O politicamente incorreto nas músicas do carnaval brasileiro

Por Gisele Leite

Fonte: Gisele Leite

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A expressão “politicamente correto”[1] se firmou na língua inglesa como parte de uma ofensiva da direita estadunidense nas chamadas guerras culturais dos anos 1980 e 1990.

No início do século XX, a frase "politicamente correta" foi associada à aplicação dogmática da doutrina stalinista, debatida entre membros do partido Comunista e Socialistas americanos. Este uso se referia à linha do Partido Comunista, que forneceu posições "corretas" em muitos assuntos políticos. De acordo com o educador americano Herbert Kohl, escrevendo sobre debates em Nova York no final da década de 1940 e início da década de 1950:

O termo "politicamente correto" foi usado com desprezo, para se referir a alguém cuja lealdade à linha do PC [Partido Comunista] superou a compaixão e levou a uma política ruim.

Foi usado pelos socialistas contra os comunistas e deveria separar os socialistas que acreditavam em ideias morais igualitárias de comunistas dogmáticos que advogassem e defendessem posições partidárias independentemente de sua substância moral.

O discurso politicamente incorreto é, em oposição ao chamado politicamente correto, uma forma de expressão que banaliza preconceitos sociais, sem receios de nenhuma ordem. Além de reverberar preconceitos cotidianos, alguns estudiosos afirmam que o politicamente incorreto foi apropriado por movimentos de direita e é atualmente utilizado como ferramenta de oposição às pautas da esquerda e das minorias.

Segundo Magenta o Dicionário Conciso de Política da Universidade de Oxford conta que esse influente movimento em universidades americanas defendia o princípio de ações afirmativas e noções de multiculturalismo, promovendo discursos e comportamentos antissexistas e antirracistas.

A expressão também foi utilizada, no Brasil e no resto do mundo, por grupos conservadores para se referir a um patrulhamento ideológico por parte de marxistas. Nos Estados Unidos, a expressão foi empregada na publicação do “Guia Politicamente Incorreto”, de matriz conservadora.

No Brasil, duas publicações de título semelhante foram divulgadas recentemente: o “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, e o “Guia Politicamente Incorreto da História da América Latina”. Em um desses livros alega-se que Evita Perón detinha bens roubados pelos nazistas[2].

Segundo resenhas do O Estado de S. Paulo e da Folha de S.Paulo, os guias buscam denegrir a imagem de figuras liberais e da esquerda, pois acreditam que toda a história anterior é uma invenção de marxistas politicamente comprometidos, e reproduzem dados que não são precisos em sua tentativa de deslegitimar a historiografia acadêmica

Durante muitas décadas, as marchas de carnaval foram músicas que tanto fizeram a alegria do carnaval brasileiro e convocavam os foliões. No Rio de Janeiro, no período pré-carnavalesco deste ano, blocos já se tornaram foco de bate-boca por cantarem músicas como “Maria Sapatão’, “Teu cabelo não nega” ou “Cabeleira do Zezé”. Até  no frevo, há canções caracterizadas por apresentarem um conteúdo que parece incompatível com a militância social observada nos dias de hoje.

“Ó Abre Alas” de Chiquinha Gonzaga (1899).  ideia de utilizá-la como ponto de partida está na sua importância histórica para debater temas relacionados à inserção e o papel das mulheres no mercado de trabalho e na sociedade.

A marchinha é considerada a primeira marcha carnavalesca e, foi composta pela musicista Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a Chiquinha Gonzaga, uma mulher que em pleno século XIX ousou lutar pelos seus sonhos e ideais.

Separou-se duas vezes, trabalhou para criar um filho sozinha, levou adiante uma relação com um rapaz 36 anos mais jovem, engajou-se politicamente na luta pela abolição da escravatura e pelo fim da monarquia.

Registre-se que o dia 17 de outubro é a data de seu nascimento que foi instituído como o Dia Nacional da Música Popular Brasileira por meio da Lei 12.624/2012. Chiquinha Gonzaga faleceu no Rio de Janeiro, no início do carnaval de 1935 aos 87(oitenta e sete) anos.

“Maria Sapatão” de João Kelly (1981).  Essa marchinha foi encomendada pelo apresentador Chacrinha, que teria dito ao compositor “Vamos fazer algo engraçado porque tem um bocado de sapatão!”.

Embora hoje seja politicamente incorreto, pois o termo “sapatão” é pejorativo, a letra não possuía esse tom na época em que foi criada. A  marchinha pode ser utilizada como norte para se discutir gênero, preconceito, homofobia e temas correlatos.

“Bota camisinha” de João Kelly e Leleco (1987) uma fonte confiável sobre a data exata de lançamento da marchinha, tudo indica que tenha sido lançada no final dos anos 1980, quando a epidemia de AIDS começava a se alastrar ao redor do mundo, incluindo o Brasil, e uma campanha para o uso do preservativo que é apelidado de “camisinha”, começou a ser incentivado.

O apresentador Chacrinha, a quem fizemos menção na marchinha anterior, novamente entrou em cena. Tendo sido considerado um dos maiores comunicadores do país, em função do sucesso de seus programas de auditório em rádio e de TV, o “velho guerreiro” como também era conhecido – cantava a marchinha no programa “Cassino do Chacrinha”.

Em função da grande popularidade do programa, Chacrinha ajudou a disseminar a importância do uso do preservativo para “não se machucar no carnaval”.

O Boletim Epidemiológico de HIV/AIDS apresentado pelo Ministério da Saúde em dezembro de 2017 indicou uma redução de 5% na taxa de detecção de AIDS no país na comparação de 2016 em relação a 2015.

Porém, o mesmo Boletim indica o perfil do infectado entre 2006 e 2016: enquanto a taxa de contágio entre as mulheres caiu, a dos homens aumentou.

“Não existe pecado ao Sul do Equador”[3] de Chico Buarque e Ruy Guerra (1973) no século XVII, “quando a ideia que se fazia do Brasil era essa, para o bem ou para o mal: um lugar livre da ‘moral’ e ‘bons costumes’”.

Na postagem que faz no blog, a autora chama a atenção para o fato de que a principal frase da música, que também dá título a ela “Não existe pecado ao Sul do Equador” foi escrita no século XVII e que Chico Buarque a encontrou no livro “Raízes do Brasil”[4] escrita por seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda.

A frase remetia à ideia de que a linha que divide o mundo em dois hemisférios parecia também dividir a virtude (Hemisfério Norte – Velho Mundo) do vício (Hemisfério Sul – Novo Mundo). Assim, o “lado de baixo do Equador” representaria uma terra de ninguém, onde tudo se podia, nada era proibido. 

A pesquisa da FGV para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela que a ampla maioria dos entrevistados, mais de 80% (dos 7.176 entrevistados), declarou concordar que “‘é fácil desobedecer à lei no Brasil’ e que o cidadão brasileiro, sempre que possível, opta pelo ‘jeitinho’ em vez de obedecer à lei.

Ou seja, a grande maioria dos brasileiros entende que a lei pode ser facilmente ignorada e que esse comportamento é generalizado”. Será que o Brasil está fadado a ser a terra do “tudo pode”? Do “não vai dar nada”? Do “dá um jeitinho”? Infelizmente pela popularidade da impunidade ainda em tempos contemporâneos, pode-se ainda acreditar nessa premissa.

Alguns blocos começaram a contestar a permanência de letras consideradas machistas, racistas ou preconceituosas, feitas em um Brasil dos anos 40 e 50 que não tinham mais a ver com as conquistas sociais dos tempos mais recentes.

O pesquisador Tárik de Souza também aponta: “Ninguém pode ser obrigado a cantar o que não quer. Mas a volta da censura[5], mesmo que por razões consideradas nobres, é algo assustador.

O carnaval tem sempre um sentido anárquico e caricatural. A catarse sem foi o mote de toda alegria no carnaval.

Outra música é “Nega maluca” cuja letra:

Uma nega maluca me apareceu

Vinha com um filho no colo

E dizia pro povo

Que o filho era meu

Toma que o filho é seu

Não senhor…

Guarda o que Deus lhe deu

Não senhor…

Novamente, em matéria de romance, as mulheres costumam “pagar o pato”, pois se entregam sem reservas. Os homens, não.

Outra música, intitulada: “Maria Escandalosa”, cuja a letra na íntegra é:

Maria Escandalosa desde criança sempre deu alteração

Na escola, não dava bola

Só aprendia o que não era da lição

Depois a Maria cresceu, juízo que é bom encolheu

E a Maria Escandalosa, é muito prosa, é mentirosa,

mas é gostosa

Hoje ela não sabe nada de História, de Geografia

Mas seu corpo de sereia dá aula de anatomia

E a “Maria Escandalosa”, é muito prosa, é mentirosa, mas é gostosa

A coisificação da mulher (que neologismo horroroso!), o culto da mulher objeto, com ênfase às burras, pois essas seriam, em tese (tese masculina, obviamente), mais receptivas à sedução e ao sexo sem compromisso emocional. Não é de hoje, vigora o culto a toda beleza, charme, e sensualidade da mulher brasileira.

“Dá nela”, veja a letra: Esta mulher

Há muito tempo me provoca

Dá nela! Dá nela!

É perigosa

Fala mais que pata choca

Dá nela! Dá nela!

Fala, língua de trapo

Pois da tua boca

Eu não escapo.

Hoje em dia, quem der nela, além da mão secar para sempre, vai ter que se ver com a Lei Maria da Penha. Ademais, a música estimula a prática de violência contra a mulher.

Assim, temos definitivamente o “carnaval proibidão” porque as marchinhas antigas são alvo de controvérsias e criminalização. Consideradas politicamente incorretas, músicas como “Cabeleira do Zezé”, “Maria Sapatão”, “Índio quer apito” e “O teu cabelo não nega” começam a sair do repertório de alguns blocos, como revelou a coluna Gente Boa, do GLOBO.

Referências

BERTOLOTTO, Rodrigo. Argentina ressurge como refúgio nazista. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/12/22/mundo/20.html Acesso em 12.2.2024.

DE SOUSA, Tárik. IMMuB Disponível em: https://immub.org/noticias/colunista/tarik-de-souza Acesso em 11.2.2024.

Estadão.  Músicas são retiradas de alguns blocos por serem consideradas preconceituosas. Disponível em: https://www.estadao.com.br/emais/comportamento/marchinhas-classicas-comecam-a-ser-banidas-de-blocos-de-carnaval-do-rio/ Acesso 11.2.2024.

FERREIRA, Mauro. Banir marchinhas incorretas é inútil, mas é preciso refletir sobre as letras. Disponível em: https://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/banir-marchinhas-incorretas-e-inutil-mas-e-preciso-refletir-sobre-letras.html Acesso 11.2.2024.

MAGENTA, Matheus. O que é politicamente correto? Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-62550838 Acesso em 11.2.2024. Acesso 11.2.2024

MANSQUE, William. Carnaval proibidão. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2020/02/carnaval-proibidao-por-que-marchinhas-antigas-sao-alvo-de-controversia-ck6v92cyh0irk01mvutsmkyhc.html Acesso 11.2.2024.

RIBEIRO, Márcia. Marchinhas Proibidas. Disponível em: https://hilnethcorreia.com.br/2017/01/31/marchinhas-proibidas/ Acesso em 11.2.2024.

SCHLCKMANN, Raphael. 5 Marchinhas de carnaval para discutir política. Disponível em: https://www.politize.com.br/marchinhas-de-carnaval-politicas/ Acesso 11.2.2024.

SOUZA, Miguel. "Marchinhas de Carnaval"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/carnaval/marchinhas-de-carnaval.htm. Acesso em 11 de fevereiro de 2024.

VÊNCIO, EBERTH, 10 Marchinhas de carnaval para cantar e ser preso. Revista Bula. Disponível em: https://www.revistabula.com/3879-negro-gay-e-pobre-ferrou-10-marchinhas-de-carnaval-para-cantar-por-ai-e-ser-preso/ Acesso 11.2.2024.

Notas:

[1] A expressão “politicamente correto” se firmou na língua inglesa como parte de uma ofensiva da direita estadunidense nas chamadas guerras culturais dos anos 1980 e 1990. Embora haja ocorrências da expressão em textos da New Left (a Nova Esquerda), foi naquelas batalhas que o termo passou a funcionar como designação de um suposto autoritarismo policialesco da esquerda no uso da linguagem. A esfera do politicamente correto abrangeria classe, raça, gênero, orientação sexual, nacionalidade, descapacitação e outros marcadores de subalternidade. Mas, sem dúvida, o exemplo paradigmático sempre foi racial. Enquanto parte significativa dos negros dos EUA passava a utilizar, como autodescrição, o termo “afro-americano” — sob a lógica de que preferiam identificar-se pela cultura de origem, e não pela cor da pele —, o conservadorismo realizava simpósios como “Correção Política e Estudos Culturais”, promovido pela Conferência das Humanidades Ocidentais, em Berkeley, em 1990. O colóquio se propunha a examinar “qual o efeito que tem sobre a pesquisa acadêmica a pressão para se conformar a ideias atualmente na moda”. Tomava corpo a bem sucedida estratégia da direita nas guerras culturais. Partia-se de uma premissa jamais demonstrada, a “pressão” para que se adotassem expressões “politicamente corretas”. No mundo contemporâneo, não se tinha notícia de grandes pressões do movimento negro sobre quem fosse para que se abandonasse o termo “black” por “African-American”. Não se tinha notícia de que ninguém tivesse sofrido dano considerável por não usar “ele ou ela” (ao invés de somente “ele”) em frases com sujeito de gênero indeterminado. Mas o mero ato de se explorar a possibilidade de uma nomenclatura alternativa, mais conforme à identidade reclamada pela comunidade, no caso racial, mais inclusiva e menos discriminatória, no caso dos pressupostos sexistas da língua, já oferecia o arremedo de bicho-papão a partir do qual a direita dos EUA desenvolveria sua tática favorita: silenciar o outro enquanto se faz de vítima oprimida. O coroamento dessa tática ocorreu no famoso caso da Universidade Stanford, que marcou a vitória da direita naquele debate e a consolidação da expressão “politicamente correto”.

[2] "A Argentina não é somente um refúgio para os criminosos nazistas, mas também foi e segue sendo o ponto principal da atividade econômica e financeira nazista no continente", afirmava, em uma carta de 7 de fevereiro de 1945, o então secretário do Tesouro dos EUA, Henry Morgenthau Jr. O regime peronista estava longe de se parecer ao nazista. A aproximação de Perón dos alemães se deveu muito mais a sua formação militar, toda ela baseada na doutrina prussiana de guerra. Perón chegou a escrever um livro em 1931 sobre o tema: "Guerra Mundial 1914.

[3] Caspar (Kaspar) van Baarle (é mais conhecido pelo seu nome Latino), estudou teologia e foi clérigo antes de tornar-se professor de lógica na Universidade de Leiden. A partir de 1631, atuou no Ateneu de Amsterdã (Athenaeum Illustre). Esta instituição, sediada na quatrocentista Agnietenkapel, é tida como antecessora da Universidade de Amsterdã. Lá, em janeiro de 1632, Barlaeus proferiu, juntamente com Gerard Vossius, sua preleção inaugural, tendo mais tarde encorajado Martinus Hortensius a fazer o mesmo. No Brasil, é particularmente lembrado pela citação feita por Euclides da Cunha em sua obra "À margem da História" como o "... mesmo doloroso apotegma - ultra aequinotialem non peccavi [não existe pecado abaixo do Equador] - que Barlaeus engenhou para explicar os desmandos da época colonial". Sérgio Buarque de Holanda retomou o tema em sua obra principal, "Raízes do Brasil", acrescentando um comentário, do próprio Barlaeus, "Como se a linha que divide os hemisférios separasse também a virtude do vício", ideias mais tarde transpostas para a canção da autoria de seu filho Chico Buarque, e de Ruy Guerra, "Não existe pecado ao sul do equador", popularizada na voz de Ney Matogrosso.

[4] O livro “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, foi lançado em 1936, como o próprio título diz, o livro investiga as origens da formação do povo brasileiro. Para tanto, Sérgio Buarque utiliza as teorias sociológicas do alemão Max Weber para compor seu estudo. Trata-se de uma obra essencial para conhecer o Brasil junto a “Casa-Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre e "Formação Contemporânea do Brasil", de Caio Prado Júnior. É um livro inovador no que diz respeito à busca da identidade nacional. Num momento onde a psicologia vinha se desenvolvendo muito e a sociologia começava a perder seu caráter altamente “científico”, Sérgio Buarque foi atrás do que poderíamos chamar de essência do homem brasileiro. Num jogo de idas e vindas pela nossa história, deixando claro os momentos que mais considerava, Sérgio Buarque foi construindo um panorama histórico no qual inseriu o “homem cordial”, que nada mais é do que fruto de nossa história, originada da colonização portuguesa, de uma estrutura política, econômica e social completamente instável de famílias patriarcais e escravagistas.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Politicamente Incorreto Músicas Carnaval Brasileiro

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