O dia de hoje... E o hoje, sem dia

Entender o porquê tantos pedidos de impeachment acompanhados de tantas denúncias de crimes de responsabilidade do atual Presidente da República não foram analisados, significa avaliar ciosamente a natureza jurídica desse instituto, bem como, todos os meandros jurídicos e políticos de tão delicada questão.

Fonte: Gisele Leite

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Enfim, mais um governo de coligação ou coalizão que representa um gabinete governamental sustentado por vários partidos que cooperam, o que reduz sensivelmente o domínio de qualquer uma das partes dentro dessa coalização. Curiosamente, a coligação política por ser um pacto entre dois ou mais partidos políticos, requer que haja, ao menos, ideias comuns, para se ter alguma governabilidade consistente.

Porém, no Brasil, a federação partidária corresponde mesmo à configuração de uma coligação política mais duradoura e, nem sempre contendo maior unidade ideológica. E, com a vigência da cláusula de barreira[1] prevista desde 2006, as federações partidárias já eram alvos de debate desde 2003.

O cronômetro do impeachment está funcionando. O Presidente da Câmara dos Deputados acredita piamente que, pode ignorar todas as acusações contra a Presidente da República por um prazo indeterminado.

Convém sublinhar que o Presidente da Câmara julga ter um poder que não existe na Constituição Federal brasileira vigente nem mesmo na Lei do Impeachment, a Lei 1.079/50. Aliás, o artigo 19 da referida lei, sequer menciona a figura do Presidente da Câmara dos Deputados, sendo evidente que ao mencionar que a denúncia recebida será lida e despachada à Comissão Especial de Impeachment.

A Constituição brasileira vigente atribui o controle político sobre os processos contra o Presidente da República, seja por crimes[2] comuns como também por crimes de responsabilidade, ao plenário da Câmara de Deputados e, não à pessoa que ocupa a Presidência da Casa Parlamentar.

De sorte que Arthur Lira deve ser mero despachante de papéis que reúnem as denúncias recebidas na seção de protocolo e encaminhá-las à Comissão especial de impeachment. Em tempo, prevê o Regimento Interno da Câmara dos Deputados outorga ao Presidente da Casa poderes para rejeitar as denúncias manifestamente improcedentes.

É o caso daquelas que descrevem conduta descrita que claramente não caracteriza crime de responsabilidade, conforme ocorreu na acusação contra Itamar Franco por haver dançado ao lado da modelo Lilian Ramos em um camarote no carnaval de 1994.

Ou por faltar peças processuais deixando de preencher todos os requisitos formais exigidos por lei, como, por exemplo, a prova de quitação eleitoral dos denunciantes.

O poder de indeferir o pedido de impeachment e de mandar arquivá-lo, é completamente diferente do poder de ignorá-lo. Não é demais ressaltar que a decisão de arquivar eventual denúncia contra o Presidente da República é um poder do Presidente da Câmara, porém, mas não a sua eliminação.

O suposto poder de ignorar denúncias que esvaziem os pedidos de qualquer efeito jurídico possível, só pode ser efetivado por meio de decisão do plenário.

Em suma, nem o texto constitucional brasileiro vigente, nem a Lei do Impeachment, nem o Regimento Interno da Câmara dos Deputados outorgam poder ao Presidente da Casa Legislativa de ser o senhor absoluto e incontrastável dos destinos do impeachment.

Historicamente, antes da Constituição Federal de 1988, o sepultamento político de denúncias costumava ser realizado pela Comissão Especial de Impeachment da Câmara de Deputados. O primeiro presidente brasileiro a sofrer grave acusação de crimes de responsabilidade foi o Marechal Floriano Peixoto que fora poupado pela Comissão. E, o mesmo ocorreu, mais tarde, com Getúlio Vargas que igualmente escapou do impeachment pouco antes de seu suicídio, em 1954.

Até a gestão de Eduardo Cunha, como Presidente da Câmara dos Deputados, que tinha o hábito de rapidamente despachar as denúncias que recebiam, salvo uma ou outra exceção. E, arquivaram-se, mas, ao fazê-lo, também se submetiam ao plenário.

Já nos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), por três vezes, no governo de Lula, por seis vezes, o plenário da Câmara de Deputados deliberou sobre os recursos apresentados por deputados contra as decisões da Presidência da Casa que haviam negado seguimento as denúncias.

Aliás, depois da catastrófica entrevista dada por Pedro Collor à revista Veja, em maio de 1992, o então Presidente da Câmara, o Deputado Ibsen Pinheiro, recebeu vinte e três denúncias contra o então Presidente Fernando Collor de Mello.

Registre-se que apenas uma destas demorou pouco mais de duas semanas para galgar um despacho que lhe selasse o destino. Com exceção da acusação apresentada pelo saudoso Barbosa Lima Sobrinho e Marcelo Lavenère Machado que redundaria com a condenação do então presidente, todas as demais tiveram seguimento negado em poucos dias.

A denúncia de Roberto Jefferson que deflagrou o escândalo do mensalão, em meados de 2005, a Câmara dos Deputados que era presidida pelo folclórico Severino Cavalcanti que na ocasião, recebera oito acusações contra o Presidente Lula e, jamais demorou mais de noventa dias para apreciar qualquer] uma destas.

E, quando Michel Temer e Aécio Neves presidiram a Câmara dos Deputados no tumultuoso segundo mandato[3] de Fernando Henrique Cardoso, foram igualmente expeditos em despachar as acusações apresentadas.

Somente em duas ocasiões, Temer demorou mais de noventa dias para despachar as denúncias recebidas durante sua gestão. Mas, o autêntico recorde na tardança foi de Aécio Neves, afinal, como fiel correligionário de FHC, tanto quanto é Lira em relação ao Bolsonaro, contabilizou-se a demora em apenas cinquenta e sete dias.

A personagem que mais nos fez crer no poder absoluto do Presidente da Câmara no que tange ao impeachment, foi Eduardo Cunha, regendo segundo seus caprichos e conveniências e, violando o autêntico espírito republicano e democrático. Em sua gestão, recebera cinquenta e sete pedidos e, lidou com cada um segundo os benefícios pessoais e vantagens políticas que imaginava poder ter no momento.

E, somente em sua gestão, foram apresentadas cinquenta e quatro denúncias contra Dilma Rousseff, quando ignorou vinte e seis e, curiosamente, foi célere na apreciação das acusações somente no segundo semestre de 2015, quando a base governista estava dilapidada pela Lava-Jato e, o próprio Cunha que sofria para conseguir apoio no processo a que respondia no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar[4] da Câmara. E, enfim, a denúncia culminou a condenação e respectiva remoção de Dilma e, que fora despachada por Cunha em apenas quarenta e dois dias.

Rodrigo Maia, quando Presidente da Câmara, cultivou ciosamente a arte de ignorar as denúncias, e instaurou o arbitrário poder durante o governo de Temer, quando então a opinião pública estava mais voltada à denúncia por crime comum e que fora apresentada pelo Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, contra o então Presidente.

Somente entre 2016 a 2017, Maia recebera cerca de trinta e uma denúncias por crimes de responsabilidade[5] presidenciais. Apenas com a exceção de uma, todas as demais foram devidamente arquivadas apenas em 2019, ainda no governo Bolsonaro quando evidentemente, já não mais fazia sentido, posto que Temer já não era mais presidente da República.

Mas, o campeão no estoque de denúncias na gaveta é mesmo Arthur Lira, além de medalha de ouro para Bolsonaro que é atualmente o presente que mais acusações sofreu na história brasileira. E, Rodrigo Maia, foi o Presidente da Câmara que mais ignorou peremptoriamente as denúncias de crimes cometidos por presidentes da República. Além das trinta e uma denúncias contra Temer, ignorou também as sessenta e seis acusações apresentadas contra Bolsonaro.

Infelizmente juristas, doutrinadores e alguns políticos parecem ter se conformado com o suposto poder absoluto do Presidente da Câmara para definir se e quando o pedido de impeachment deverá ser analisado, como se fosse uma decorrência natural da definição de impeachment como mero julgamento político.

Apesar do impeachment ser necessariamente político, não deve ser confundido com mero joguete da baixa politicagem, ou embate de interesses escusos e regionais. A grande política é amplamente compatível com as garantias de direito, devendo decidir e não apenas esconder ou ignorar. O direito não exige tanto, ou seja, tem que haver uma decisão, seja qual for, além da fundamentação que é alma mater de toda atividade decisória jurídica.

A interpretação das normas constitucionais e legais está distante de ser a mais restritiva para o papel do Presidente da Câmara de Deputados, tanto que o STF até já definiu que o Regimento Interno da Câmara é compatível com a Lei do Impeachment e, ainda, já firmou que o Presidente da Câmara não tem concretamente qualquer missão relevante que é o simples dever de enviar todas as denúncias à Comissão Especial. Porém, isto não está acontecendo.

Mesmo quando o Presidente da Câmara indeferir o recebimento da denúncia, caberá recurso ao plenário da Câmara e, se somente quando não houver recurso, que então a denúncia é arquivada.

Mas, diante do recurso, a decisão passa a ser do plenário e, não mais apenas do Presidente da Câmara. Acatado o recurso, deverá ser constituída a Comissão Especial para analisar a denúncia e, se for recusado o recurso, a denúncia sofre o devido arquivamento.

Em tempo, as regras do Regimento Interno da Câmara dos Deputados foram devidamente analisadas pelo STF em 2015, por ocasião do impeachment de Dilma, com a grande virtude de clareza nos procedimentos, além de manter o caráter político das deliberações. O que não coaduna com qualquer poder individual e absoluto.

A respeito do prazo que o Presidente da Câmara tem para decidir, dependerá se estiverem presentes todos os requisitos constitucionais, legais re regimentais para a denúncia, o Presidente da Câmara deverá colocá-la na pauta na sessão seguinte, eis o que consta do regimento da Câmara, em seu artigo 218, §2º[6].

Define-se sessão seguinte[7] aquela que imediatamente sucede à data do protocolo da denúncia. E, a mesma solução é da Lei de Impeachment. Há o entendimento de que é possível a análise do preenchimento dos requisitos constitucionais e legais, além dos regimentais que poderá levar algum tempo e, a inserção na pautar somente se daria na sessão seguinte ao término dessa análise, que é feita individualmente pelo Presidente da Câmara.

O busilis é que o Regimento Interno da Câmara não estabeleceu prazo, mas o direito lida geralmente com essa situação. E, então se requer que o poder público atenda e despache em tempo razoável, o que dista de uma proposital tardança ou simples ignorância das denúncias feitas e abandonadas no fundo de uma gaveta.

Calcado em boa-fé objetiva prazo razoável não poderá exceder ao mandato do presidente da República tão regiamente denunciado. Segundo o artigo 20 da Lei de Impeachment confere-se à Comissão Especial de impeachment um prazo de dez dias para emitir parecer de mérito sobre se a denúncia deve ou não ser objeto de deliberação, quando a análise é fruto de juízo sumário. Portanto, a conduta tanto de Maia como de Lira não tem respaldo jurídico sustentável.

De fato, Lira não inova tanto quanto seus antecessores mais recentes, e insiste na prática de abuso de poder[8] ao se omitir. Lembremos, em tempo, que descumprir intencionalmente o Regimento Interno da Casa parlamentar, constitui quebra de decoro, prevista no Código de Ética da Câmara, em seu artigo 3º, II, e 5º, X, e qualquer cidadão poderá então apresentar a representação contra o Presidente da Câmara no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar.

É bem veraz que as representações feitas e apresentadas à tal Conselho, mui raramente, acarretam alguma punição, porém, tal movimentação forçaria os outros parlamentares, pelos integrantes do Conselho, a assumirem o ônus de se posicionarem publicamente diante da omissão praticada.

A Comissão igualmente não tem poder de ordenar o Presidente da Câmara decidir ou despachar, tampouco, de pautar o referido pedido em seu lugar, porém, possui plenos poderes para afirmar e definir se seu comportamento viola ou não as regras regimentais da Casa Parlamentar.

Por outro caminho, poderia ser, naturalmente, da mais alta Corte Judicial do país, o STF, a quem compete conhecer, julgar e mandar corrigir ilegalidades praticadas pelo presidente da Câmara dos Deputados.

Infelizmente, nosso STF tem jurisprudência inconstante, porém, majoritariamente contrária às intervenções judiciais para a correção de desrespeitos aos regimentos internos das casas do Congresso Nacional.

Mas, já existiram exceções, como as decisões que em 2015, puseram frio às manobras malabaristas tentadas por Eduardo Cunha, logo no início da tramitação do processo contra Dilma

Enfim, a questão não se limita somente ao Regimento Interno da Câmara dos Deputados, pois, afinal é a Lei do Impeachment que exige que a denúncia seja lida ostensivamente na sessão seguinte e devidamente despachada à Comissão Especial. Não se trata de mera questão interna corporis[9], na qual o tribunal entende não pode intervir. E, sim, decisões que não são tomadas constituindo uma afronta direta à lei brasileira.

Mas se é a lei (e não apenas o Regimento Interno) que estabelece o dever que tem sido descumprido, reiteradamente, pelo Presidente da Câmara, fica difícil encontrar argumentos hábeis para justificar a impossibilidade de apreciação judicial desse descumprimento.

O processo de impeachment e seu respectivo procedimento continuam a gerar polêmicas e dúvidas. Enquanto alguns, os alcunham de “golpe de Estado”, outros, por sua vez, alegam integrar a democracia.

Ambos os lados defendem que o impeachment que se trata de um julgamento mais político que propriamente técnico, ou seja, jurídico. Porém, há um lado jurídico que deve prevalecer para servir de base técnica e amparar a devida legitimidade.

E, de fato, deve cumprir todos os requisitos constitucionais, em decorrência do chamado crime de responsabilidade que são listados na Lei 1.079/1950.  A existência de tais crimes não se dá por mera motivação política.

O conceito de crime de responsabilidade, igualmente, é questão favorável ao lado político do rito[10] do impeachment, pois não se refere meramente aos delitos comuns tão presentes no Código Penal brasileiro, mas sim, a uma vasta lista de malfeitorias que um governante pode cometer[11].

Nesse sentido, o professor de Direito Constitucional Cláudio Colnago apud Blume, prevê que o crime de responsabilidade significa o proceder de modo incompatível com dignidade, a honra e o decoro do cargo. Verifica-se, que considerarmos só as declarações bolsonarianas, já teríamos inúmeros crimes de responsabilidade cometidos. A crassa falta de respeito à liturgia do cargo é fonte inesgotável de memes.

Em verdade, para o legislador da Lei do Impeachment previa que o Congresso Nacional poderia julgar de forma diferenciada do Judiciário, poder que deve sempre se distanciar das paixões políticas ou não.

Em 30 de junho de 2021, protocolou-se um superpedido[12] de impeachment que foi entregue ao Presidente da Câmara dos Deputados, resultante de uma articulação conjunta de partidos políticos de oposição e também por ex-aliados do governo e, apontou mais de vinte crimes contra a Lei da Responsabilidade[13]. O superpedido reuniu todos os argumentos expostos em todos os cento e vinte e dois pedidos já anteriormente protocolados e jamais despachados.

Como signatários do superpedido tiveram quarenta parlamentares de dez diferentes partidos e, algumas figuras políticas que antes apoiavam o governo, como Joice Hasselmann, Alexandre Frota e Kim Kataguiri. Curiosamente, Hasselmann, recentemente, pareceu agredida recentemente em seu apartamento funcional, sofrendo fraturas na face e, até perda de dente, fato que ainda está sendo alvo de investigação da polícia legislativa.

De qualquer forma, a bem da saúde do Estado Democrático de Direito precisamos estar atentos para que a democracia legítima prevaleça e seja preservada para conseguirmos galgar uma adequada gestão diante da crise sanitária presente[14].

Referências

BLUME, Bruno André. Processo de impeachment: julgamento político ou jurídico? Disponível em: https://www.politize.com.br/processo-de-impeachment-politico-juridico/ Acesso em 23.7.2021.

MAFFEI, Rafael; DA SILVA, Virgílio Afonso. Controlando o tempo do impeachment. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/controlando-o-tempo-do-impeachment/?utm_campaign=a_semana_na_piaui_67&utm_medium=email&utm_source=RD+Station   Acesso em 23.7.2021.

RIBEIRO, Renato Ventura. Considerações sobre o decoro parlamentar e os limites legais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2007-ago-31/decoro_parlamentar_quais_limites_legais  Acesso em 23.7.2021.

SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Impeachment. Tomo Direito Administrativo e Constitucional. Edição 1. abril de 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/103/edicao-1/impeachment Acesso em 23.7.2021.

Notas:

[1] Também conhecida como patamar eleitoral ou barreira constitucional, cláusula de exclusão ou cláusula de desempenho refere-se a um dispositivo limitador da atuação parlamentar de um partido que não alcançar um determinado percentual de votos. Tal exigência de votação mínima pode ser feita pela legislação eleitoral de diversas formas. No sistema proporcional, a cláusula de barreira exige que um partido ou coligação eleitoral de partidos tenham um grau mínimo de votação para obter a representação parlamentar. O percentual pode ser exigido em nível nacional ou no mais restrito (departamento, Estado ou município). A cláusula de barreira não é algo recente no Brasil. Em 1995 uma medida semelhante foi aprovada pelo Congresso Nacional, porém no ano em que de fato passaria a valer (em 2006), foi impedida pelos ministros do STF. O motivo por tal recusa dada pelo Supremo Tribunal Federal foi de que a lei prejudicaria os pequenos partidos, o que seria inconstitucional.

[2] Tanto nos crimes comuns quanto nos crimes de responsabilidade o recebimento da denúncia contra o Presidente da República não ocorre pelos órgãos da jurisdição, mas sim no âmbito do Poder Legislativo, através da aprovação de 2/3 dos membros da Câmara dos Deputados em ambas as modalidades do gênero “crime”, sendo que o processo e julgamento é realizado pelo Supremo Tribunal Federal na espécie “crime comum” e pelo Senado Federal na espécie “crime de responsabilidade”, neste último caso no exercício de uma função atípica do Legislativo, em consonância com o disposto no artigo 86 da Constituição Federal.  Afinal, a investidura de um mandato representativo submete os agentes públicos ao exercício do múnus, ou seja, a um conjunto de deveres e responsabilidades, em benefício da coletividade. Trata-se de uma decorrência do princípio republicano, o qual é o alicerce do Estado brasileiro. Em outras palavras, ao longo do exercício do mandato popular, os representantes podem ser responsabilizados por atos praticados no decorrer deste mesmo mandato.

[3] Para os chamados agentes políticos não se aplica a regra da continuidade administrativa, incidente apenas para os agentes públicos que possuem vínculo profissional com o Estado. Para eles, a habilitação técnica os qualifica a entreter relação que se prolonga no tempo, sem qualquer descontinuidade. Portanto, a reeleição do Presidente da República não viabiliza a responsabilização político-administrativa do Presidente da República por ato pretérito, praticado no primeiro mandato. Isso não significa que o Presidente da República seja absolutamente irresponsável pelos atos pretéritos, mas isso ocorre em outros ambientes do Direito estranhos ao campo da infração político-administrativa de Impeachment, situações em que podem ser aplicadas a ele sanções até mais graves que a perda do mandato.

[4] A definição é importante, porque o procedimento incompatível com o decoro parlamentar pode acarretar a perda do mandato do Deputado ou Senador (CF/1988, artigo 55, II). Assim, somente após a delimitação do conceito é que se saberá em quais casos pode haver a perda do mandato. Porém, a delimitação legal do conceito de decoro parlamentar é incompleta, gerando dúvidas na sua aplicação. A Constituição Federal (artigo 55, parágrafo 1º) prevê como falta de decoro o abuso das prerrogativas pelo parlamentar, percepção de vantagens indevidas e atos definidos como tal nos regimentos internos. E os regimentos internos não vão muito além da redação do texto constitucional.

[5] O crime de responsabilidade submete-se, na expressão de Luís Roberto Barroso, a um “regime de tipologia constitucional estrita”,79 cabendo ao legislador ordinário tão-somente explicitar as práticas que se subsumam aos tipos constitucionais.  O fato de o julgamento do crime de responsabilidade decorrer do exercício de uma função política do Estado não é alvará para que se atente contra os direitos fundamentais e o Estado de Direito. Por essa razão é que a aplicação de sanções no processo do crime de responsabilidade demanda o atendimento de requisitos para sua incidência válida. Além disso, voltamos a frisar, os sistemas de garantias próprio do Direito penal e do processo penal devem, no que couber, ser aplicados ao processo e julgamento do crime de responsabilidade, em especial a regra da modalidade dolosa, o princípio in dubio pro reo e, ainda, a interpretação restritiva. Assim é que, por exemplo, qualquer dúvida em faculdade polissêmica deve ser resolvida em favor do acusado. Efetivamente, é preciso que seja cotejada a salvaguarda da Constituição, a observância do princípio republicano, a probidade na administração e os demais valores em cena. Entretanto, é preciso que se tenha em mente que a Constituição conferiu ao Presidente da República todas as garantias do regime republicano-representativo, sem o qual estaria inviabilizado o exercício da relevante função pública de chefia do Estado e do governo, imunizando-o de oportunismos ilegítimos.

[6] Art. 218. É permitido a qualquer cidadão denunciar à Câmara dos Deputados o Presidente da República, o Vice-Presidente da República ou Ministro de Estado por crime de responsabilidade.§ 1º A denúncia, assinada pelo denunciante e com firma reconhecida, deverá ser acompanhada de documentos que a comprovem ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los, com indicação do local onde possam ser encontrados, bem como, se for o caso, do rol das testemunhas, em número de cinco, no mínimo.§ 2º Recebida a denúncia pelo Presidente, verificada a existência dos requisitos deque trata o parágrafo anterior, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada à Comissão Especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os Partidos.

[7] O pedido é lido na sessão seguinte da casa, pela Comissão Especial, que a partir da manifestação do denunciado, tem o prazo de 5 a 10 sessões para oferecer o parecer, que será lido no expediente seguinte da câmara. Após 48 horas da publicação do parecer no diário oficial da câmara, ele será incluído na ordem do dia da sessão seguinte. Na sessão, o parecer é submetido à votação dos deputados. Sendo o parecer aprovado na votação, a Câmara apresenta denúncia ao Senado, que cuidará do julgamento.

[8] O Abuso de Autoridade é crime e abrange as condutas abusivas de poder, conforme a explicação abaixo. O abuso de poder é gênero do qual surgem o excesso de poder ou o desvio de poder ou de finalidade. Assim, o abuso de poder pode se manifestar como o excesso de poder, caso em que o agente público atua além de sua competência legal, como pode se manifestar pelo desvio de poder, em que o agente público atua contrariamente ao interesse público, desviando-se da finalidade pública.

[9] O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não cabe ao Poder Judiciário fazer o controle jurisdicional da interpretação do sentido e do alcance das normas regimentais das Casas Legislativas quando não ficar caracterizado o desrespeito às regras constitucionais pertinentes ao processo legislativo. A decisão, por maioria, foi tomada na sessão virtual encerrada em 11/6, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1297884, com repercussão geral reconhecida (Tema 1120). Prevaleceu o voto do relator do RE, ministro Dias Toffoli, segundo o qual a jurisprudência do STF é pacífica no sentido de que, em respeito ao princípio da separação dos Poderes, não é possível o controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas. Segundo ele, nesses casos, é vedado ao Poder Judiciário substituir o Legislativo para dizer qual o verdadeiro significado da previsão regimental, matéria de natureza interna.

A tese de repercussão geral aprovada foi a seguinte: “Em respeito ao princípio da separação dos Poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis”. In: Controle Judicial sobre interpretação de normas regimentais legislativas é inconstitucional. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=467795&ori=1 Acesso em: 21.7.2021.

[10] O impeachment é um processo político-jurídico, no qual se apura o julgamento de crimes de responsabilidade cometidos por Ministros do Estado e do Supremo Tribunal Federal, Vice-presidente, Presidente da República e Governadores. É previsto pela Lei dos Crimes de Responsabilidade, Lei 1.079/50 e pelo Artigo 85 da Constituição Federal.

[11] A pesquisadora da Fiocruz diz ainda que a pandemia no Brasil ainda está em um patamar elevado, mas a aplicação de vacinas começa a ter impactos positivos, apesar de apenas 12% dos brasileiros estarem totalmente imunizados contra a covid-19. Diante da estratégia do governo Bolsonaro de comprar imunizantes superfaturados e apostar na tese da “imunidade de rebanho”, Lucia Souto aponta que a irresponsabilidade está “escancarada”.

[12] O “superpedido” é assinado pelos presidentes de partidos como PT, PDT, PSB, PCdoB, PSol, PCB, PSTU, PCO, Cidadania e Rede. Além deles, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), a Coalizão Negra por Direitos e outras entidades civis apoiam a iniciativa. O pedido também leva a assinatura de ambientalistas, advogados e ex-aliados do presidente, como os deputados Alexandre Frota (PSDB-SP) e Joice Hasselmann (PSL-SP). "As últimas denúncias trazem ainda mais força ao nosso pedido", disse o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição na Câmara. Entre as condutas criminosas que teriam sido cometidas por Bolsonaro e embasam o impeachment, o documento cita crime contra o livre exercício dos Poderes, pelas ameaças ao Congresso, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e interferência na Polícia Federal.

[13] A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) é um diploma legal brasileiro que regulamenta a utilização de recursos públicos. Os seus mecanismos buscam fazer com que os governantes controlem seus gastos, respeitando limites de despesas e cumprindo metas orçamentárias. É uma lei importante para a manutenção do equilíbrio das contas públicas.

[14] Pondera a imprensa que com Ciro Nogueira na Casa Civil a chance de impeachment vai a zero. É o que afirma Maia. In: RODRIGUES, Basília. CNN. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/07/22/com-ciro-na-casa-civil-chance-de-impeachment-vai-a-zero-afirma-maia Acesso em 23.7.2021.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Impeachment Denúncias Crimes de Responsabilidade Direito Constitucional Estado Democrático

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