Juiz de Garantias e o processo penal brasileiro contemporâneo

Plenário do STF determinou o prazo máximo de dois anos para que as legislações e os regulamentos dos tribunais sejam alterados com o fito de implementar o juiz de garantias. A medida fora elogiada pelos juristas brasileiros e considerada relevante para devida garantia de respeito aos direitos fundamentais de acusados. O juiz de garantias deve ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; decidir sobre o requerimento de prisão provisória e outra medida cautelar, podendo prorrogar, revogar ou até substituí-las, bem poderá prorrogar o prazo de duração do inquérito e, ainda, determinar trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para a instauração ou prosseguimento. O juiz ainda poderá requisitar documentos, laudos e informações ao Delegado de Polícia sobre o andamento da investigação policial e julgar habeas corpus impetrados antes do oferecimento da denúncia ou queixa crime. Não atuará em casos de competência do Tribunal do Júri.

Fonte: Gisele Leite

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A estrutura do sistema acusatório do processo penal brasileiro é montada com a Lei 13.964/2019, mais particularmente o artigo 3-A que in litteris: "O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação".

Lembremos que o atual CPP (Decreto-Lei 3.689, 3 de outubro de 1941 entrou em vigor durante o Estado Novo, em 1 de janeiro de 1942, com evidente inspiração fascista italiana que deu origem ao denominado Código Rocco de 1930[1].

A maior prova disso é a sua Exposição de Motivos que no seu n. II, salienta: "De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal no Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem”.

As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social.

Não se pode continuará contemporizar com a pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum (...) é ampliada a noção de flagrante delito... A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade para ser um dever imposto ao juiz, adquire a suficiente elasticidade para tornar-se medida plenamente assecuratória da efetivação da justiça penal".

Enfim, a basilar estrutura da legislação processual penal brasileira fora alicerçada em bases inquisitoriais oriundas do regime totalitária vigente durante a Segunda Grande Guerra Mundial. E, a maior prova disso, foi a subsistência de dispositivos legais de duvidosa constitucionalidade e que autorizavam o próprio juiz a requisitar a instauração de um inquérito policial, a decretar de ofício a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, ou então, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante, seja na fase  investigatória, seja na fase processual (artigo 156[2], incisos I e II CPP, respectivamente), ou que autorizam o próprio juiz a realizar pessoalmente um busca domiciliar (artigo 241, CPP).  a mudança da nossa legislação processual penal como um todo, para que sua estrutura fosse, enfim, adaptada à nova ordem constitucional e convencional, notadamente ao sistema acusatório (CF, art. 129, I) e à garantia da imparcialidade (CADH, art. 8°, n. 1). Afinal, não se pode mais compreender o ·processo penal como um mero instrumento necessário para o exercício da pretensão punitiva do Estado.

O processo penal há de ser compreendido como uma forma de tutela dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Para tanto, cabe afirmar "para que tenhamos um processo ético, limpo, sem surpresas, equilibrado, com regras definidas e conhecidas e que valoriza o ser humano", este deve ser concebido como um processo de partes, em que as atividades de acusar e julgar estejam efetivamente distribuídas a diferentes personagens, estruturado sobre um procedimento em contraditório, cabendo às partes desenvolver a atividade probatória com o objetivo de convencer um julgador imparcial, a quem é dado decidir de modo subjetivamente desinteressada.

Então, os arts. 3°-A, 3°-B, 3°-C, 3°D, 3°-E e 3°-F, introduzidos no Código de Processo 'Penal pela Lei 13.964/2019: o primeiro deles, após dispor que o processo pernil terá estrutura acusatória, veda expressamente a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação; os demais passam a prever a figura do juiz das garantias, doravante o responsável pelo controle da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido  reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, "ficando impedido de mais  adiante funcionar na instrução[3] e julgamento do mesmo feito.

Apesar do artigo 3-A do CPP ter sido introduzido pelo Pacote Anticrime, no capítulo denominado Juiz das Garantias, ao lado dos artigos 3-B, 3-C, 3-D, 3-E, com estes não guarda nenhuma relação.

Sendo mera ratificação da estrutura acusatória do nosso processo penal, em fiel conformidade com o artigo 129, inciso I da CF/1988, do que deriva a conclusão de que seria vedada qualquer iniciativa do juiz na fase de investigação, bem como a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

A decisão do Ministro Luiz Fux na apreciação da medida cautelar das ADIs 6298, 6.299, 6.300 em 22.01.2020 e apesar do artigo 3-A do CPP não guardar nenhuma relação com o juiz das garantias, porquanto apenas enunciar os postulados básicos do sistema acusatório. A suspensão sine dia da eficácia, até a decisão do Plenário do STF que se deu em 24.8.2023.

Concordamos com o grande doutrinador Aury Lopes Júnior pois de nada adianta ter uma separação formal inicial, com o oferecimento de uma denúncia pelo MP, se, logo em seguida, ao logo de toda marcha procedimental, o juiz for outorgado no papel ativo de protagonista na busca pela prova, ou até mesmo, na prática de atos característicos da acusação.

A gestão autoritária da prova, vinculado ao princípio inquisitivo[4] traduz uma atividade nitidamente incompatível com a imparcialidade, colocando em segundo plano o contraditório e a ampla defesa, na frenética busca da verdade real. Assim, o imputado deixa de ser o sujeito de direitos, e passa a ser mero objeto de investigação, ficando, portanto, submetido a um inquisidor que resta autorizado a extrair dele a verdade a qualquer custo.

Aliás, a distinção existente entre a verdade real e processual ou verdade formal é encarada, por exemplo, na doutrina de Ferrajoli e na teoria do garantismo penal que enfatiza a necessidade da superação da denominada verdade substancial (seja real ou absoluta), utópica e inalcançável, por uma verdade processual de caráter aproximativo, que não pretende ser declarada como a verdade, já que condicionada ao processo e às garantias da defesa.

Portanto, trata-se de uma verdade controlada quanto ao método de aquisição e reduzida quanto ao conteúdo informativo em relação à hipotética verdade substancial, protegendo, assim, os cidadãos, de práticas autoritárias. Dessa forma, o juiz, deixava de tutelar a presunção de inocência e passava a funcionar como um caçador da verdade.

Como ressaltou o doutrinador Geraldo Prado o referido sistema é estruturado com intenção de realizar o direito penal material, em que a função do juiz se limita a concretizar o poder de punir do Estaddo como, se o exercício do magistério penal fosse questão de segurança pública.

Conclui-se que a produção de provas[5] é tarefa das partes e no modelo acusatório e pelo princípio do dispositivo, tem-se um juiz espectador, ou é o juiz-ator/inquisidor e, se está em modelo diverso, qual seja, o inquisitório. Assim, não há, portanto, espaço para um meio-termo.

Resta, portanto, analisarmos a inconstitucionalidade dessa atuação ex officio do juiz, seja este o juiz das garantias, durante a investigação preliminar, seja este o juiz da instrução e julgamento, no curso do processo criminal, o que pressupõe nova sistemática ora introduzida pelo artigo 3-A do CPP combinado com o artigo 156 do CPP que faculta ao juiz agir de ofício antes de iniciada a ação penal e no curso da instrução, anteriormente a proferir a sentença final.

O Código de Processo Penal Português de 1987 prevê um juiz de instrução que atua, praticamente, como autêntico juiz de garantias, controlando a legalidade da investigação e sem iniciativa para a produção das provas. De acordo com o artigo 40 do Código Português, esse juiz instrutor, à semelhança de nosso juiz de garantias introduzido pelo Pacote Anticrime está impedido de julgar a ação penal.

A impropriedade do nomen juris adotado, a melhor nomenclatura seria juiz da fase de investigação criminal, pois se leva em conta somente o período de persecução em que esse julgador teria competência para atuar.

Vale dizer, a  própria figura do juiz, tal como prevista nas leis de organização judiciária,  com base na Constituição, já traz em si a garantia ao cidadão de que no  processo penal sua função não se há de confundir com a função daquele  órgão de outro Poder concebido constitucionalmente para perseguir o  fato criminoso, e que, por isso, mesmo diante da acusação estatal ou  privada a ser deduzida e apurada perante o Poder Judiciário, alguém  estará constituído para julgá-lo segundo regras de direito. Nisso, o juiz já é garantia.

Na Itália, igualmente, segue modelo parecido sendo que a principal inovação do CPP italiano de 1989 foi a supressão da figura do juiz de instrução e a substituição pelo giudice per le indagini preliminari, que atua na fase preliminar do processo, ficando, em geral, impedido de atuar na fase processual vide o artigo 34 do CPP italiano.

Na América do Sul[6] as reformas processuais penais foram acolhidas com algumas variações, a figura do juiz das garantias e, percebe-se, por exemplo que o CPP do Paraguai prevê juiz de garantias, a quem compete realizar um juízo acerta da justa causa para o início do processo penal ou do arquivamento da investigação, restando, em regra proibido de julgar o processo criminal. Semelhantes alterações foram acolhidas no Chile, Argentina e Colômbia.

Ao suspender a eficácia dos artigos 3-A ao 3-F do CPP (ADIN 6.299 MC/DF), em 22.01.2020, o Ministro Luiz Fux afirmou que há de se ter cuidado com o mero retórico Direito comparado, que desconsidera as particularidades dos arranjos institucionais e da cultura política de cada um dos países, divergências contextuais, dissidências doutrinárias e jurisprudenciais, entre outros pontos.

E, com o julgamento do Plenário do STF em 24.8.2023, deu-se o prazo total de dois anos para a implementação do juiz das garantias que seguirá as regras de organização judiciária de cada Estado da Federação.

Considera-se firme a jurisprudência pátria dos Tribunais Superiores no sentido de que a lei processual que altera a competência absoluta deve ter aplicação imediata aos processos em andamento, salvo se já houver sentença relativa ao mérito, hipótese em que o processo deve seguir na jurisdição em que ela fora prolatada, ressalvada a hipótese de supressão do tribunal que deveria julgar o recurso.

Não haveria, in casu, qualquer violação ao princípio do juiz natural, dado que, na Constituição Federal brasileira vigente, esse primado não tem o mesmo alcance daquele previsto nas constituições de países alienígenas, que exigem seja o julgamento realizado por juízo competente estabelecido em lei anterior aos fatos.

Tanto é verdade que o inciso III do artigo 5º da CF/1988 somente assegurou o processo e julgamento diante de autoridade competente, sem exigir que deva o juízo ser pré-constituído ao delito a ser julgado.

De fato, estamos diante de nova espécie de competência funcional, de natureza absoluta e que não se poderia admitir a perpetuação da competência. Aliás, segundo o artigo 43 CPC vigente, subsidiariamente aplicável ao processo penal comum, pois determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fatos ou de delitos ocorridas posteriormente, exceto, quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta.

Contextualizando a criação da figura do juiz das garantias[7], divorciando-o do julgamento de processo penale que não teria o condão de alterar sua competência, seja em matéria de competência criminal, no lugar do tempus regit actum, deverá prevalecer a regra oposta, ou seja, tempus criminis regit iudicem.

Lembremos da premissa que informa que a entrada em vigor de uma nova norma processual penal não poderá nunca ter o poder de invalidar os atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior, porquanto praticados de acordo com a lei então vigente, resta questionar até se ocorrerá a imediata remessa dos autos em andamento a outro juiz, ou seja, o juiz da instrução e julgamento, o que não implicaria em admitir efeitos retroativos à nova causa de impedimento do artigo 3-D, caput do CPP.

Portanto, só podemos admitir uma incidência prospectiva das normas do Pacote Anticrime e não retroativa, afastando-o dos atos já praticados.

Com o julgamento do Plenário do STF a imposição de implementação obrigatória do juiz de garantias, quando aos tribunais foi conferida maior autonomia para definir sua organização e funcionamento, de modo a não prejudicar as ações criminais em trâmite e, nem sobrecarregar os juízes que atuam solitários em comarcas interioranas.

O Plenário do STF, por maioria, realizou a interpretação conforme a Constituição Federal brasileira vigente e, determinou-se os limites de legalidade, bem como as diligências[8] suplementares que possam dirimir dúvidas sob ponto relevante para haver provimento da denúncia ou queixa, e ainda, o momento de proferir o veredicto final.

Infelizmente, não se reconheceu a revogação tácita do artigo 156 CPP nem mesmo sua incompatibilidade com o artigo 3-A, então, permanece no ordenamento jurídico pátrio com a devida limitação de efeitos trazidos pelo Pacote Anticrime. O dito diploma legal consagrou o sistema acusatório e a total vedação da atuação do juiz durante a fase investigatória.

Ficou admitido, apenas em caráter excepcional, a determinação pelo juiz ex officio, da produção de provas relevantes e urgentes, necessárias ao esclarecimento cabal da verdade.

Também se reconheceu de forma unânime a constitucionalidade do controle judicial aos atos de investigação, determinando prazo de noventa dias, a partir da publicação do acórdão, para encaminhamento de todos os procedimentos investigatórios criminais e seus congêneres, inerentemente da nomenclatura empregada, ao respectivo juiz natural, ainda que não haja ainda o juiz das garantias.

A interpretação conforme a Constituição[9] do artigo 3-B, incisos VI e VII, quanto à possibilidade d eo juiz prorrogar a prisão provisória, ou outra medida cautelar, bem como substituí-la ou revogá-la, e decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e irrepetíveis. Desde que respeitado o direito fundamental ao contraditório[10], preferencialmente, em audiência pública.

Sobre esse aspecto, o jurista Alexandre de Moraes afirma que, no âmbito da interpretação conforme, três hipóteses são vislumbradas:

Interpretação conforme com redução do texto: essa primeira hipótese ocorrerá quando for possível, em virtude da redação do texto impugnado, declarar a inconstitucionalidade de determinada expressão, possibilitando, a partir dessa exclusão de texto, uma interpretação compatível com a Constituição Federal. (...)

Interpretação conforme Constituição sem redução do texto, conferindo à norma impugnada uma determinada interpretação que lhe preserve a constitucionalidade: nessas hipóteses, salienta o Pretório Excelso, "quando, pela redação do texto no qual se inclui a parte da norma que é atacada como inconstitucional, não é possível suprimir dele qualquer expressão para alcançar essa parte, impõe-se a utilização da técnica de concessão da liminar para a suspensão da eficácia parcial do texto impugnado sem a redução de sua expressão literal, técnica essa que se inspira na razão de ser da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto em decorrência de este permitir interpretação conforme a Constituição” (...)

Interpretação conforme sem redução do texto, excluindo da norma impugnada uma interpretação que lhe acarretaria a inconstitucionalidade: nesses casos, o Supremo Tribunal Federal excluirá da norma impugnada determinada interpretação incompatível com a Constituição Federal, ou seja, será reduzido o alcance valorativo da norma impugnada, adequando-a à Carta Magna.

Destaque-se ainda que quem receberá a denúncia ou queixa será o juiz de instrução e, não o juiz das garantias, cuja competência[11] finda exatamente com o oferecimento da peça acusatória no processo criminal. O caderno investigatório permanecerá fisicamente anexado ao processo criminal.

Poderá haver audiência de custódia por meio de videoconferência que será presidida pelo juiz de garantias do preso em flagrante ou provisório.

No que concerne ao instituto do "prazo com sanção", estabelecido pelo § 2º do artigo 3º-B, o STF determinou a inconstitucionalidade da limitação de prorrogação por apenas uma vez, do inquérito policial de investigado preso há mais de 15 (quinze) dias, sob pena de relaxamento da prisão.

Admitiu, portanto, a prorrogação ilimitada do inquérito de preso, sem a ameaça do relaxamento da prisão por excesso de prazo, nos termos do que já fora decidido na ADI 6.581.

Em decorrência de tal entendimento, também ficou declarada a inconstitucionalidade do § 4º do artigo 310, que estabelecia: "Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva".

Reconheceu o STF a inconstitucionalidade do artigo 3º-C, que dizia em seu texto: "A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código", bem como de seus §§ 3º e 4º, os quais, respectivamente, previam: "Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias".

O artigo 3º-E do CPP, decidiu a corte suprema substituir o verbete "designado" por "investido". Por fim, declarou a constitucionalidade do artigo 3º, F, que versa sobre o dever de o juiz das garantias assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos de imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade penal, civil e administrativa.

Na interpretação do artigo 28, CPP determinava o texto legal que: "Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei".

Desse modo, quem detinha o poder decisório sobre o arquivamento do inquérito era o órgão ministerial, cabendo ao juiz apenas homologar a decisão ou submetê-la à revisão da instância competente do Ministério Público.

Doravante, o MP passa a solicitar o arquivamento do inquérito ao juiz da instrução, que efetivamente determinará o arquivamento ou remeterá os autos à instância revisora do Ministério Público.

E, ainda, segundo os termos do artigo 28, primeiro parágrafo do CPP, depois de requerido o arquivamento pelo MP e determinado pelo juiz da instrução, poderá a vítima ou seu representante legal, no prazo de trinta dias da comunicação de arquivamento, submeter a matéria à instância revisora do MP, conforme dispuser a respectiva Lei Orgânica.

E, referente ao Acordo de Não Persecução Penal[12], o STF firmou entendimento por sua constitucionalidade e, ipso facto, entendeu pela inconstitucionalidade do quinto parágrafo do artigo 157 CPP, que versava acerca da impossibilidade de proferir sentença ou acórdão o juiz tivesse conhecimento de conteúdo da prova declarada ilícita.

Apesar de algumas críticas severas quanto à modificação feita pelo STF, tendo em vista os dispositivos votados e aprovados pelo Poder Legislativo e, que não tinham efetiva inconstitucionalidade, a revelar de novo a invasão de competência do legislador, a manutenção da figura do juiz de garantias implica em relevante progresso civilizatório para o processo penal, afastando o comprometimento psicológico do julgador que determinou a prisão e medidas cautelares restritivas, com a procedência da acusação.

Não é fácil absolver um réu cuja prisão provisória[13] decretou e se manteve até a véspera da sentença. E, ainda que seja forte o espírito de justiça, existe sempre uma autossugestão pela condenação e, manutenção do status quo do preso, muitas vezes condenado antecipadamente mediante um processo psicológico formado antes mesmo do processo, notadamente aqueles que galgaram a maior publicidade.

O juiz de garantias serve para assegurar a imparcialidade na prestação jurisdicional, pelo menos, na primeira instância, uma vez que os detentores de foro privilegiado não terão a mesma proteção.

Com o julgamento do Plenário do STF a imposição de implementação obrigatória do juiz de garantias, quando aos tribunais foi conferida maior autonomia para definir sua organização e funcionamento, de modo a não prejudicar as ações criminais em trâmite e, nem sobrecarregar os juízes que atuam solitários em comarcas interioranas.

O Plenário do STF, por maioria, realizou a interpretação conforme a Constituição Federal brasileira vigente e, determinou-se os limites de legalidade, bem como as diligências suplementares que possam dirimir dúvidas sob ponto relevante para haver provimento da denúncia ou queixa, e ainda, o momento de proferir o veredicto final.

Infelizmente, não se reconheceu a revogação tácita do artigo 156 CPP nem mesmo sua incompatibilidade com o artigo 3-A, então, permanece no ordenamento jurídico pátrio com a devida limitação de efeitos trazidos pelo Pacote Anticrime. O dito diploma legal consagrou o sistema acusatório e a total vedação da atuação do juiz durante a fase investigatória.

Ficou admitido, apenas em caráter excepcional, a determinação pelo juiz ex officio, da produção de provas relevantes e urgentes, necessárias ao esclarecimento cabal da verdade.

Também se reconheceu de forma unânime a constitucionalidade do controle judicial aos atos de investigação, determinando prazo de noventa dias, a partir da publicação do acórdão, para encaminhamento de todos os procedimentos investigatórios criminais e seus congêneres, inerentemente da nomenclatura empregada, ao respectivo juiz natural, ainda que não haja ainda o juiz das garantias.

A interpretação conforme a Constituição[14] do artigo 3-B, incisos VI e VII, quanto à possibilidade d eo juiz prorrogar a prisão provisória, ou outra medida cautelar, bem como substituí-la ou revogá-la, e decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e irrepetíveis. Desde que respeitado o direito fundamental ao contraditório, preferencialmente, em audiência pública.

Destaque-se ainda que quem receberá a denúncia ou queixa será o juiz de instrução e, não o juiz das garantias, cuja competência finda exatamente com o oferecimento da peça acusatória no processo criminal. O caderno investigatório permanecerá fisicamente anexado ao processo criminal.

Poderá haver audiência de custódia[15] por meio de videoconferência que será presidida pelo juiz de garantias do preso em flagrante ou provisório.

No que concerne ao instituto do "prazo com sanção", estabelecido pelo § 2º do artigo 3º-B, o STF determinou a inconstitucionalidade da limitação de prorrogação por apenas uma vez, do inquérito policial de investigado preso há mais de 15 (quinze) dias, sob pena de relaxamento da prisão.

Admitiu, portanto, a prorrogação ilimitada do inquérito de preso, sem a ameaça do relaxamento da prisão por excesso de prazo, nos termos do que já fora decidido na ADI 6.581.

Em decorrência de tal entendimento, também ficou declarada a inconstitucionalidade do § 4º do artigo 310, que estabelecia: "Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva".

Reconheceu o STF a inconstitucionalidade do artigo 3º-C, que dizia em seu texto: "A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código", bem como de seus §§ 3º e 4º, os quais, respectivamente, previam: "Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias".

O artigo 3º-E do CPP, decidiu a corte suprema substituir o verbete "designado" por "investido". Por fim, declarou a constitucionalidade do artigo 3º, F, que versa sobre o dever de o juiz das garantias assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos de imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade penal, civil e administrativa.

Na interpretação[16] do artigo 28, CPP. Determinava o texto positivado que: "Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei".

Desse modo, quem detinha o poder decisório sobre o arquivamento do inquérito era o órgão ministerial, cabendo ao juiz apenas homologar a decisão ou submetê-la à revisão da instância competente do Ministério Público.

Doravante, o MP passa a solicitar o arquivamento do inquérito ao juiz da instrução, que efetivamente determinará o arquivamento ou remeterá os autos à instância revisora do Ministério Público.

Segundo Vladimir Aras o ordenamento jurídico pátrio já acolhia abstratamente a figura do juiz de garantias por conta da integração de normas do direito internacional, como o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998, promulgado no país pelo Decreto 4.388/2002 que prevê o juízo de garantias, como nomen de "seção de instrução" ou pretrial division ou section préliminaire, nos artigos 34 e 57 do referido tratado.

Tal juízo é atuante na fase preliminar, enquanto o julgamento propriamente dito caberá aos juízes da seção de julgamento em primeira instância, conforme o artigo 64 do Estatuto de Roma.

Há a grave divergência no STJ sobre a competência do julgador em face do pedido de absolvição do Ministério Público. Em síntese, enquanto a quebra de sigilo de dados e comunicações busca o acesso aos documentos e informações armazenados, a interceptação telefônica ou telemática tem por foco o acesso ao fluxo das comunicações presentes e futuras.

A partir de tal diferenciação, fica mais fácil fazer o correto enquadramento das 2 situações no comando do artigo 5º, inciso XII da CF/88, que trata do sigilo de dados e comunicações:

Após a Constituição Federal brasileira de 1988, Judiciário busca retirar viés inquisitório do sistema criminal. Entretanto, Noronha apontou que, na Constituição de 1988, houve clara opção pelo sistema acusatório, em detrimento do viés inquisitório, com a reserva, em favor do MP, do monopólio da titularidade da ação penal pública (artigo 129, inciso I, da CF/1988).

Segundo o Ministro, essa definição constitucional exige do Poder Judiciário a construção gradual de uma jurisprudência que adeque as legislações recepcionadas pela Carta Magna – a exemplo do Código de Processo Penal (CPP), de 1941 – às novas diretrizes do ordenamento jurídico.

Noronha também citou precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que, embora o artigo 385 do CPP seja considerado constitucional, permitindo ao juiz proferir sentença condenatória em contrariedade à posição do MP, a situação exige do magistrado um ônus de fundamentação mais elevado, como forma de justificar a excepcionalidade da decisão. 

Nesse contexto normativo e jurisprudencial (afirmou o ministro), não seria possível, no caso dos autos, confirmar uma sentença penal que, sem o devido embasamento, divergiu do pedido de absolvição feito pelo MP e condenou o réu.

"A condenação com amparo exclusivo em frágil depoimento de uma testemunha de defesa (que leva a conclusões contraditórias entre a acusação e o julgador) e que se baseia na presunção da prática de uma conduta-meio, sem indicação da presença do elemento subjetivo do tipo, não pode prosperar, especialmente frente ao pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público Federal", concluiu Noronha. Vide o acórdão no AREsp 1.940.726.

Já, a Sexta Turma reafirma que manifestação do MP pela absolvição não impede a Justiça de condenar o réu

​Por entender que a manifestação do Ministério Público pela absolvição do réu nas alegações finais da ação penal não vincula o magistrado – que pode decidir de maneira diversa ou até oposta à posição ministerial –, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou o pedido de habeas corpus em favor de um homem condenado por roubo majorado.

Para o colegiado, eventual condenação decretada pelo juízo, mesmo diante de um pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público, é compatível com o sistema acusatório consagrado pela Constituição de 1988.

Segundo os autos, o réu foi denunciado pelo Ministério Público do Paraná (MPPR) pelos delitos de posse de arma de fogo de uso restrito, receptação, adulteração de sinal identificador de veículo e roubo majorado.

Contudo, nas alegações finais, o MPPR pediu a absolvição do réu em relação ao último crime – solicitação não acolhida pela primeira instância, que considerou as provas suficientes para a condenação. A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR).

No habeas corpus apresentado ao STJ, a defesa sustentou ter havido violação do sistema acusatório, argumentando que eventual pedido do Ministério Público pela absolvição do acusado, em momento posterior à denúncia, significa falta de interesse processual pela condenação.

O Julgamento segue o princípio do livre convencimento motivado. A ministra Laurita Vaz, relatora, citou precedentes do Supremo Tribunal Federal e do STJ no sentido de que o juiz não está obrigado a seguir eventual manifestação do MP pela absolvição do réu.

No REsp 1.521.239, a própria Sexta Turma entendeu que, diferentemente do sistema jurídico norte-americano, em que o promotor pode retirar a acusação, vinculando a posição do juiz, no sistema brasileiro isso não acontece.

Ainda segundo o precedente, por ser o titular da ação penal pública, o órgão ministerial tem o dever de conduzi-la até seu desfecho, ainda que haja posicionamentos diferentes ao longo do processo – ou até opostos – entre os membros do Ministério Público que atuam como autor da ação e fiscal da lei.

"A circunstância de o Ministério Público se manifestar pela absolvição do acusado, como custos legis, em alegações finais ou em contrarrazões recursais, não vincula o órgão julgador, cujo mister jurisdicional funda-se no princípio do livre convencimento motivado, conforme interpretação sistemática dos artigos 155, caput, e 385, ambos do Código de Processo Penal", concluiu a ministra ao negar o habeas corpus. Vide HC623598.

O juiz não está vinculado ao parecer ministerial, pois seu convencimento decorre análise livre das provas exposta de modo fundamentado (artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal).

Nos idos dos anos noventa, o Brasil flertou com o juiz de instrução ou juiz investigador, quando o artigo 3 da Lei 9.034/1995[17] que concedeu competências de investigação aos juízes criminais em casos de criminalidade organizada. Mas, tal dispositivo fora logo atacado por meio da ADI 1570, julgada procedente pelo STF em 2004. E, tal figura era incompatível com o sistema acusatório, na qual as funções de investigar e acusar não são nem devem ser desempenhadas pelos juízes.

Portanto, é muito abstrusa a resistência a essa mudança estrutural no processo criminal, onde predomina vigorante um processo penal octogenário e sofrendo aperfeiçoamento inquisitorial na investigação penal e, ainda, na produção da prova incriminatória. E, nessa visão de persecução criminal, Aras aponta que o juiz de garantias é considerado o estranho no ninho.

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Notas:

[1] O Código de Processo Penal Italiano de 1930, chamado Codice Rocco, foi a matriz ideológica que influenciou a produção científica do Código de Processo Penal Brasileiro de 1941, vigente ainda hoje, apesar das inúmeras alterações que sofreu. Por obra de Alfredo Rocco acontecerá durante o fascismo a “fusão” entre alguns pressupostos teóricos das duas escolas penais – Clássica e Positiva – dando vida à escola que ficou conhecida como “Técnico-jurídica”. Esta tem a sua maior aplicação prática no Código penal italiano elaborado por Rocco e emanado por Benito Mussolini em 1930. Mesmo sendo teoricamente bastante diferente das duas escolas anteriores, a Escola de Rocco demonstrou ser por elas influenciada quando aderiu aos princípios que defendem uma maior autoridade e poder ao Estado. Como afirmava o próprio Rocco: “il diritto di punire è un diritto di conservazione e di difesa proprio dello Stato, nascente con esso stesso, ed avendo lo scopo di assicurare, defender e garantir as condizioni fondamentali e indispensabili della vita in comune”. Esta fusão de alguns pressupostos das duas escolas torna-se evidente no sistema sancionador (denominado duplo binário): soma-se à aplicação das penas (segundo a Escola Clássica) a aplicação das medidas de segurança (segundo a Escola Positiva). Mesmo com estas evidências, a Escola Técnico-Jurídica sempre teve dificuldade em reconhecer que poderia ter herdado alguns elementos das escolas anteriores, afirmando que ambas eram inaceitáveis: a clássica por ser desvinculada da realidade das legislações, a positivista por ter reduzido o direito penal a um ramo da sociologia. Vide, a respeito, ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: do controle da violência a violência do controle penal.  Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 80 ss.

[2] ART. 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A LEI ANTICRIME: o fim do princípio da busca da verdade real? O triângulo processual penal tradicional é composto por partes litigantes (acusação e acusado) e pelo magistrado. A este personagem é atribuído o dever da imparcialidade, que deve ser observado no exercício das suas funções, inclusive tal obediência é imposta a toda a Administração Pública – entendida em seu sentido lato sensu, conforme art. 37, caput da Carta Magna. Segundo Dinamarco (2016), caso o

Estado trouxesse para si a tarefa de resolver uma lide social, mas seus agentes agissem de acordo com a sua subjetividade, isto é, imbuídos por preferências de cunho pessoal e descompromissados com a lei e a justiça, seria totalmente repulsivo e ilegítimo o desempenho dessa atividade.

[3] Gustavo Henrique Badaró entende que o fato do juiz ter poderes instrutórios não descaracteriza o fato de termos um sistema acusatório, haja vista não significa necessariamente um perigo a sua parcialidade. Partindo da distinção entre fontes de provas e meios de prova, percebe-se, facilmente, que a imparcialidade corre perigo quando o juiz é um pesquisador, ou um “buscador” de fontes de provas.  Já o juiz que, diante da notícia de uma fonte de prova, por exemplo, a informação de que certa pessoa presenciou os fatos, determina a produção do meio de prova correspondente - o testemunho - para

incorporar ao processo os elementos de informações contidos na fonte de prova, não está comprometido com uma hipótese prévia, não colocando em risco a sua posição de imparcialidade. Ao contrário, o resultado da produção daquele meio de prova pode ser em sentido positivo ou negativo, quanto à ocorrência do fato.

[4] De acordo com as lições de Pacelli (2017), devido ao Regime Interno do STF guardar similitude com a ideologia do CPP, isto é, estar arraigado da cultura inquisitiva – com raiz no princípio da verdade real – de perseguição, pelos órgãos estatais, à verdade, como objetivo central do processo penal, tal ordenamento não possui uma relação harmônica com a feição acusatória conclamada pela Constituição Federa. Acrescenta Lopes Jr. (2020) que, na referida conjuntura, não há preservação da imparcialidade, porque as funções instrutórias (ou seja, a busca das provas) e a atividade decisória estão concentradas sobre um único sujeito. Portanto, não há como perdurar uma estrutura dialética, tampouco que garanta o contraditório.

[5] Falta de confissão no inquérito não impede MP de propor acordo de não persecução penal. Em agosto de 2022, a Sexta Turma do tribunal entendeu que a falta de confissão do autuado, durante o inquérito policial, não impede que o MP analise o oferecimento do acordo de não persecução penal.

[6] A primeira experiência efetiva com a medida foi feita em Portugal, em 1987, e na América Latina, só Brasil e Cuba ainda não adotaram o modelo. A Argentina possui juiz de garantias desde 1991, mas faz isso gradualmente. Brasil imita o modelo de Portugal: o juiz de garantias recebe ou rejeita a denúncia antes de “passar a bola” para o outro magistrado. Em outros países, são os novos magistrados que analisam a denúncia. A outra diferença é quem recebe “o passe” depois. Na América do Sul, países como Chile, Honduras, Uruguai, El Salvador, Equador, Paraguai, Peru e Colômbia adotaram um instituto semelhante ao juiz das garantias nos moldes da Itália e da Alemanha.

[7] Entre tantos dilemas acerca do sistema processual penal ora vigente, um dos que mais se destaca, consoante o que se extrai da obra de Lopes Jr. (2020), é a impossibilidade humana de separar as informações colhidas na investigação das provas efetivamente produzidas em juízo, o que conduz a contaminação da marcha processual9. Nesse diapasão, como afirma Nucci (2020, p. 38), a função primordial do instituto do juiz das garantias é evitar a demasiada concentração de poder nas mãos de um mesmo juiz, que outrora fiscalizava a investigação e, depois, conduzia a instrução, para, ao final, emitir seu decisum acerca do feito. Ainda nessa esteira, esclarece Cunha (2020) que a ideia motriz em instituir o juiz das garantias é a de distanciar o juiz da instrução do juiz da fase preliminar, o que, acredita-se, lhe dará maior imparcialidade.

[8] Em síntese, enquanto a quebra de sigilo de dados e comunicações busca o acesso aos documentos e informações armazenados, a interceptação telefônica ou telemática tem por foco o acesso ao fluxo das comunicações presentes e futuras. A partir de tal diferenciação, fica mais fácil fazer o correto enquadramento das 2 situações no comando do artigo 5º, inciso XII da CF/88, que trata do sigilo de dados e comunicações.

[9] A Interpretação conforme a Constituição denota uma técnica de controle de constitucionalidade e não somente um método de interpretação hermenêutico, estabelecendo que o intérprete ou aplicador do direito, ao se deparar com normas que possuam mais de uma interpretação (polissêmicas ou plurissignificativas), deverá priorizar aquela interpretação que mais se coadune com o texto constitucional. Significa dizer que sempre que houver mais de uma interpretação possível para uma determinada norma deverá ser utilizada aquela que esteja em maior grau de conformidade com os ditames da Carta Magna. O objetivo da interpretação conforme a constituição é, especificamente, o de promover, através da interpretação extensiva ou restritiva, conforme o caso, uma alternativa legítima para o conteúdo de determinado preceito legal.

[10] Contraditório. O exercício do contraditório será realizado, preferencialmente, em audiência pública e oral. Contudo, o juiz pode deixar de realizar a audiência quando houver risco para o processo ou adiá-la em caso de necessidade. Dignidade do preso. A divulgação de informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso pelas autoridades policiais, pelo Ministério Público e pela magistratura deve assegurar a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão

[11] As normas relativas ao juiz das garantias não se aplicam aos processos de competência originária do STF e do Superior Tribunal de Justiça, regidos pela Lei 8.038/1990, aos processos de competência do Tribunal do Júri, aos casos de violência doméstica e familiar e às infrações penais de menor potencial ofensivo. O juiz das garantias atuará nos processos criminais da Justiça Eleitoral.

[12] O acordo está previsto no artigo 28-A do CPP: "Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime". A relevância e a dimensão desse instrumento – ainda recente no ordenamento jurídico brasileiro – podem ser estimadas pelas palavras do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti Cruz. No julgamento do HC 657.165, ele definiu o instituto como "uma maneira consensual de alcançar resposta penal mais célere ao comportamento criminoso, por meio da mitigação da obrigatoriedade da ação penal, com inexorável redução das demandas judiciais criminais".

[13] No Brasil existem duas espécies de prisão: prisão cautelar ou provisória, também chamada de prisão processual (que tem função de assegurar o trâmite do processo penal), na qual se enquadram a prisão em flagrante, a prisão temporária e a prisão preventiva; e prisão pena, que tem função de punição, em razão da condenação do acusado pela prática de crime. Cabe ressaltar que a regra geral é que o acusado responda o processo em liberdade, mas a prisão cautelar é possível, como exceção, nos casos em que os requisitos legais para sua decretação estejam presentes. A lei de execução penal prevê que o preso provisório deve ficar separado dos que estão cumprindo pena que já transitou em julgado.

[14] Canotilho assinala que “o princípio da interpretação conforme a constituição é um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei.” A técnica de interpretação conforme a constituição, através de seus vários instrumentos, permite que o Poder Judiciário, preservando a supremacia da constituição rígida, e respeitando o princípio da separação entre os poderes, evite declarar a nulidade de atos do Poder Legislativo, principalmente, sem deixar de decidir o caso levado à sua apreciação.

[15] A audiência de custódia é apenas uma audiência, contudo sem a presença de testemunhas e partes, apenas o acusado, o juiz, o promotor e o seu advogado. Ela se inicia com a apresentação do acusado perante o juiz, que faz diversas perguntas a ele, ou seja, uma entrevista com o acusado. O juiz analisa a prisão sob o aspecto da legalidade e a regularidade do flagrante, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão, de se aplicar alguma medida cautelar e qual seria cabível, ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares.

[16] A interpretação conforme a Constituição é aquela em que o intérprete adota a interpretação mais favorável à Constituição Federal, considerando-se seus princípios e jurisprudência, sem, contudo, se afastar da finalidade da lei. Ensina o professor Pedro Lenza (2009) que esta forma ou princípio de interpretação possui algumas dimensões que deverão ser observadas, quais sejam: a prevalência da Constituição, que é a essência deste método, posto que enfatiza a supremacia da Lei Maior; a conservação da norma, visto que ao adotar a interpretação que vai ao encontro da Constituição propiciamos sua eficácia e evitamos que seja declarada inconstitucional e deixe de ser aplicada; a exclusão da interpretação contra legem , o que impossibilita que a lei seja interpretada contrariamente ao seu texto literal com o intuito de considerá-la constitucional; espaço de interpretação, que dita que este método só pode ser aplicado quando houver a possibilidade de opção, ou seja,  deve existir mais de uma interpretação para então optar-se por aquela conforme a Constituição; rejeição ou não aplicação de normas inconstitucionais, em que sempre que o juiz analisar a lei utilizando todos os métodos existente e verificar que ela é contrária à Constituição deverá declarar a sua inconstitucionalidade; o intérprete não pode atuar como legislador positivo, ou seja, aquele que interpreta a lei não pode dar a ela uma aplicabilidade diversa daquela almejada pelo legislativo, pois, caso assim proceda considerar-se-á criação de uma norma regra pelo intérprete e a atuação deste com poderes inerentes ao legislador, o que proibido.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Direito Processual Penal Juiz de Garantias CF/88 Garantias Constitucionais Sistema Acusatório

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