
Aponta, ainda, Lopes Jr (2012), as seguintes notas características do sistema
acusatório, na atualidade: a) clara distinção entre as atividades de acusar e
julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da
distinção entre as atividades); c)
mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e
passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de
descargo; d) tratamento igualitário das
partes (igualdade de oportunidades no processo); e) procedimento é em regra
oral (ou predominantemente); f) plena
publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); g) contraditório e
possibilidade de resistência (defesa);
h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo
livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo
a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada; j) possibilidade
de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição. O sistema inquisitório
muda a fisionomia do processo de forma radical. O que era um duelo leal e
franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes e oportunidades, se
transforma em disputa desigual entre o juiz-inquisidor e o acusado. O primeiro
abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor,
atuando desde o início também como acusador. Confundem-se as atividades do juiz
e acusador, e o acusado perde a condição de sujeito processual e se converte em
mero objeto da investigação. (...) O juiz atua como parte, investiga, dirige,
acusa e julga. Com relação ao procedimento, sói ser escrito, secreto e não
contraditório. Lopes Jr (2012) destaca ainda que, o sistema acusatório
predominou até o Século XII, quando passou a sofrer a crítica de que a inércia
do juiz, no campo da gestão da prova, fazia com que o julgador tivesse que
decidir com base em um material probatório defeituoso, fruto de uma atividade
incompleta das partes. Assim, ao longo do Século XII até o XIV, o sistema
acusatório vai sendo substituído pelo inquisitório, em razão “dos defeitos” da
inatividade das partes na produção das provas, levando o Estado a assumir a
gestão da prova, a fim de não se deixar apenas nas mãos dos particulares essa
função, pois isso comprometeria a eficácia do combate à criminalidade. In:
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
[17]
São, ao todo, cinquenta e cinco teses (as dez originais e as que lhes são
derivadas), que configuram o referido modelo garantista. A função específica
das garantias expressas nesses enunciados, adverte Ferrajoli, não é de
consentir ou legitimar, mas antes de condicionar ou vincular - e, portanto,
deslegitimar -, o exercício absoluto do poder punitivo. São barreiras,
obstáculos à utilização indiscriminada da punição, cuja transgressão torna
ilegítima a sanção penal.
[18]
É possível, no entanto, vislumbrar a compatibilidade do inciso II, já que se
atrela à necessidade do livre convencimento do juízo. Isto é, se o juiz ainda
se vê coberto por dúvidas que possam comprometer sua atuação, é razoável que
este proceda à elucidação desse ponto.
[19]
Surgiu no direito canônico, a partir do século XIII, o sistema inquisitivo e,
posteriormente, se disseminou pela Europa, sendo empregado pelos tribunais
civis até o século XVIII. O sistema processual inquisitivo ou inquisitório é
caracterizado pela inexistência de contraditório e da ampla defesa, em que as
funções de acusar, defender e julgar se concentram nas mãos de uma única pessoa
ou órgão, denominado de juiz inquisidor. Este assume a postura acusatória, ao
dar início ao processo criminal com a nottia criminis e produzir provas e,
ainda, prolatar a sentença.
[20] O
Pacote Anticrime entrou em vigor em 23 de janeiro de 2020, com este, diversos
dispositivos legais tanto do Código penal como do Código Processual Penal
brasileiro, além de outas leis, como a Lei 7.210/1984 (LEP) foram revogados,
alterados ou acrescentados.
[21]
Entre as novidades, a Lei Anticrime elevou de 30 para 40 anos o tempo máximo da
pena de reclusão, ampliou o rol de crimes considerados hediondos – foram
incluídos delitos como genocídio, roubo com restrição de liberdade da vítima e
furto com uso de explosivo – e limitou as hipóteses de progressão de regime e
de livramento condicional. Na realidade a Lei n.º 13.964/19 vai muito além
dessas questões populistas, pois ela introduz no ordenamento pátrio
importantíssimas inovações, tais como (i) o acordo de não persecução penal
(objeto deste artigo); (ii) transforma um crime de ação penal pública
incondicionada em condicionada à representação da vítima; (iii) agasalha e
transforma em dispositivos legais entendimentos já pacificados na
jurisprudência (como, por exemplo, a suspensão da prescrição na pendência de
embargos de declaração ou quando os recursos especiais e extraordinários não
são admitidos), regimenta de forma detalhada a delação premiada, entre outras
alterações.
[22]
Para Alexandre de Moraes, a presunção de inocência é relativa no Brasil e em
vários países democráticos. Além disso, afirma que deve ser garantido o devido
processo legal, a ampla defesa e o direito ao contraditório aos réus. E, não
poderá o princípio da presunção da inocência não pode ser interpretado de
maneira isolada. No vernáculo “presunção” tem duas acepções: primeiro pode
significar a vaidade exagerada. É nesse sentido que se diz que “Fulano é um
presunçoso”. Trata-se do autoengano daquele que se supervaloriza. [3] Note-se
que já aqui a palavra “presunção” não tem força de impor uma verdade intocável,
muito ao reverso, denota uma situação em que o presunçoso se autoengana e a
presunção desmente a imagem falsa e supervalorizada que ele tem de si mesmo.
Mas, não é esse o sentido em que a palavra é utilizada na expressão jurídica
“Presunção de Inocência”. Ali se trata de “conjecturar; supor; imaginar;
entender, baseando-se em certas probabilidades; prever; pressupor; suspeitar”.
[4] Dessa forma quando digo que “Presumo que haja alguém naquele quarto”, não
estou afirmando nada com certeza e se a porta for aberta e não houver ninguém
contradição alguma haverá com a minha frase inicial. Eu apenas pressupunha
haver alguém ali, podendo haver ou não. A presunção não se confunde com a
certeza e muito menos com a verdade. É apenas e nada mais do que um juízo de
probabilidade. In: HC 152.752 Paraná. Relator Min. Edson Fachin. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/dl/voto-alexandre-moraes-prisao.pdf
Acesso em 16.12.2021.
[23]
O artigo 297 do Regimento Interno do STF prevê que "pode o Presidente, a
requerimento do Procurador-Geral, ou da pessoa jurídica de direito público
interessada, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à
economia pública, suspender, em despacho fundamentado, a execução de liminar,
ou da decisão concessiva de mandado de segurança, proferida em única ou última
instância, pelos tribunais locais ou federais".
[24]
Neste aspecto, vejamos trecho de decisão da lavra do eminente Ministro Gilmar
Mendes, de 31/8/2018, proferida no julgamento do RE 982.162/SP, interposto pela
Defensoria Pública de São Paulo, in verbis: Inicialmente, tenho que,
realmente, o acórdão relativizou a soberania dos veredictos. É que o
recorrente, submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, alegou legítima
defesa e, ao “SIM”, pela absolvição, os jurados resolveram acatar a tese
defensiva, com base na prova dos autos. O Tribunal de origem, ao apreciar a
apelação, registrou que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à
prova dos autos, razão por que deve o recorrente ser submetido a novo
julgamento. Destaco trecho do acórdão: “A testemunha Noélia, ouvida as fls.
616/617, sustentou que viu o réu com uma faca; todavia, na hora dos fatos
estava trabalhando, nada tendo visto. Já
a testemunha de defesa Moacyr, amigo de infância de Álvaro, afirmou, a fls.
618/619, que José Ademilson, a vítima, estava armado, chegando a atirar. Depois, ouviu disparos e soube que a vítima
fora atingida. “Por outro lado, do relato do policial militar ouvido a
assertiva de que arma de fogo alguma se viu apreendida em poder do ofendido.
Desta forma, tem-se que as versões ofertadas se mostraram francamente
antagônicas, a roborar o posicionamento ministerial de que a decisão proferida
– aliás calcada em contraditórios testemunhos defensivos – restou dissociada do
contexto fático-probatório dos autos.” Da leitura do excerto acima, vê-se que
há duas versões pelas testemunhas: a de que a vítima estava armada e a de que
não foi apreendida arma com ela. Ora, se há duas provas, uma em favor do réu e
outra contra ele, no âmbito do Tribunal do Júri, cabe exclusivamente aos
jurados decidir sobre elas.
[25]
O princípio in dubio pro societate, portanto, é uma espécie de resposta
e contrapeso ao princípio in dubio pro reo, impõe ao juiz um raciocínio
de que, mesmo que não haja certeza, mas se convencido da materialidade do fato
e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, ele
deverá pronunciar o acusado, para que a própria sociedade, representada pelos
jurados, decida sobre a condenação ou não do acusado, tudo em conformidade com
o disposto no artigo 5º, inciso XXXVIII: é reconhecida a instituição do júri,
com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b)
o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; e d) a competência para o
julgamento dos crimes dolosos contra a vida”.
[26] Em relação a não diferenciação entre presunção de inocência e presunção de culpabilidade, Badaró (2021) aduz que: “Não há diferença de conteúdo entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade. As expressões “inocente” e “não culpável” constituem somente variantes semânticas de um idêntico conteúdo. É inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias, devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas”. No tocante ao conteúdo da presunção de inocência, é possível distinguir três significados: (i) garantia política; (ii) regra de tratamento do acusado; (iii) regra probatória. A primeira, e talvez a mais importante forma de analisar tal princípio, é como garantia política do cidadão. Nesse sentido, advoga a melhor doutrina que: “O processo, e em particular o processo penal, é um microcosmos no qual se refletem a cultura da sociedade e a organização do sistema político. Não se pode imaginar um Estado de Direito que não adote um processo penal acusatório e, como seu consectário necessário, o in dubio pro reo. A presunção de não culpabilidade é um fundamento sistemático e estrutural do processo acusatório. O princípio da presunção de inocência é reconhecido, atualmente, como componente basilar de um modelo processual penal que queira ser respeitador da dignidade e dos direitos essenciais da pessoa humana. Há um valor eminentemente ideológico na presunção de inocência. Liga-se, pois, à própria finalidade do processo penal: um processo necessário para a verificação jurisdicional da ocorrência de um delito e sua autoria.
[27]
O ônus da prova pode ser classificado como um instituto complexo, pois envolve
os conceitos de dois objetos autônomos do Direito: ônus e prova. No que toca à
definição do que seria um ônus poderíamos discorrer várias páginas sobre a
origem do termo ônus ou mesmo traçar todas as linhas diferenciadoras entre
ônus, dever e obrigação. Entretanto, é possível sumariar a questão da forma a
seguir. O ônus se distingue dos deveres, porque os últimos são impostos pelo
interesse da comunidade (normalmente impostos por atos normativos) e o seu
descumprimento consubstancia um ato ilícito, o qual é acompanhado de correlata
sanção. Diferentemente, o ônus é um imperativo do interesse do próprio onerado
e seu descumprimento, embora signifique um grande risco ao interesse de seu
detentor, não gera a aplicação de qualquer sanção. De igual forma, o ônus se difere da obrigação
porque nesta existe uma relação jurídica base com interesses contrapostos,
havendo um poder recíproco entre os coobrigados de exigir o adimplemento das
prestações em Juízo, o que não ocorre no caso do ônus, cujo cumprimento não
pode ser exigido judicialmente.