Juiz de garantias e as garantias de juiz
É da função do juiz no sistema de justiça criminal que depende a regularidade do processo, e não poderá ter interesse no desfecho da causa, do contrário estaria regiamente impedido e seus atos seria juridicamente inexistentes, nem pende por qualquer das partes, casos em que seria suspeito e seus atos seriam anuláveis. O processo penal contemporâneo goza de garantias concedidas não apenas para que o julgador atue com independência, mas também, para que as partes tenham segurança de existir um processo correto e uma decisão justa. O problema da implantação do juiz de garantias é mais estrutural do que conceitual.
O
histórico[1] do juiz de garantias
registra no Código de Processo Penal da Província de Córdoba em 1991 e, também nos
mais recentes Códigos de Processo Penal acusatórios presentes no México,
Uruguai e na Argentina onde aparece como um substituto do juiz de instrução,
que atuava como magistrado investigador.
Mas, o
juiz de garantias não. Nesses países, o antigo juiz inquisidor ou juiz de
instrução teve suas competências transferidas para o Ministério Público.
A
criação do juiz de garantias[2] sem constituir nova
instância de julgamento, toma parte da investigação e as decisões exigem
provimento judicial, como por exemplo, a autorização para uso de meios
especiais para obtenção de provas, medidas cautelares que ocorrem a pedido do
Ministério Público ou da Polícia.
O
maior problema do instituto do juiz de garantias não está em sua definição nem
em suas atribuições, mas sim, na forma em que é estabelecido. Infelizmente, em
nosso país, o juiz de garantias vem meio atabalhoadamente por meio do Pacote
Anticrime[3].
A Lei13.964 entrou em vigor em 23 de janeiro de 2020, mas vários artigos que tiveram
sua eficácia suspensa por meio da decisão do STF em ações diretas de
inconstitucionalidade[4]. Assim, os dispositivos
legais que disciplinam o juiz de garantias estão vigentes, porém, sem
aplicabilidade.
Frise-se
que o juiz de garantias não corresponde novo degrau de persecução criminal,
somente se divide a competência funcional dos juízes, passando existir um julgador
para a etapa investigativa e, outro julgador para a etapa do julgamento.
Enfim,
trata-se apenas de divisão[5] funcional, o que não é
inédito na legislação pátria, pois temos um juiz para instrução e julgamento e,
outro para a execução penal.
Ou um
magistrado para a instrução de ações penais sobre crimes dolosos contra a vida,
e outros juízes leigos (os jurados) para
a apreciação de mérito da imputação que compõem o Conselho de Sentença, no
casos de competência do tribunal do júri.
Nosso
ordenamento jurídico[6] abstratamente já acolhia o
juiz de garantias, a partir da integração de normas de direito internacional. E,
o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional de 1998, que foi promulgado
pelo Decreto 4.388/2002 entre nós, já previa o juiz de garantias sob o nomen de
seção de instrução, ou pre-trial division ou section préliminaire.
O
referido juízo atua na fase preliminar enquanto o julgamento caberá aos juízes
da seção de julgamento em primeira instância, ou trial division conforme o
artigo 64 do Estatuto de Roma.
Registre-se
que o mesmo instituto existe na Justiça Militar, competente para cuidar de
inquéritos policiais militares. Porém, o juiz de garantias tem características
não estão presentes e funcionais em nenhuma outra estrutura judiciária brasileira.
E, a
sua previsão legal atende ao princípio acusatório de justiça criminal e à
garantia da presunção de inocência do réu, e a partir do direito a um
julgamento justo, realizado por um juiz ou tribunal objetivamente e
subjetivamente imparcial.
Ainda
nos anos 1990, o Brasil flertou com a figura do juiz de instrução ou juiz
investigador, quando o artigo 3º da Lei 9.034/1995 concedeu competências de
investigação aos juízes criminais em casos de criminalidade organizada. E, logo
fora atacado por meio da ADI 1570, julgada procedente pelo STF em 2004, quando
se concluiu que o instituto era incompatível com o sistema acusatório.
Não há
estranheza haver certa resistência à mudança estrutural no país, onde vige um
vetusto processo penal que apesar de aperfeiçoado não capaz de conter todas as
ingerências inquisitivas do juiz criminal na investigação penal e na produção
de prova criminal. De sorte que o juiz de garantias se tornou "um estranho
no ninho".
No
direito comparado o juiz de garantias existem em várias partes do mundo, em
países com tradições jurídicas semelhantes à brasileira, na Europa e no
continente americano[7].
Já na
América Latina[8],
todos os países que fizeram a transição do modelo inquisitivo para o modelo
acusatório, ao longo dos anos 1990, adotaram o juez de garantías, a partir das
experiências alemã e italiana. Chile, Colômbia, Honduras, Uruguai, El Salvador,
Equador, Paraguai e Peru também o fizeram.
Já nos
EUA, o grand jury faz o papel de controlador da fase inicial da
persecução, como a câmara de acusação e, no passado, já tivemos em terras brasilis
algo semelhante durante a vigência do Código de Processo Criminal do Império de
1832.
Quando
os EUA não utiliza o grand jury, as discussões sobre a viabilidade da
acusação e admissibilidade de provas[9] ocorre numa preliminary
hearing (escuta preliminar) e a competência para decidir pertence a um juiz
togado, que não será normalmente o juiz do julgamento (fact finder).
Realmente, a decisão sobre a culpa ou a inocência do réu será encargo dos jurados
do pequeno júri, portanto, de outro órgão julgador.[10]
Em
1974, a Alemanha teve a criação do juiz da investigação em lugar do juiz
instrutor. E, seguiu o aperfeiçoamento do sistema acusatório no que foi seguido
por Portugal em 1987 e na Itália em 1988[11] e, depois em parte na
França em 2000, com a criação do juiz de instrução criminal, do giudice per
le indagini preliminari (GIP) e do juge des libertés et de la détention
(JLD), como são conhecidos os juízes de garantias nesses países,
respectivamente. Outros Estados europeus passaram a prever o instituto.
Ressalte-se
que os novos papéis processuais obtidos pelos Ministérios Públicos desses
países, vieram à baila devido à extinção do juiz de instrução ou à reformulação
de suas competências. A presunção de inocência também é mais bem resguardada
com a referida separação dúplice que prevê o reforço da imparcialidade dos
magistrados.
Constata-se
que permanece o juiz de garantias envolto em contundentes polêmicas[12], apesar de ser instituto
praticado na Europa numa série de casos concretos nos quais exigia-se o direito
a julgamento imparcial.
A
jurisprudência europeia variou em 1989 no caso
Hauschildt versus Dinamarca[13], quando a Corte Europeia
passou ao enfoque dos atos que o juiz praticara na fase da investigação e, com
que os fundamentos, para verificar de forma um tanto casuística se ocorrera a
perda da imparcialidade[14] objetiva do juiz a ponto
de impedi-lo na fase de julgamento.
Considera-se
a natureza e a fundamentação das decisões tomadas na etapa preliminar, quando
se entendeu ter havido violação do artigo 6.1 da Convenção. E, foi nesse
sentido que o Tribunal de Estrasburgo no caso Nortier versus Países
Baixos, de 1993, e no caso Saraiva de Carvalho versus Portugal, de 1994,
nos quais, contudo, não se reconheceu violação convencional.
Então
uma das medidas para evitar o debate se houve ou não a quebra da imparcialidade
objetiva do julgador em cada caso foi a criação do juiz de garantias.
Aliás,
com a cisão de competências funcionais, opera-se a divisão do labor do juiz de
controle da investigação da atividade do outro juiz ou órgão colegiado de
primeira instância que procederá ao julgamento da ação penal.
Sublinhem-se
que alguns dos precedentes europeus se referem aos juízes de instrução, isto é,
aos sujeitos processuais da etapa investigativa que ainda existem na Espanha,
Bélgica, Holanda, Andorra, França e Grécia. A finalidade do instituto é, sem
dúvida, reforçar a imparcialidade objetiva dos julgadores na área criminal,
acentuando que o ônus recai sobre o Ministério Público.
O MP[15] separa o juiz das tarefas
de investigar e acusar e, o juiz de garantias amplia somente a segregação do
julgador quanto à etapa inicial da persecução, quando realizar a investigação
criminal.
A
possível solução para a implantação de juiz de garantias é gambiarra
inaceitável, e irá gerar caos e tardanças na administração da Justiça. Capaz de
gerar impedimentos em cadeia conforme as inúmeras competências do juiz de
garantias nas inúmeras competências nos dezoito incisos do artigo 3-B do CPP[16].
A soma
dos impedimentos sucessivos, especialmente, nos locais dotados de poucos
magistrados provocará um deserto de julgadores habilitados para julgar a ação
penal. O rodízio de juízes também é incompatível com a garantia do juiz
natural, previsto pela Constituição Federal brasileira vigente e, ainda, no
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) e, também na Convenção
Americana de Direitos Humanos (1969).
O juiz
que tutela direitos processuais do investigado não pode variar, de acordo com
regras meramente casuísticas deste ou daquele tribunal e para atender os
impedimentos encadeados e múltiplos que o dispositivo legal que o criou.[17]
Ademais,
o exíguo prazo de implantação, com uma mísera vactio legis de apenas
trinta dias, viola o razoabilidade exigida pelo artigo 8 da Lei Complementar
95/1998. Outra crítica palpável é a total falta de orçamento para que os
tribunais brasileiros realizem a implantação do juiz de garantias, mesmo que
não haja a criação de novos juízes. Igualmente, deverá se estruturar as
serventias judiciais, ainda que seja em rodízio[18].
Ademais,
com a carência de clareza em diversos dispositivos da competência do juiz de
garantias, provocará certamente uma tempestade habeas corpus,
principalmente quando houver a necessidade de diligências judiciais da cota da
denúncia e, ao deferimento de medidas[19] adequadas para garantir a
investigação, o juiz do julgamento estará impedido de prosseguir.
E, o
legislador pátrio não criou um regime de preclusões para as decisões do juiz de
garantias. E, a etapa inicial não pode eternizar-se, alargando a fase da
investigação para a etapa do julgamento.
Todo o
cenário que foi criado implicará em novos ônus processuais para o MP e a Polícia
na ressignificação de papéis, o que não é nada cômodo e, não se fará sem
custos, sem o treinamento e sem vontade.
Ainda
no direito comparado, no Uruguai a implementação do novo CPP acusatório começou
há mais de dois anos e ainda construiu um país com dois sistemas e, o CPP
antigo continua a regular os processos anteriores.
No
Peru, a reforma processual começou a ser implementada nos idos de 2016 e, ainda
não se encerrou. E, o a capital, a cidade de Lima continua aplicando o CPP
antigo peruano.
Na
Argentina, o novo CPP[20] federal entrou em vigor
em 2019, a aplicação do modelo acusatório com juízes federais de garantia começou
pelas Províncias de Salta e Jujuy, ao norte. Porém vai tardar a chegar nas
províncias maiores e até a capital federal.
Verificou-se
o mesmo no Panamá, Chile e Paraguai onde se deu a implantação progressiva e
planejada das mudanças processuais mais impactantes[21].
A
necessidade do juiz das garantias pode ser doutrinariamente justificada pela
teoria da dissonância cognitiva, conforme esclareceu Lopes Jr., e Ritter que
ficou conhecida em 1957, por meio da obra intitulada A Theory of Cognitive
Dissonance de Leon Festinger[22] e, essencialmente trata
sobre a cognição humana.
Resta
fundamentada na premissa de que o indivíduo tende sempre a buscar um estado de
coerência (consonância) entre seus conhecimentos (opiniões, crenças e
atitudes), desenvolve-se no sentido de comprovar que há um processo
involuntário, por isso inevitável, para se chegar a essa “correlação“,
admitidas naturais exceções.
Assim,
especialmente atenta às situações em que há o rompimento desse estado e o
indivíduo se encontra diante de incontestável incoerência (dissonância) entre
seus próprios pensamentos, ou entre sua ação e sua razão (sujeito que seja
fumante habitual – ação – toma conhecimento de que a nicotina é extremamente
nociva para sua saúde – razão – e permanece com o hábito, sem que queira
matar-se ou adoecer, por exemplo), identifica e apresenta reflexos
cognitivo-comportamentais decorrentes desse contexto antagônico e inquietante[23].
Deve-se
avaliar duas hipóteses: (a) existindo dissonância cognitiva[24] haverá também uma pressão
involuntária e automática para reduzi-la; e (b) quando há essa dissonância,
além da busca pela sua redução, há também um processo de evitação ativa de
contato com situações que possam aumentá-la.
Assim,
admitindo-se que o indivíduo tenta sempre estabelecer uma harmonia interna
entre suas opiniões, ações, crenças, etc., havendo dissonância entre essas
cognições, dois efeitos subsistirão imediatamente: uma pressão para a
redução/eliminação dessa “incoerência” entre os “conhecimentos” ou “entre a
ação empreendida e a razão“; e um afastamento ativo de possíveis novas fontes
de aumento dessa incongruência, ambos responsáveis pelo desencadeamento, no
indivíduo, de comportamentos involuntários direcionados à recuperação desse
“status” de congruência plena que tanto é favorável.
Havendo
dúvida sobre a ocorrência de tais situações desconfortáveis em seres ditos
racionais, e seus respectivos motivos, basta se pensar que não necessariamente
se está diante de um fenômeno cognitivo voluntário (que possa ser evitado).
Pelo
contrário, é no plano do involuntário que as incoerências acabam imperando,
haja vista não se poder controlar, no mundo real (que imprevisível), todas as
informações que chegam aos ouvidos das pessoas (muitas vezes contrariando o que
acreditam), ou se prever todos os eventos naturais que podem suceder e
eventualmente poderão contrariar os conhecimentos humanos anteriores[25].
Ademais,
ainda que nada de novo ou imprevisto ocorra, pouquíssimas coisas são totalmente
pretas ou totalmente brancas, totalmente boas ou totalmente ruins, para que se
possa nitidamente chegar a um juízo definitivo, sem ter de enfrentar algum tipo
de contradição. Por isso, “desgraciadamente, la disonancia cognitiva es una
experiencia muy comum”.
Em
resumo, no que se refere à tomada de decisão como causa inevitável de
dissonância, isso ocorre porque “após a decisão, todos os bons aspectos da
alternativa preterida e todos os maus aspectos da alternativa adotada são
dissonantes em relação ao que se decidiu”.
Além
do que “apenas fazer uma escolha“, decidir é assumir (fiel e involuntariamente)
o compromisso de conservar uma posição, que decisivamente vinculará o seu
responsável por prazo indeterminado, já que tudo que a contrariar produzirá
dissonância e deverá ser evitado, ou se não for possível, deturpado, em prol da
decisão tomada.
Na
mesma linha vêm os estudos sobre o “efeito primazia“, que revela que as
informações posteriores a respeito de um indivíduo, são, em geral, consideradas
no contexto da informação inicial recebida, sendo esta, então, a responsável
pelo direcionamento da cognição formada a respeito da respectiva pessoa e pelo
comportamento que se tem para com esta.
As
causas para esse fenômeno são atribuídas tanto à necessidade de se manter a
coerência entre as informações recebidas (tese central da teoria da dissonância
cognitiva) quanto ao nível de atenção dado para as informações, que tende a
diminuir substancialmente quando já se tem um julgamento formado, fruto de uma
primeira impressão.
Por
isso, dificilmente uma pessoa será vista simultaneamente como boa e má, honesta
e desonesta, etc. Quando se recebe uma informação contraditória sobre alguém, o
caminho cognitivo espontâneo é o da reorganização ou distorção dessa informação
para se reduzir ao mínimo ou se eliminar essa incoerência e manter a percepção
da pessoa congruente.
Ciente
que a tomada de uma decisão na fase de investigação preliminar (uma conversão
de prisão em flagrante em preventiva, por exemplo), pode vincular
cognitivo-comportamentalmente seu responsável (magistrado) por prazo
indeterminado, bem como que a primeira informação (primeira impressão) recebida
pelo juiz sobre o fato, com base na qual deverá admitir ou não a abertura de um
processo (ato de recebimento/rejeição da denúncia), é produto dessa
investigação policial, produzida de forma unilateral; existe a possibilidade da
autoridade judiciária que participou dessa primeira fase manter-se imparcial no
futuro desenrolar processual?
Ou é
inviável cogitar em imparcialidade judicial nesse contexto de tomada de decisão
e fixação de uma primeira impressão negativa em relação a uma pessoa,
considerando-se que se estará vinculado a essa decisão e impressão fixada, e
consequentemente que haverá uma forte resistência (negação antecipada) à
absorção de conhecimentos posteriores que as coloquem em xeque (investigação
preliminar vs. processo)?
O
doutrinador traz a teoria da dissonância cognitiva para o campo do processo
penal, aplicando-a diretamente sobre o juiz e sua atuação até a formação da
decisão, na medida em que precisa lidar com duas “opiniões” antagônicas,
incompatíveis (teses de acusação e defesa), bem como com a “sua opinião” sobre
o caso penal, que sempre encontrará antagonismo diante de uma das outras duas
(acusação ou defesa). [26]
Mais
do que isso, considerando que o juiz constrói uma imagem mental dos fatos a
partir dos autos do inquérito e da denúncia, para recebê-la, é inafastável o
prejulgamento (agravado quando ele decide anteriormente sobre prisão
preventiva, medidas cautelares, etc.).
É de
se supor ( afirma Schünemann) que “tendencialmente o juiz a ela se apegará (a
imagem já construída) de modo que ele tentará confirmá-la na audiência
(instrução), isto é, tendencialmente deverá superestimar as informações
consoantes e menosprezar as informações dissonantes“.
Entre
as conclusões[27]
encontra-se a impactante constatação de que o juiz é “um terceiro
inconscientemente manipulado pelos autos da investigação preliminar“.
Em
síntese: a) é uma ameaça real e grave para a imparcialidade a atuação de ofício
do juiz, especialmente em relação à gestão e iniciativa da prova (ativismo
probatório do juiz) e à decretação (de ofício) de medidas restritivas de
direitos fundamentais (prisões cautelares, busca e apreensão, quebra de sigilo
telefônico, etc.), tanto na fase pré-processual como na processual (referente à
imparcialidade, nenhuma diferença existe com relação a qual momento ocorra);
b) é
uma ameaça real e grave para a imparcialidade o fato de o mesmo juiz receber a
acusação e depois instruir e julgar o feito;
c)
precisamos da figura do “juiz da investigação” (ou juiz das garantias, como
preferiu o Projeto do CPP), que não se confunde com o “juizado de instrução“,
sendo responsável pelas decisões acerca de medidas restritivas de direitos fundamentais
requeridas pelo investigador (polícia ou MP) e que ao final recebe ou rejeita a
denúncia;
d) é
imprescindível a exclusão física dos autos do inquérito, permanecendo apenas as
provas[28] cautelares ou técnicas
irrepetíveis, para evitar a contaminação e o efeito perseverança.
Considerando
a complexidade do processo e de termos obviamente “um juiz-no-mundo“, deve-se
buscar medidas de redução de danos, que diminuam a permeabilidade inquisitória[29] e os riscos para a
imparcialidade e a estrutura acusatória constitucionalmente demarcada[30].
O
processo é a ponte por excelência entre o cidadão e o poder jurisdicional,
ainda que seja mostrado como um instrumento técnico aparentemente neutro, sofre
e se modifica, como todo o resto do direito, de acordo com as modificações
sociais.
O juiz
provê a regularidade do processo, mantém a ordem no curso dos respectivos atos
e usa da força pública, se necessário. Ele não tem interesse no desfecho da
causa e é seu dever conceder às partes a segurança de um processo correto e uma
decisão justa. Para tanto, o juiz, ao presidir o processo, deve ter como norte
o princípio da dignidade da pessoa humana.
O juiz
não deve ser um “contador mecânico” de frações de pena na sentença. Para que
isto não ocorra, como ele é o destinatário da prova, o historiador, o
intérprete da lei e o garantidor do respeito aos direitos e garantias
fundamentais que estruturam o processo penal democrático deve ocorrer a
repartição de competências do julgador.
No fundo, o problema é mais estrutural do que propriamente conceitual.
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Notas:
[1]
As primeiras ideias sobre juiz de garantia no mundo surgiram na Alemanha, nos
anos 1970. Lá, esse magistrado é chamado de juiz de investigação ou "Ermittlungsrichter",
em alemão. Ele decide sobre questões como busca e apreensão, interceptação
telefônica, oitiva de testemunhas e prisões antes do início da ação penal.
Normalmente, uma câmara de magistrados é que sentencia o processo.
[2]
Conforme leciona Gimenes (2019), a figura do juiz das garantias foi pensada e
aplicada em algumas nações europeias num período pós-segunda guerra, no qual os
direitos fundamentais ganharam um papel notório em seus ordenamentos jurídicos.
Assim, buscou-se aplicar, de forma universal, o princípio da imparcialidade,
por meio de regras expressas com objetivo de separar os órgãos jurisdicionais
de controle de investigação preliminar e de julgamento da ação penal.
[3]
O afamado Pacote Anticrime não fora a primeira tentativa legislativa em se
introduzir a figura do juiz das garantias no país. O Projeto de Lei nº 156/2009, do Senado
Federal, elaborado por uma comissão
de juristas com
a finalidade de
reformar o Código
de Processo Penal na sua
integralidade, já apresentava um capítulo destinado ao instituto. Sob
coordenação do Ministro Hamilton Carvalhido e relatoria de Eugênio
Pacelli de Oliveira,
a exposição de
motivos do anteprojeto
é contundente em afirmar a
necessidade de um novo Código a partir da uma perspectiva garantista, em
consonância com a Carta Magna.
[4] Das diversas alegações trazidas nas ADIns,
sobretudo na ADIn 6.298, ajuizada
pela Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB)
e pela Associação
dos Juízes Federais
do Brasil (AJUFE),
chama a atenção
o fato de os
requerentes entenderem que há inconstitucionalidade em razão de que (i) a lei
não previu regra de transição, tornando-se eficaz após o decurso da vacatio
legis de 30 dias, o que não considera os importantes impactos que a medida
acarretará no âmbito processual penal; (ii) os inquéritos policiais não serão
concluídos em prazo
razoável, ante o
baixo número de
magistrados que existem para tantas funções, o que, inclusive, poderá
acarretar maior risco de prescrição; (iii) a lei contempla tanto “normas
processuais” quanto “normas de procedimento em matéria processual” ao dispor
sobre a vedação de iniciativa do
juiz na fase
investigatória, suas competências,
funções e impedimentos, em desacordo com o art. 24, § 1º, da
Constituição Federal; (iv) o
juiz das garantias
exige lei de
iniciativa dos Tribunais,
tendo em vista a necessidade de alteração das leis de organização
judiciária; (v) o juiz das garantias fere o princípio do juiz natural, porquanto
estabelece diferentes juízes para as fases pré-processual e processual.
[5]
A divisão que ocorre da atividade jurisdicional do Estado nas fases
pré-processual e processual tem origem aplicada em outros países da Europa,
caso são exemplos Portugal, França e Itália, bem como países do continente
americano, dentre eles os Estados Unidos, Colômbia e Chile, todos com o
objetivo de garantir o devido processo legal e assegurar, como função
primordial, os direitos concernentes a partes no esboço do processo penal.
Como relata Lopes Júnior,
2020, p. 142-143: O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), especialmente
nos casos Piersack, de 1º/10/1982, e De Cubber, de 26/10/1984, consagrou o
entendimento de que o juiz com poderes investigatórios é incompatível com a
função de julgador. ou seja, se o juiz lançou mão de seu poder investigatório
na fase pré-processual, não poderá, na fase processual, ser o julgador. É uma
violação do direito do juiz imparcial consagrado no art. 6.1 do Convenio para a
Proteção do Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950. Segundo o
TEDH, a contaminação resultante dos pré-juízos conduz à falta de imparcialidade
subjetiva ou objetiva. Desde o caso Piersack, de 1982, entende-se que a
subjetiva alude à convicção pessoal do juiz concreto, que conhece de um
determinado assunto e, desse modo, a sua falta de pré-juízos.
[6]
O Código de Processo Penal, instituído pelo Dec.-Lei 3.689/1941 é inspirado na
legislação italiana de 1930, com cariz autoritário em razão da influência do
regime fascista que imperou no referido período. Essa cultura impregnou-se de
tal forma que nem mesmo a recente reforma processual de 2008 foi capaz de
purificar o Código de toda influência inquisitória e autoritária, incompatível
com a ordem constitucional democrática.
[7]
Conforme asseverou Francesco Carnelutti,
“o cientista do direito não está em contato com os fenômenos que deve
observar, senão, normalmente, afastado deles; frequentemente, muito distante;
por vezes, extremamente longe. O que se apresenta a seus sentidos é algo que,
nove entre dez vezes, só lhe proporciona o modo de fazer reviver os fenômenos
em si mesmos, é dizer, em sua inteligência. Para ver, tem necessidade, nove
entre dez vezes, de criar de novo. Todos sabemos que a própria interpretação é uma
criação; e não há grande diferença entre o intérprete da música e o intérprete
de uma lei; quero dizer que, para ser cientista, há que ser primeiro artista do
Direito”.
[8] Na própria América do Sul, existem cada vez
mais ordenamentos que têm acolhido a
figura do juiz
das garantias, com
algumas alterações. No
Chile (2005) e
na Argentina (2019),
por exemplo, promoveram-se
recentemente reformas processuais
com o objetivo
de se ajustar
a investigação preliminar ao modelo acusatório. Seguindo a
tendência penal europeia, esses Estados atribuíram a titularidade da
investigação criminal ao Ministério Público e passaram aos Magistrados o poder
de controlar os limites dessa fase pré-processual, reduzindo sua iniciativa
probatória.
[9] Inclusive o Superior Tribunal de Justiça já firmou entendimento quanto a vedação do juiz determinar a oitiva de testemunhas em nítida substituição e quanto a possibilidade da oitiva de testemunha indicadas extemporaneamente, surgidas no transcurso da produção da prova oral. Nessa última hipótese se está prestigiando a atividade probatória de forma residual, ocorrida após a iniciativa primária das partes, que visa dirimir dúvida sobre pontos relevantes que surgiram durante a instrução processual. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (5. Turma). Habeas Corpus. HC 503241/SP. 1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, [...]. Impetrante: Daniel Leon Bialski e outros. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Paciente: Jose Eduardo Ramires. Relator(a): Ministro Ribeiro Dantas. Brasília, 23 de agosto de 2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=100028409&num_registro=201900998257&data=20190823&tipo=5&formato=PDF.
234 Art. 807, do CPP: O disposto no artigo anterior não obstará à faculdade atribuída ao juiz de determinar de ofício inquirição de testemunhas ou outras diligências.
[10]
Na Inglaterra, as investigações são conduzidas pela polícia. Ela faz ao juiz os
pedidos de buscas, prisões e quebras. Terminada a investigação, a polícia
entrega seu relatório ao CPS ("Crown Prosecution Service"),
espécie de Ministério Público, que faz a acusação diante do juiz. Mas quem vai
receber a denúncia é um júri de 12 pessoas. Se for na Escócia, serão 6 pessoas.
Como nos EUA, o investigado pode dispensar o júri e pedir o julgamento apenas
por um juiz de carreira.
[11]
A Itália tem juiz de garantias desde 1988. Toda a Operação Mãos Limpas, que é
considerada um exemplo e inspiração para Moro, ex-juiz da Lava Jato, foi
realizada com esse modelo de atuação. O chamado "juiz de investigações
preliminares" recebe os pedidos de prisões, buscas e quebras. Quando a
denúncia chega, ela é analisada por uma turma com três magistrados.
[12] O art. 3º-B, em seu inciso X destaca que entre as funções do Juiz das Garantias estariam: “requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação”. O próprio novo rol legislativo, expressamente, determina que o magistrado responsável pelo momento investigativo não pode agir sem provocação da acusação ou defesa do investigado, previsto no art. 3º-A da Lei 13.964/19.
[13]
O Governo argumentou perante a Corte, como já havia feito sem sucesso perante a
Comissão, que a demanda se afigurava inadmissível em virtude da não exaustão
dos remédios domésticos (artigo 26 da Convenção). Em amparo a essa preliminar,
arguiu que, tendo o Sr. Hauschildt temido a perda da imparcialidade do Juiz
Larsen e dos juízes da Corte Superior, em consequência de decisões anteriores
ao seu julgamento, ele poderia tê-los confrontado com base nas seções 60(2) e
62 do Ato (ver parágrafo 28 do original), o que nunca fez. O demandante
contrapôs, explicando que havia sido instruído de que o Ato não permitia tal
curso de ação. Essa instrução foi baseada no disposto na seção 62 do Ato,
combinado com a seção 60(2), do qual se pode inferir que, contestar um juiz sob
o aspecto de que ele teria proferido decisões anteriores ao julgamento – isto
é, tendo agido em uma função oficial diversa da de julgador final –, poderia
ser bem sucedida se o julgador tivesse “especial interesse no resultado do
caso” (seção 60). Essa via, na opinião do conselheiro da defesa, não se
aplicava ao presente caso. O Governo descreveu tal entendimento das seções do
Ato como uma “má interpretação deveras óbvia”. Em sua própria interpretação,
seria possível, ao demandante, contestar tanto o Juiz Larsen quanto os juízes
da Corte Superior, sob o embasamento de que sua responsabilidade, por uma série
de decisões anteriores ao julgamento, teria gerado dúvidas quanto à sua
completa imparcialidade. Em suporte ao argumento, fizeram referência a uma
decisão de 12 de março de 1987, proferida pela Suprema Corte dinamarquesa, na
qual se determinou que decretos de prisão provisória, durante a fase que
antecede o julgamento, não deveriam, per se, obstar o juiz de participar do
julgamento subsequente.
[14]
A imparcialidade do órgão jurisdicional é um “princípio supremo do processo” e,
como tal, imprescindível para o seu normal desenvolvimento e final julgamento
da pretensão acusatória e do caso penal. Sobre a base da imparcialidade
funda-se a estrutura dialética de um processo penal constitucional e
democrático. Contudo, a complexidade da fenomenologia processual é bastante
sensível, de modo que a posição do juiz funda um processo acusatório e
democrático ou inquisitório e autoritário. Mexer na posição do juiz pode
significar uma mudança completa da estrutura processual. Nas esclarecedoras
palavras de Carnelutti, “el juicio es un mecanismo delicado como un aparato de
relojería: basta cambiar la posición de una ruedecilla para que el mecanismo
resulte desequilibrado y comprometido“. É essa a posição que o juiz deve adotar
quando chamado a atuar no inquérito policial: como garante dos direitos
fundamentais do sujeito passivo.
[15]
Nesse contexto, faz-se ainda mais necessário enfatizar a função constitucional
do Ministério Público. Se ele é dotado das mesmas garantias da magistratura, o
que foi conquistado a partir de uma luta intensa no processo constituinte,
deve-se compreender que ele tem as mesmas obrigações daquela. A principal delas
é a isenção e o dever de não se comportar como a defesa – esta, sim, autorizada
a agir estrategicamente. De modo a reforçar
essa ideia, tramita
no Senado Federal
o Projeto de
Lei nº 5.282/2019
– chamado de
PL Streck--Anastasia –, que visa
obrigar o MP a buscar a verdade do processo para a acusação e, também, a favor
do indiciado ou acusado. Como agente público, o MP deve ser equidistante,
buscando a equanimidade (fairness). Na verdade, o projeto nada cria de
novo, apenas oficializando o que já está no Estatuto de Roma, mas é de grande
valor em um CPP datado de 1941.
[16]
O art. 3º-A dá o tom da mudança, sinalizando que o processo penal observará a
estrutura acusatória – em contraposição à inquisitória –, ficando vedadas a
iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição do órgão de
acusação na produção de provas. O art. 3º-B apresenta em que medidas
investigativas será necessária a atuação do juiz das garantias para
salvaguarda dos direitos
individuais, observada a
reserva de jurisdição.
Ademais, o juiz das garantias não poderá atuar no
processo penal para julgamento do mérito da acusação (art. 3º-D).
[17]
A mais de trinta anos, a Comarca Central do Estado de São Paulo se tornou um
exemplo de inovação jurídica que elevou
os padrões de imparcialidade dentro da fase pré-processual ao designar os inquéritos aos magistrados do
Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO) e a
partir disso, os demais atos, seriam responsabilidade de um juiz
diferente, ocupante das Varas criminais
da capital. A função inicialmente exposta, muito se assemelha com o Juiz
das Garantias previsto na Lei 13.964/19.
[18]
Muitas foram as críticas dirigidas a proposição do juiz de garantias o que fez
com que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, em sua Nota Técnica 10/2010,
apontasse a inviabilidade de implantação da referida figura no país, visto que
cerca de quarenta por cento das Comarcas das Justiças Estaduais estão compostas
somente por um único magistrado. Noutros termos, a implantação do juiz de
garantias implicaria num forte impacto orçamentário no Judiciário brasileiro,
além de violar o direito a um processo com prazo razoável, garantia presente no
inciso LXXVIII do artigo 5º da vigente Constituição Federal brasileira, advindo
daí o questionamento a respeito da constitucionalidade do referido instituto. Em idêntica trilha
seguiu a Associação dos Juízes Federais, ao emitir sua Nota Técnica nº 03/2010.
Nela, além de comungar com os argumentos apresentados pelo CNJ, também informou
ao Senado Federal que ninguém menos que o Supremo Tribunal Federal já havia se
posicionado sobre tal tema, ao excluir a possibilidade de um magistrado vir a
perder sua imparcialidade para atuar na fase processual, pelo simples fato de
já haver atuado na fase de investigação.
[19]
O endurecimento do sistema de justiça criminal a ponto de se aumentar,
vertiginosamente, o número de decisões judiciais concedendo medidas cautelares
como busca e apreensão, decretação de prisões cautelares em maior escala,
principalmente em nos feitos de repercussão midiática pode conduzir à
constatação de violações e direitos e garantias fundamentais. Pensamos que a
única forma de afastar tal odiosa lesão a direitos é o conteúdo do decisum que
deve estampar uma motivação aprofundada e detida sobre as nuances do caso em
concreto. Somente com este jaez a decisão judicial estará, de forma correlata,
dando concretude ao princípio da segurança jurídica e aumentando a confiança do
cidadão no Estado.
[20]
O Código de Processo Penal, instituído pelo Dec.-Lei 3.689/1941 é inspirado na
legislação italiana de 1930, com cariz autoritário em razão da influência do
regime fascista que imperou no referido período. Essa cultura impregnou-se de
tal forma que nem mesmo a recente reforma processual de 2008 foi capaz de
purificar o Código de toda influência inquisitória e autoritária, incompatível
com a ordem constitucional democrática.
[21]
Apenas exemplificativamente, cabe o registro de que a figura do juiz das
garantias12 está presente nos Códigos de Processo Penal do Chile (artigo 70,
Ley 19.696 de 2000), do México (artigo 133, I, do Código Nacional de
Procedimientos Penales, de 2016), da
Colômbia (artigo 39, caput e parágrafos 1º e 2º, do Código de
Procedimiento Penal, de 2004), da
Venezuela (conforme previa, já no Código Orgánico Procesal Penal de 2001, o
artigo 532, e ainda preveem os artigos 505 e 506 do Código de 2012) e Peru (artigo 323 do Código Procesal Penal de
2004).
[22]
Leon Festinger foi um psicólogo da cidade de Nova Iorque que se tornou famoso
pelo desenvolvimento da Teoria da Dissonância Cognitiva. Festinger se tornou
bacharel em ciência pelo City College de Nova Iorque em 1939. Em 1983, quatro
anos após o fechamento de seu laboratório, Festinger expressou insatisfação com
o que ele e sua área haviam realizado. Ele sentia que, depois de passar
quarenta anos trabalhando com psicologia social, pouco havia realmente sido
realizado.. Além disso, ele acredita que muitas questões sociais que precisam
ser tratadas psicologicamente foram deixadas de fora e que, em troca, foi dada
atenção a aspectos bastante insignificantes. Motivado por essa discordância,
ele decidiu estudar o registro fóssil e entrar em contato com Stephen Jay
Gould, um geólogo e biólogo evolucionista, para discutir ideias sobre a
evolução do comportamento humano e visitar sítios arqueológicos. Sua intenção
era aprender mais sobre o comportamento social dos primeiros humanos com os
restos de suas ferramentas. Seus esforços culminaram na publicação de seu livro
“The Human Legacy” (1983), no qual ele descreve como os humanos evoluíram e se
desenvolveram em sociedades mais complexas.
[23]
Renato Brasileiro advoga com maestria a aplicação do Juiz das Garantias nesses
casos: Por mais grave e repulsiva que
seja toda e qualquer forma de violência
doméstica e familiar contra a mulher – e isso não negamos –, não se
pode admitir essa crescente e perigosa
restrição a direitos e garantias fundamentais
nessa seara. ... A pretexto de viabilizar o conhecimento “de toda a
dinâmica do contexto de agressão”, nas
palavras do Minº Dias Toffoli, poderíamos
outorgar ao autor desses delitos, então, um juiz menos parcial? Pensamos
que não. (LIMA, 2020, p. 152.).
[24]
As pessoas têm todos os tipos de crenças, não há dúvida sobre isso. Contudo, O
que acontece quando duas ou mais dessas crenças bem estabelecidas entram em
conflito? Sentimo-nos incomodados porque nosso sistema de valores não está mais
em harmonia e agora está em tensão. Por exemplo, se nos consideramos
antirracistas, mas descobrimos que nosso cantor favorito é abertamente racista,
é claro que ele não nos deixará indiferentes. Chamamos esse conflito entre duas
ou mais crenças conflitantes de dissonância cognitiva. De acordo com essa
teoria, existe uma tendência em todas as pessoas de manter consistência e
harmonia entre seus comportamentos e crenças. Quando essa coerência é rompida,
ocorre dissonância, o que causa desconforto para a pessoa.
[25]
É evidente que o Juiz das Garantias não será levado ao relento tão facilmente,
uma vez que representa a maturidade do
processo penal brasileiro e instrumento contra arbitrariedades ou abusos de magistrados, atuando como
protetor e garantidor da imparcialidade e dos direitos do acusado, previstos na Constituição Federal
brasileira vigente.
[26]
A opção teórica por uma “verdade real”, concebida como “causa finalis da
instrução e, portanto, do próprio processo”, como referida por Frederico
Marques, forneceu o argumento dogmático para dar sustentação a práticas
inquisitórias ordinárias de nosso Sistema de Justiça Criminal. A rigor – e
embora a posteriori – as várias defesas da tese de que há uma “verdade real” a
que o juiz criminal deve ter acesso para decidir, contribuíram para legitimar o
funcionamento da agência judicial (e da policial) conforme ímpetos de
conhecimento dos fatos que não se continham em limites estabelecidos por regras
jurídicas.
[27]
O juiz de garantias será o responsável para estar sob o comando da fase do
inquisitorial da persecução penal, qual seja, a do inquérito policial, com
intuito de garantir os direitos individuais de cada cidadão, sendo vedado sua
atuação na fase processual. A neutralidade que se exige do juiz não lhe impõe o
alijamento da divulgação de notícias pela mídia, até porque seria de impossível
execução fática, já que o julgador integra a sociedade e recebe, como todos, o
informe dos fatos que nela repercute. A neutralidade do julgador reside na
tentativa de formação de sua convicção de acordo com a carga probatório
produzida em juízo sob o manto do contraditório e da ampla defesa. A
neutralidade será observada quando o julgador mantiver o equilíbrio no
processo, restando “estranho ao conflito”.
Sobre a temática, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que “em se
tratando de atos praticados por autoridades de primeira instância, o acesso à
Corte Suprema, mediante habeas corpus, supõe o prévio e exaustivo percurso
pelas diversas instâncias judiciárias anteriores – como, aliás, se constata da
própria Súmula 691/STF –, é preciso avaliar com cautela situações como a
presente, de superveniência de um terceiro decreto de prisão preventiva às
vésperas de julgamento de habeas corpus relativo ao decreto prisional
anterior, a fim de que não sirva um fato assim, voluntária ou
involuntariamente, de empecilho ou de limitação ao regular exercício da
competência jurisdicional desta Suprema Corte. Não por outra razão, esta Corte
– é certo que em situação diversa, frise-se – censurou com veemência decretos
reiterados de prisão preventiva quando “Se vislumbra resistência ou
inconformismo do magistrado, quando contrariado por decisão de instância
superior. Atua com inequívoco desserviço e desrespeito ao sistema jurisdicional
e ao Estado de Direito o juiz que se irroga de autoridade ímpar, absolutista,
acima da própria Justiça, conduzindo o processo ao seu livre arbítrio, bradando
sua independência funcional” (STF, HC 95.518, 2ª Turma, rel. p/ac. Min. Gilmar
Mendes, DJe 19.03.2014).
[28]
A inovação trazida pela Lei nº 13.964/19 no art. 157, do Código de
Processo Penal, que trata da
inadmissibilidade das provas ilícitas, foi a inserção do § 5º que assim prevê: “o juiz que conhecer do conteúdo
da prova declarada inadmissível não
poderá proferir a sentença ou acórdão”. Portanto, o julgador deverá ser
substituído quando houver declaração de
ilicitude de qualquer elemento probatório a que já tenha tido contato anterior. Em outras
palavras, estamos diante de um impedimento do juiz que tenha conhecido de prova ilícita de julgar a causa,
em decorrência do risco, mesmo que
minimamente, de ser influenciado pelo conteúdo do material probatório
ilícito conhecido.
[29]
O sistema inquisitório,
centralizado na figura
do juiz, que
se apresenta todo poderoso diante
do réu, é apenas um consectário da filosofia da consciência, como se o sujeito
fosse senhor do sentido; a verdade pertence ao
sujeito enquanto sujeito
e apenas a
ele. Por sua
vez, a busca
da “verdade real”, tão propagada
na doutrina processual penal, está assentada na filosofia clássica,
objetivista. Conjugam-se essas duas ideias de projetos filosóficos diversos e
chega-se ao protagonismo judicial, com a relativização de direitos individuais
em prol de um interesse nebuloso, que, por vezes, se denomina de público.
[30]
Apesar de novos dispositivos legais, o caput do art. 310 do CPP também
determina funções semelhantes a esse
juiz. Não obstante, o juiz da audiência de custódia, determinado por Lei de Organização Judiciária, estaria impedido
de ser também o juiz da mesma causa em que
atuou anteriormente.