Instrumentos Jurídicos da ditadura militar brasileira

O colapso da democracia brasileira sempre foi tema instigante e que aguça muitas pesquisas. Trata-se de tema extenso e complexo e quase todos os pensadores políticos  relataram sua desconfiança sobre a legitimidade de governos tirânicos e autoritários. A tutela das forças armadas no processo político traduz a decadência do Estado de Direito e ceifamento dos direitos fundamentais do cidadão

Fonte: Gisele Leite

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Não é tarefa fácil refletir sobre a ditadura militar no Brasil, buscando inquirir e avaliar os  instrumentos que permitiram o regime manter-se no controle do Estado durante mais de duas décadas. Como qualquer sistema autoritário ocorridos nos anos de 1960 a 1970, bem como a produção normativa do sistema despótico e os malabarismos legislativos que mantiveram a força no governo desses países.

O período de exceção foi instaurado por meio do Golpe de Estado desferido contra o Presidente João Goulart seguido de aparato normativo que serviu de base de poder ao regime e enfraquecimento democrático no Brasil.

Depois de 1964 veio um período de truculência e violência perpetrada por agentes do Estado com contumaz desrespeito aos direitos humanos e arbitrariedades de toda sorte tais como prisões abusivas, torturas, violação de domicílios   e correspondência, cassação de mandatos políticos opositores, desaparecimentos de presos que até hoje ficaram inexplicáveis.

A ditadura alicerçou-se juridicamente de acordo com interesses casuísticos dos chefes da insurreição. E, na primeira década do regime de exceção, militares e juristas construíram uma estrutura destinada a dar legalidade às ações governamentais e a permitir o seu amplo domínio sobre os setores político, econômico e social da nação[1].

Questiona-se como tamanho regime autoritário teve êxito e sustentação para seus atos de exceção?  Ao analisar tais instrumentos jurídicos usados pelo regime repressivo, a legalidade conferida por estes à ordem político-institucional instaurada com golpe de Estado de 1964, percebe-se as manipulações legislativas, particularmente, a eleitoral. E, eis que surgem os Atos Institucionais como sendo expressão máxima da produção legislativa, com ênfase nos Atos número 1,2,4 e 5.

Mais tarde, com a derrocada da ditadura militar pelo colapso sucessivo de tentativas de os militares se manterem no poder e, os fortalecimentos dos setores opositores, com o fito de se compreender as mudanças que propiciaram a transição política negociada entre as elites civis e militares apesar de pouca participação direta do povo brasileiro.

Cumpre destacar os conceitos de regimes políticos a partir de caracteres que são peculiares em nível geral, para aferir sua configuração no caso brasileiro após 1964.

Regime político é complexo estrutural de princípios e forças políticas que determinam a concepção de Estado e da sociedade e, que inspiram seu ordenamento jurídico. É basicamente aceita a distinção entre três regimes, a saber: o democrático, o totalitário e o autoritário.

No totalitarismo se manifestaram as ideologias extremistas, sejam as de esquerda ou de direita, tanto no stalinismo soviético como no nazismo e no fascismo conhecemos regimes totalitários.

O principal destaque cabe a centralização total do poder nas mãos de líder reverenciado, ou ainda, de um grupo de pessoas, viabilizando a maximização do aparato estatal capaz de impor a força a ideologia oficial apregoada pelo partido político único que detém o controle total do governo. O objetivo visado é homogeneizar os segmentos sociais e dominar o cidadão.

[...] o Estado, ou melhor, o aparelho do poder, tende a absorver a sociedade inteira. Neles, é suprimido não apenas o pluralismo partidário, mas a própria autonomia dos  grupos de pressão que são absorvidos na estrutura totalitária do poder e a ela  subordinados. O poder político governa diretamente as atividades econômicas ou as  dirige para seus próprios fins, monopoliza os meios de comunicação de massa e as  instituições escolares, [...] penetra em todos os grupos sociais e até na vida familiar [...]  (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998).

Já a democracia que nascida com os atenienses e resgata sobre o binômio participação-representação pelas Revoluções Burguesas dos séculos XVII, XVIII e XIX, além de calcar-se nos seguintes pilares: a separação de Poderes do Estado; a limitação ao poder dos governantes; sufrágio periódico para escolhas de representantes.

Em uma  concepção formalista, Arturi (2011) define-a como um “regime político cuja base  fundamental é a livre competição pacífica pelo Poder e a garantia das liberdades civis  fundamentais”. Sendo esse regime de governo um termo plurívoco que admite diferentes  conotações, Bonavides (2000) disserta: 

      [...] distinguem-se, na história das instituições políticas, três modalidades básicas de  democracia: a democracia direta, a democracia indireta e a democracia semidireta; ou,  simplesmente, a democracia não representativa ou direta, e a democracia  representativa - indireta ou semidireta -, que é a democracia dos tempos modernos.

Quanto à  terceira espécie de regimes políticos anteriormente enunciados, Bobbio,  Matteucci e Pasquino (1998, p. 100) assim aduzem:   Em sentido generalíssimo, [...] os regimes autoritários se caracterizam pela ausência  de Parlamento e de eleições populares, ou, quando tais instituições existem, pelo seu  caráter meramente cerimonial, e ainda pelo indiscutível predomínio do poder executivo.

No segundo aspecto, os regimes autoritários se distinguem pela ausência da liberdade  dos subsistemas, tanto no aspecto real como no aspecto formal, típica da democracia. A oposição política é suprimida ou obstruída. O pluralismo partidário é proibido ou  reduzido a um simulacro sem incidência real.

Cumpre notar que os autoritarismos operam com hibridismos dos dois sistemas mencionados inicialmente: o grupo ocupante do poder optar por manter as instituições liberais pré-existentes e as coloca sob seu forte e permanente controle, incorporando aos organismos democráticos traços significativos de elementos tirânicos.

Assim, galga-se êxito com a positivação de regras que permitem aos mandatários valerem-se do aparato estatal para perseguir opositores, eliminar inimigos, tolher as condutas e impor a ordem à sociedade, que vai desde a exaltação ufanista à pátria até o quase desparecimento da liberdade de expressão do cidadão, conforme a imposição de prévia censura a produção cultural como livros, novelas e músicas, conforme ocorreu nas décadas de 1960, 70 e 80.

Desta forma, se nos sistemas democráticos a forma de se chegar ao Poder acontece por meio da escolha popular do voto, nos totalitarismos e autoritarismos, quase sempre há uma ruptura institucional e total desobediência aos preceitos constitucionais previstos, onde grupos e pessoas conquistam o Poder do Estado por meio de golpes de Estado ou revoluções com legitimidade questionável ou nula.

Destaque-se, ainda que foi essa realidade a vivenciada, pelos países da América do Sul no século passado e, no qual os setores mais ou menos articulados impuseram um regime de força sobre o impréio da legitimidade institucional.

Um estudo comparativo dos principais regimes autoritários que tanto proliferaram no continente americano vem a explicar como os opressores se impuseram e por tanto tempo. Há, de fato, paralelos onde se identificam-se similitudes e que justificam as peculiaridades da ditadura brasileira.

A segunda metade do século XIX fora marcada pela particular proliferação de regimes autoritários em países sul-americanos, foi assim no Brasil de 1964, no Chile de 1973 e na Argentina[2] de 1976. Assim, os militares deflagraram golpes de Estado que romperam com a ordem constitucional e institucional vigente à época, num movimento de substituição das principais premissas do Estado de Direito, pela busca a todo custo e qualquer custo da famélica segurança nacional.

Alguns estudiosos trouxeram à baila algumas distinções entre as três ditaduras a partir da adoção de parâmetros no tratamento dado aos subversivos, e a relação dos golpistas versus Poder Judiciário.

Quanto ao Chile[3], o despotismo do General Augusto Pinochet instituiu tribunais de guerra perante os quais os opositores eram encarados como inimigos e sendo submetidos aos julgamentos por crimes marciais. E, assim, usurpou a função jurisdicional e judiciária à medida em que se moldavam os regramentos judiciais à imagem e semelhança de todas as tradições militares. O traidor merece apenas a pena capital.

Já no caso argentino, o tango começa com a delegação da missão repressiva às autoridades policiais regionais e pelo fomento de sistema de extralegalidade a partir do abandono total dos trâmites judiciais e da abdicação dos procedimentos previstos e regulados pelas leis processuais então vigentes.

Aliás, a tradição de conflitos existentes entre juízes e militares é de longa data e foi escancarada nesses últimos anos, e seguiu-se à margem da lei, sobrepondo suas ações à competência dos verdadeiros agentes jurisdicionais do Estado.

Na terra brasilis, operou-se o mesmo apesar de que fora menos tensional. A força castrense representada pela direita conservadora e alguns magistrados da direita liberal comungavam das mesmas preocupações e temores no período anterior a 1964, tendo havido consenso que somente uma mão de ferro de uma autoridade massiva poderia salvar o país do comunismo e da sindicalização.

Era tempo do progresso subversivo bolchevique, assim, para eles, defender a pátria era a veemente defesa de valores familiares e conservadores e pela via repressiva.

Percebeu-se que enquanto os chilenos e argentinos excederam-se no uso da violência vindo a esmagar seus adversários sem pudor algum, buscando ainda a legitimação apenas pela força, vilipendiando os direitos fundamentais inerentes a todos os seres humanos, a ditadura brasileira enveredou-se pela valorização procedimental, empregando ritos e legando o arbítrio e manipulando a ordem normativa para adequar as leis aos seus interesses, positivando internamente a censura, a repressão e os julgamentos tendenciosos e castrenses.

Antes de haver um poderoso aparato jurídico por meio de decretos, leis eleitorais, a Constituição brasileira de 1967, emendas constitucionais e, de modo singular, em Atos Institucionais, cujo fito pretendido era garantir a legalidade do Estado de Exceção, e atender aos donos do poder, os militares procuravam preservar as instituições democrático-representativas do período de 1946 a 1964, custodiando ingerências por meio do Judiciário e do Legislativo.

Existiu um sofisticado ordenamento jurídico arquitetado pelos adeptos do golpe de Estado e, trouxe para o direito positivo interno as ações tirânicas dos militares, dentre estas o exponencial reforço na autoridade do Presidente da República, o desrespeito aos direitos políticos de opositores e, ainda, a relegação de liberdades civis ao segundo plano em nome da Doutrina de Segurança Nacional[4].

Então, “[...] os objetivos políticos de ocasião, baseados na doutrina de segurança nacional[5], sempre orientavam a utilização do Direito” (LIMA, 2018), pensado e aplicado conforme o alvitre e os desígnios momentâneos da caserna.

Sob os auspícios de Exército, Marinha e Aeronáutica, com ênfase nos cânones jurídicos preferenciais adotados para  permitirem o exercício irrestrito do Poder.

Para obterem o comando do Estado, os oficiais recorreram aos atributos da conspiração  e da intimidação (que apenas uma instituição com amplo acesso às armas pode transmitir), mas,  para permanecerem no controle do Estado Brasileiro, os oficiais de alta patente e seus  assessores jurisconsultos elaboraram um sistema normativo que recepcionou os ideais arbitrários e forneceu legitimação aos atos de exceção cometidos em nome do prosseguimento  da chamada “Revolução de 64”. Isso porque, conforme o raciocínio de Arendt (1972).

Lembremos que jamais existiu um governo baseado exclusivamente nos meios de violência. Mesmo o mais totalitário destes, cujo maior instrumento de domínio era a tortura, precisa de uma sólida base de poder. Pois nenhum governo se sustenta com êxito por longo tempo somente pelo uso de armas, os militares brasileiros almejaram justificar suas ações em prol de limpeza nacional, o banimento do perigo vermelho, atribuindo até legalidade revolucionária às expensas da lei.

Para justificar a coerção feita com base nos textos legais se construiu um poder políticos desprovido de limites e regido pelos princípios do constitucionalismo que seriam desconsiderados em prol da defesa da segurança nacional.

A base do poder dos militares na primeira década da ditadura manifestou-se em estatutos normativos diversos tais como dezessete Atos Institucionais, cento e quatro Atos  Complementares, Código Eleitoral, decretos e Constituição de 1967, habilidosamente  pensados no intuito de enfraquecer as resistências e aumentar a capacidade de repressão  sobre os setores considerados perigosos à nação.

A normatização de regras e procedimentos centrados nos interesses da nova classe  dominante (política e ideologicamente) funcionou com uma “lógica liberal associada à práxis  autoritária”, incorporando elementos de tirania às instituições de tradição liberal-democrática no objetivo de controlá-las em seu interior.

Enfim, [...] era necessário dar aparência de Estado de Direito à Ditadura” (LIMA, 2018),  tendo em vista que, “na concepção dos governos militares, ditadura era agir fora da lei.  Agir dentro da lei era sinônimo de democracia, mesmo que [...] sua construção  ocorresse de maneira ad hoc”.

Os regramentos que o governo militar positivou no sistema jurídico interno foram diversos.  Os principais  instrumentos normativos moldados pelo Regime de 1964: os Atos Institucionais[6],  com foco nas disposições relevantes dos Atos de número 1, 2, 4 e 5.

Sinteticamente chamados  de “AIs”, os Atos Institucionais caracterizaram-se como entidades jurídicas sui generis, próprias dos regimes de exceção, meticulosamente concebidos  pelos então detentores da capacidade decisória, estatutos legais munidos de força normativa  e voltados à disciplinarização das ordens política, econômica e social instaurada após a  deposição de Jango. 

Os referidos Atos visavam ao exercício irrestrito do Poder e à  formalização, por aspectos excepcionais e extraconstitucionais, do novo Governo. Por meio  dessa construção legal inovadora e introduzida no ordenamento jurídico, os Atos Institucionais  pareciam decretos dotados de força supraconstitucional, posto que submeteram o Direito, os  Poderes constituídos, a sociedade civil, as instituições liberais e a própria Constituição vigente  à vontade dos “donos do Poder”.

Tais Atos Institucionais permitiram aos agentes do Estado a realização de vasta gama de ações voltadas à supressão das oposições, à restrição de liberdades de reunião, de imprensa, de opinião, à instauração da censura aos meios de comunicação, às prisões arbitrárias de suspeitos de sublevação ideológica e à perseguição implacável aos participantes de ligas, organizações e movimentos sindicais e esquerdistas contrários aos triunfantes castrenses do levante de 1964.

Tal invenção no ordenamento pátrio criou uma legalidade paralela à ordem constitucional legitimamente edificada pelo constituinte originário (eleito por sufrágio popular).

Houve abrupta reconfiguração no agir e no existir das instituições, em diminuição drástica das competências do Legislativo e do Judiciário e consequente enfraquecimento do Princípio de Separação dos Poderes, uma das bases do Estado de Direito.

E, não somente isso; por estarem, de fato, acima da Constituição (BEDÊ JÚNIOR, 2013), os Atos Institucionais  transferiram de direito o Poder (tradicionalmente concentrado nas mãos das elites civis) para as Forças Armadas.

O regime dos atos institucionais constituía legalidade excepcional, ‘formada sem  necessidade’, porque voltada apenas para coibir adversários políticos e ideológicos e  sustentar os detentores do poder e os interesses das classes dominantes, aliados às oligarquias nacionais.

[...]Tudo se poderia fazer: fechar as Casas Legislativas, cassar mandatos eletivos, demitir funcionários, suspender direitos políticos, aposentar e punir magistrados e militares e outros.

Mas o que ainda era pior é que não havia nada mais  que impedisse a expedição de outros atos institucionais com qualquer conteúdo. O  regime foi um estado de exceção permanente: pura Ditadura.

Até 1985 foram editados dezessete Atos Institucionais e, desses, doze deles foram editados num período de apenas onze meses ( do AI-5 ao AI-17[7]). Todo o ordenamento constitucional brasileiro ou infraconstitucional, quando até o próprio Congresso Nacional encontrava-se sua legitimidade submetida aos AIs.

O  disposto no preâmbulo do Ato número 1 de abril de 1964 (BRASIL, 1964) identifica o poder revolucionário de 1964 como “poder constituinte”, fonte de onde emanou a sustentação da  nova realidade político-legal.

In litteris:

     “[...] a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Assim, a  revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o  governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a  força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que  nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução  vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação,  representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o  único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes- em- Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica [...] se destina a [...] ditar as normas e os  processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos  jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do país. Para  demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos  manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa  aos poderes do Presidente da República [...] resolvemos, igualmente, manter o  Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do  presente Ato Institucional.

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do  exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação [...]  (BRASIL, 1964, “À Nação”, par. 3)”.

O AI-2, de 1965[8]  determinou a realização de eleições  indiretas para os cargos de Presidente  e Vice-Presidente da República, sendo-lhe adicionado  no mês seguinte o importante Ato Complementar número 4[9], responsável pela extinção das  agremiações políticas em funcionamento durante a fase 1946-1964 - PTB, PSD e UDN, dentre  outros menores - e pela consequente instauração do bipartidarismo (BRASIL, 1965).

Os  conservadores compuseram a situacionista Aliança Renovadora  Nacional (ARENA), e os  líderes do antigo PTB varguista migraram para o Movimento Democrático Brasileiro (MDB),  uma oposição consentida. “Por isso, [...] por força do Ato Institucional n. 2/65, forçou-se uma  experiência bipartidária. Foram dissolvidos os partidos existentes, enquanto se propiciava a  criação de apenas dois: ARENA e MDB.

Ambos partidos contaminados pelo artificialismo. E, o governo ditatorial brasileiro não seguiu para criar um regime político de partido único, como foi o stalinismo e aos fascismos, ou tampouco apartidária, como foi o Estado Novo.

E, na tentativa ladina de ludibriar a opinião pública com mera aparência de pleno funcionamento das instituições democráticas, imperou a mencionada lógica liberal associada à práxis autoritária, ao passo que todo o regramento político-partidário fora adaptado aos objetivos da caserna.

Com a imposição do AI-4, os militares empreenderam manobras a fim de assegurar a  aprovação de uma nova Constituição, desta vez elaborada pelos juristas ligados ao Regime,  inflando as competências administrativas e legiferantes do Executivo - a esta altura já dotado  de maiores prerrogativas de ingerência no processo legislativo, de instituição do regime de  urgência para votação de projetos e de monopólio na formulação do orçamento da União.

Permitiu-se, igualmente, a intervenção nos Estados-membros e a centralização político administrativa a cargo da União. Assim, em que pese haver divergência na doutrina sobre o  texto constitucional de 1967, parece mais adequado tratá-lo como uma Carta outorgada,  porquanto sua elaboração não se deu por representantes do povo eleitos para tal finalidade,  mas sim, por aqueles que, num “processo usurpatório do poder” (BONAVIDES, 2016),  se “autoinvestiram na condição de poder constituinte permanente”.

A Constituição brasileira de 1967 tratou de unir duas ordens latentemente conflitantes: as liberdades civis e o arbítrio; os direitos fundamentais e a doutrina da segurança nacional; prerrogativas de juízes e parlamentares e possibilidades de ingerência do Executivo em todos  os órgãos e instituições do Estado. Verifica-se que o texto constitucional cotejou os Atos  Institucionais anteriores, não obstou a edição de Atos posteriores e ainda manteve  determinados elementos da fase democrática do pós-Estado Novo.

Enfim, a Constituição da Ditadura, datada do Governo Castello Branco[10]:  [...]  manteve em funcionamento os mecanismos e os procedimentos de uma  democracia representativa: o Congresso e o Judiciário continuaram em funcionamento,  a despeito de terem seus poderes drasticamente reduzidos e de vários de seus  membros serem expurgados; manteve-se a alternância na Presidência da República;  permaneceram as eleições periódicas, embora mantidas sob controles de várias  naturezas; e os partidos políticos continuaram em funcionamento, apesar de a atividade  partidária ser drasticamente limitada.

Em síntese, era um arranjo que combinava traços  característicos de um regime militar autoritário com outros típicos de um regime  democrático.

A progressiva escalada autoritária e de concentração de Poder não cessou com a Carta Constitucional brasileira de 1967. Apesar de que a Carta organizou e legitimou toda a atuação despótica, fazia-se ainda necessário à forte mão para conter a proliferação de manifestações populares contra o novo estado de coisas imposto em 1964 e, essa resposta não poderia residir e os postulados liberais indispensáveis à toda essência do Estado de Direito.

Depois da proliferação das manifestações populares no ano de 1968 clamando pelo  fim do autoritarismo, sobreveio o Ato Institucional de número 5, símbolo-mor da produção jurídica  elaborada pelas armas insurretas (BEDÊ JÚNIOR, 2013). O revide oficial aos protestos pelo fim  da Ditadura Civil-Militar foi uma resposta dos comandantes militares às manifestações contra o  Regime.

Mais do que isso, representou o triunfo definitivo da Linha Dura no Poder (já instalada  nas altas esferas da Administração do país desde a posse de Costa e Silva), inaugurando, em  referência à obra de Gaspari (2002), uma era de ditadura escancarada. 

Oficializou-se o Estado permanente de Exceção por intermédio de um terrorismo  perpetrado por agentes de Estado incumbidos da missão de esmagar a luta armada e “caçar”  os suspeitos de conspiração comunista; centralizou-se enormemente o Poder na figura do  Presidente da República, que podia determinar a qualquer tempo o fechamento do Congresso  Nacional, suspender as garantias da magistratura, prender sumariamente os envolvidos com  práticas subversivas e cassar os mandatos de políticos oposicionistas.

Inaugurando a fase mais sombria do regime de exceção veio o AI-5 que extirpou os poucos direitos fundamentais que ainda restavam ao povo, a exemplo do Habeas Corpus e da inviolabilidade do domicílio e do sigilo das correspondências dos cidadãos.

Essa vigorosa hipertrofia do Poder Executivo , que  não hesitou em lançar mãos das prerrogativas postas à sua disposição para subjugar o  Legislativo e limitar a atuação do Judiciário.

Por meio do Ato de número 5, a Ditadura brasileira  inverteu o raciocínio rousseauniano presente em “Do contrato social” (ROUSSEAU, 2006): desde  aquela sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, todo Poder emanava não mais do povo, mas sim  do General-Presidente, transformado em autoridade plenipotenciária da nação.

A outorga de dezessete Atos Institucionais (seguidos por centenas de Atos Complementares)  permitiu a consolidação da insurreição de 1964 e o reforço descomunal no Poder conquistado  pelas Forças Armadas.

Porém, não bastava apenas galgar o Poder, era indispensável mantê-lo. E, seguindo a lógica maquiavélica, os militares tutelaram o sistema político-eleitoral, para isolar cada vez mais a oposição e, então, assegurar as vitórias dos arenistas no Legislativo federal e estadual.

As constantes manobras nos estatutos normativos revelam o exercício  dessa tutela, como se pôde observar no Código Eleitoral de 1965 e na Emenda Constitucional  número 1, de 1969, que diminuiu consideravelmente o número cadeiras na Câmara dos  Deputados e instituiu um Colégio Eleitoral para sufragar as eleições ao Executivo.

O  estratagema proporcionou consideráveis vitórias da ARENA sobretudo em 1966 e em 1970,  fato que permitiu à agremiação o predomínio nas duas Casas Legislativas.

O Poder Executivo e a ARENA aproximaram-se em uma estratégia  de mútuos auxílios: em troca do apoio parlamentar, os arenistas ocuparam espaços na  Administração Pública e conquistaram por diversas vezes as Presidências da Câmara e do  Senado, oferecendo sustentação retórica e votos para os projetos do Governo.

Não obstante,  relevante destacar que a ARENA não se constituiu em partido do Governo, mas sim no  Governo (FREIRE, 2014), porquanto o efetivo controle do Estado residia absolutamente nas  mãos das Forças Armadas.

À semelhança da maioria dos sistemas tirânicos no curso da  história humana, a Ditadura brasileira teve início, meio e fim. O seu começo deu-se com o  golpe desferido contra Jango; o apogeu teve duração de uma década, marcada por censura,  milagre econômico e poderio inquestionável dos militares; a sua decadência seguiu-se  paulatinamente na segunda grande fase do despotismo verde-oliva. É sobre este período que  se passa a inquirir. 

Historiadores, sociólogos e estudiosos do autoritarismo brasileiro não convergem sempre quanto as causas que culminaram na falência da república de farda. Mas é consenso que a abertura democrática brasileira foi um processo demasiado longo, em que se transcorreram onze anos para que os civis retomassem o poder, e ainda mais cinco anos para que o Presidente da República fosse eleito diretamente por voto popular.

A literatura tradicional sobre a ditadura brasileira atribuiu a 1974 o marco inicial da liberalização do regime político, simbolizada pela progressiva derrocada da era dos generais no Palácio do Planalto.

E, as surpreendentes vitórias de candidatos emedebistas nas eleições parlamentares daquele ano, o que confirma a tese dis cientista políticos, pois as conquistas da oposição na Câmara e, sobretudo, no Senado, promoveram sensíveis mudanças no arranjo das forças políticas, fato de óbvio descontentamento no lado opressor.

A partir do Governo Geisel, alguns direitos civis foram devolvidos a título de aproximar o regime de aspectos mais liberais, mantendo, porém, os principais mecanismos vivos do governo autoritário. E, a cada vitória do MDB, o Executivo militar decretava novas ordens visando tolher a expansão dos parlamentares em prol da orientação democrática.

Se nos períodos finais de seu mandato o Presidente Ernesto Geisel[11] revogou o AI-5 em 1978 como forma de arrefecer o arcabouço dos mecanismos de violência  estatal (caminho inevitável para a liberalização do Regime), ele, paradoxalmente, lançou o  “Pacote de Abril”[12], uma série de regras político-eleitorais para driblar a oposição e preservar a maioria governista no Congresso Nacional nas eleições de 1978.

Por meio desta manobra no ordenamento legal, aumentou-se o mandato presidencial e  retomou-se o número de 420 deputados na Câmara baixa a partir do incremento de  representação dos estados de Norte e Nordeste, de notório predomínio das lideranças  arenistas

Ainda na vigência do AI-5[13], o general Geisel baixou o chamado “Pacote de Abril”, um conjunto de quatorze emendas a  artigos da Constituição de 1969[14], três artigos novos, seis decretos-leis, que tinham por objetivo controlar o processo  legislativo, reduzindo o quórum exigido para a aprovação de emendas constitucionais, de dois terços para maioria  simples e criando a figura do “senador biônico”, escolhido por um colégio eleitoral controlado pelo governo em  praticamente todos os Estados.

Além disso, fortalecia o controle do executivo federal, ampliando o mandato do  presidente de cinco para seis anos; controle dos executivos estaduais, com a incorporação definitiva do sistema  de eleição indireta dos governadores e restrição a campanhas eleitorais.

Fleischer (1980), ensina literalmente:

        “[...] o "pacote de abril" havia sido adotado por se prever uma derrota para a Arena nas  eleições de 1978 frente aos resultados das eleições municipais de 1976, onde  entendeu-se que o MDB havia crescido muito, principalmente no Centro-Sul. Assim,  seguindo este raciocínio crítico, as novas regras do jogo aumentariam as bancadas  estaduais no Norte e Nordeste onde a Arena era mais forte e diminuiriam as do Centro Sul onde o MDB levava mais vantagem. [...] preservando [...] uma ligeira maioria  arenista na Câmara Federal”.

Por outro lado, a adoção das eleições indiretas para uma das duas vagas para o Senado Federal evitaria a composição de uma maioria  emedebista, haja vista a eleição de 16 senadores em 22 pelo MDB em 1974.

Toda sorte de malabarismos na legislação eleitoral brasileira asseguraram a maioria governista no Congresso Nacional, mas não impediram o crescimento pungente do MDB, cuja maior expressão aconteceu no pleito de governos estaduais de 1982,  que pela primeira vez em muitos anos  realizou-se pelo voto direto do povo.

O resultado foi avassalador: os candidatos peemedebistas  conquistaram nove estados, ante onze da Arena. A partir de então a abertura, embora “lenta  e gradual”, tornou-se irreversível.

Nesta senda, Arturi (2001) pontua que a redemocratização no Brasil aconteceu em três  sucessivas etapas, a saber: início da dissolução do regime autoritário (1974-1985),  representada sobremaneira pela revogação do AI-5 em 1978; (re)criação da democracia  (1985-1989) e consolidação do novo sistema democrático (eleições de 1989). Inácio (2013) comunga parcialmente desta linha de raciocínio.

     [...] o processo de transição se coordenou em diversas etapas. É possível citar a  normalização da atividade parlamentar, conservação das eleições, revogação de  algumas medidas de exceção, a anistia política, reforma partidária, eleições,  constituição de uma Assembleia Geral Constituinte, promulgação Constituição de 1988[15],  eleições presidenciais diretas e posse do presidente eleito.

As sequenciais conquistas do MDB nas disputas parlamentares puseram os setores  situacionistas em alerta, levando-os a outra manobra: em 1979, o Governo Figueiredo  extinguiu as duas legendas existentes desde o AI-2 e permitiu o retorno do pluripartidarismo.

A permissão para o funcionamento de vários partidos teve por escopo dividir a oposição em  siglas fragmentadas e manter a coesão na base aliada numa legenda única. As finalidades  eram óbvias: impedir o predomínio emedebista no Congresso e eleger, num futuro próximo, o  sucessor de Figueiredo,

Novamente, os mandatários da República erraram a estratégia e, com a proliferação de partidos, surgiram ainda maiores e mais articuladas manifestações populares pelo retorno da democracia.

E, no ABC Paulista, as greves dos metalúrgicos, então liderados por Luiz Inácio Lula da Silva insuflaram os ânimos do operariado e, o trabalhismo à esquerda de Brizola[16] subiu o tom durante suas críticas contra o despotismo.

Consigne-se ainda que a principal movimentação, veio do Partido do Movimento Democrático Brasileiro que tanto se aproximou da sociedade civil e construiu uma agenda progressista e avessa à tirania e na busca garantidora de direitos básicos à população, além de defender justiça social e o combate às desigualdades.

O alinhamento com o pulsar das ruas permitiu  que o PMDB liderasse a luta pela abertura política e colocasse-se como alternativa para  resolver os graves problemas surgidos na gestão Geisel (1974-1979) e aprofundados no  turbulento Governo de João Figueiredo[17] (1979-1985), a citar o descontrole da inflação e o  aumento no custo de vida da população, fomentadores da sensação de que os outrora  “revolucionários” haviam perdido a capacidade de dirigir o país, sendo chegada a hora de  transmitir o Poder aos civis.

O irremediável esfacelamento de apoios à Ditadura, iniciou-se no Brasil um longo  processo de abertura política que ocorreu de modo verticalizado mediante intensas negociações  entre oposição e Governo.

O enfraquecimento dos grupos simpáticos à tirania contrastava com  os segmentos populares democratizantes, cujas manifestações pela mudança de regime  tornaram-se maciças e frequentes durante o mandato do Presidente Figueiredo.

Mesmo encurralados, os comandantes miliares resolveram subvencionar qualquer  modificação no sistema institucional então vigente. Na sua acepção, enquanto defensores da  nação, era seu dever participar proativamente das novas configurações políticas e sociais  pensadas para o Brasil.

E, aproveitando-se da expressiva vitória oposicionista nos governos  estaduais em 1982 e da propagação dos manifestos pelo fim da fase de exceção, “o inofensivo  MDB, criado para ser parceiro da Arena no bipartidarismo de fachada instituído pelo Regime,  havia se tornado um instrumento efetivo de oposição democrática, a ser utilizado não apenas  na arena eleitoral, mas também no processo político mais amplo” (KINZO, 2001).

Nesta conjuntura, o deputado federal Dante de Oliveira (PMDB) apresentou uma Proposta de  Emenda à Constituição cujo teor propugnava pela realização de eleições diretas para a  Presidência da República já em 1985, PEC originária do movimento das “Diretas Já”. 

Foi a mobilização em todos os cantos e searas do país em prol desta Proposta veio a unificar os mais diversos segmentos ideológicos e sociais para que o povo pudesse escolher seu governante máximo. E, assim, a derrocada no Congresso Nacional, a “PEC das Direitas Já” manteve a oposição, ou as oposições, situadas em diferentes partidos políticos desde 1979, articulada para enfrentamento a uma ditatura inerte em face às reivindicações dos cidadãos.

Pela primeira vez  em muito tempo os setores progressistas da política nacional acreditaram que poderiam ser  uma alternativa viável ao militarismo no Governo. A alternativa, porém, só produziria os efeitos  desejados caso se levasse a cabo uma simbiose de elementos que combinassem a união do  lado oposicionista e o diálogo com os (ainda) detentores do Poder. 

A partir disso, correta é a interpretação de Freire (2014) quando descreve a  redemocratização brasileira da primeira metade da década de 1980 como sendo um momento marcado por exaustivas articulações entre os membros do Regime e os expoentes da oposição  (notadamente Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, dentre outros), coordenadores de uma  travessia amplamente negociada e lastreada no consenso, verdadeiro “recurso que  compatibiliza a evolução-mudança da sociedade política e da consciência cautelar e complexa  neste processo”.

Também as crises internas  no PDS favoreceram os segmentos oposicionistas, os quais lançaram  a candidatura de Tancredo Neves à Presidência (FREIRE, 2014).

No lado governista, “havia  dois pré-candidatos disputando a indicação: Paulo Maluf e Mário Andreazza. A obstinação com  que o primeiro se lançou na campanha contra o adversário, impondo-lhe uma humilhante derrota partidária, acabou minando a unidade do PDS” (KOSHIBA; PEREIRA, 2003).

A dissolução da coesão intrapartidária na sigla do Governo promoveu a fragmentação da base situacionista, cujo maior exemplo pôde ser visto na deserção da ala intitulada “Frente Liberal”.

Foi da união da oposição na figura de Tancredo Neves com ex-aliados do regime autoritário, mormente José Sarney é que nasceu a Aliança Democrática que disputou a eleição presidencial em 15 de janeiro de 1985. E, o final resultado representou um tiro de misericórdia na tirania da caserna: o Colégio Eleitoral Também as crises internas  no PDS favoreceram os segmentos oposicionistas, os quais lançaram  a candidatura de Tancredo Neves à Presidência (FREIRE, 2014).

No lado governista, “havia  dois pré-candidatos disputando a indicação: Paulo Maluf e Mário Andreazza. A obstinação com  que o primeiro se lançou na campanha contra o adversário, impondo-lhe uma humilhante  derrota partidária, acabou minando a unidade do PDS” (KOSHIBA; PEREIRA, 2003).

A dissolução da coesão intrapartidária na sigla do Governo promoveu a fragmentação da base situacionista, cujo maior exemplo pôde ser visto na deserção da ala intitulada “Frente Liberal”.

A restauração da democracia no Brasil ocorreu mediante  a permissão (ou concessão) dos comandantes militares que, na fase de colapso da institucionalidade  repressiva, resolveram aderir ao diálogo para negociarem uma transição pacífica, não se eximindo,  porém, de custodiar as tratativas de mudança de regime político e tampouco abdicando da função de  subvencionar o funcionamento da recém instaurada “Nova República”[18].

“O consenso foi a chave” do complexo processo  que possibilitou, no Brasil, “[...] a transição pacífica de um regime autoritário à democracia [...]  pluralista”. As articulações entre renomados nomes da política nacional, principalmente (e não as  pressões advindas das ruas, necessariamente) viabilizaram a mudança da tirania para o Estado de Direito, caracterizadoras de uma abertura por cima realizada pelas lideranças pró-democracia  e, a todo tempo, “patrocinada pelos militares para que acontecesse de forma ‘lenta, gradual e  segura’”.

“[...] o acordo das forças políticas majoritárias na sociedade” fora o “fio  condutor” (RAMOS, 1998) que proporcionou a transação convencionada entre as  elites civis e castrense, cuja consequência maior residiu no advento de uma “democracia  outorgada” (NAPOLITANO, 2014) e tutelada pelas Forças Armadas.

Outorgada, uma vez que não fora conquistada pela legitimidade das urnas ou por uma  drástica ruptura promovida por revoltas ou levantes populares, haja vista ter o povo assistido  a esse longo processo em posição coadjuvante, onde as cenas foram protagonizadas pelos  líderes de grupos adversários - os que ocupavam o Poder e os que intentavam alcançá-lo.

Num  quadro de desconfianças e apreensões que se seguiram ao pleito de janeiro de  1985, os eventos inesperados que culminaram na morte do Presidente eleito transmitiram ao  seu Vice o dever de concluir a mudança do autoritarismo para a Nova República. Houve o  efetivo retorno à normalidade democrática muito mais por uma concessão dos antigos  mandatários da nação do que pelas lutas da manifestação popular.

A passagem de regime foi conturbada: a falta de legitimidade de Sarney perante a  opinião do povo e sua relação conflituosa com o PMDB puseram em risco a estabilidade do  Governo Civil e o próprio desenrolar da Redemocratização, fato ensejador de múltiplas  pressões oriundas dos homens das Armas.

Os militares lograram êxito em seu pleito, uma vez que, nos termos do artigo 142, caput,  da atual Carta Política: “As Forças Armadas [...] destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos  poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (BRASIL, 1988)[19].

Por meio deste dispositivo, conseguiu o Exército permanecer na posição de guardião do país,  com possibilidade de atuação para garantir a ordem constitucional e o funcionamento das  instituições - desde que convocado por algum dos Poderes da República.

A promulgação da Constituição Cidadã em 5 de outubro de 1988 e a primeira eleição  direta para a Presidência da República no ano seguinte concluíram, nas visões de Arturi (2001)  e Kinzo (2001), o intrincado processo de Redemocratização e solaparam os principais  aspectos da Ditadura Civil-Militar, mas não romperam com todos os elementos  caracterizadores do autoritarismo outrora vigente.

Infelizmente, há resquícios da legalidade autoritária entre nós, dentre estes alguns elementos já presente na Constituição brasileira de 1967 que foram incorporados pela vigente Constituição a partir de adoção de instrumentos normativos que tanto ampliaram as atribuições do Presidente da República  e conferiram-lhe a possibilidade de intervir no processo legislativo das seguintes  formas: i) utilização de Medidas Provisórias como ferramentas recorrentes de governabilidade  ii) solicitação de tramitação em regime urgência para os projetos  enviados pelo Presidente às Casas Legislativas (BRASIL, 1988, art. 64, § 1°); iii) prerrogativa de veto parcial ou total sobre leis aprovadas pelo Congresso Nacional (BRASIL, 1988, art. 66, § 1°; art. 84, V); iv) propositura de Emendas à Constituição, nos termos do artigos 60, inciso II e 84,  inciso III, todos da Constituição Federal.

Os principais instrumentos legais utilizados pela Ditadura  de 1964 foram os Atos Institucionais, responsáveis por criarem no próprio Estado duas ordens  jurídicas, a saber: uma legítima e outra paralela.

A primeira erigiu-se de baixo para cima pelos  representantes do povo, revestidos da autoridade legislativa delegada diretamente pelos  cidadãos. A segunda, a seu turno, construiu-se em sentido inverso, de cima para baixo, imposta por aqueles que se autoinvestiram da função legiferante e moldaram o ordenamento  normativo à luz das pretensões momentâneas dos ocupantes do Palácio do Planalto.

As manobras meticulosamente engendradas para viabilizar a conquista e a manutenção  do Poder lograram êxito nos pleitos parlamentares de 1966 e 1970, com triunfo de aliados da  ordem castrense, mas começaram a solapar a partir de 1974, marco associado ao início da  liberalização que conduziria à abertura política.

O esfacelamento dos setores pró-autoritarismo  viabilizaram o processo de distensão iniciado no Governo Geisel e concluído na Gestão  Figueiredo, época em que ocorreu a vitória de Tancredo Neves na eleição à Presidência da  República após longo processo de transição negociada. 

Nesta linha, esclareceu-se também que o retorno à normalidade democrática ocorreu mais por uma concessão, ou melhor, por uma outorga da Ditadura (decadente àquela altura)  do que por uma conquista advinda da luta do povo[20].

Aliás, conforme ser visto, não foi a  organização popular a força motriz a impulsionar a redemocratização; ao revés, as  manifestações dos cidadãos ocuparam mero espaço coadjuvante em um cenário  protagonizado por experientes lideranças políticas civis que realizaram amplas articulações  com o Governo Ditatorial a fim de permitir a transmissão de Poder aos civis.

O país já vivenciou nove golpes de Estado[21], havendo quem cogite que foram dez se contar com a manobra que resultou no impeachment da Presidente Dilma Rousseff.  Enfim, há uma notória tendência aos golpes de Estado, o que demonstra uma sincera ruptura com o Estado Democrático de Direito[22].

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Notas:


[1] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, célebre professor titular de direito constitucional da  Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), da qual foi diretor de 1973 a 1974, e  comungante de alguns entendimentos da ditadura militar, com livros de Direito Constitucional  adotados em inúmeras Faculdades de Direito pelo país afora, principalmente nos anos 80 e 90,  lecionava à geração de jovens estudantes o seguinte: Os direitos fundamentais, [...], impõem sérias e rigorosas limitações ao poder estatal.  Essas limitações, na verdade, só podem ser respeitadas em período de normalidade,  pois nos momentos de crise, embaraçariam de tal modo a ação do governo que este  seria presa fácil para os inimigos da ordem (Ferreira Filho, 1978, p. 301).

[2]O sequestro, a tortura física e psicológica e o desaparecimento de cadáveres foram práticas da ditadura argentina. Estima-se que, nos seus sete anos de duração, cerca de 30 mil pessoas tenham sido mortas pelo terrorismo promovido pelo Estado. A sociedade foi silenciada pelo terror. Os partidos políticos foram proibidos, assim como todo tipo de participação política dos cidadãos. Vigorou de forma quase permanente o estado de sítio, com suspensão de direitos civis, sociais e políticos.

[3] O regime foi caracterizado pela supressão sistemática de partidos políticos e pela perseguição de dissidentes a uma extensão que era sem precedente na história de Chile. Ao todo, o regime deixou mais de 3 mil mortos ou desaparecidos, torturou milhares de prisioneiros e forçou 200 mil chilenos ao exílio.

[4] Essa doutrina, que vai virar lei em 1968, com a publicação do decreto-lei no. 314/68, tinha como objetivo principal identificar e eliminar os “inimigos internos”, ou seja, todos aqueles que questionavam e criticavam o regime estabelecido. A “segurança nacional”, todavia, veio a adquirir conotação diversa durante o período do  segundo pós-guerra, precisamente quando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) surgia no oriente como um adversário ideológico e uma ameaça real à hegemonia dos Estados Unidos da América (EUA). As origens da mudança conceitual se  encontram, portanto, diretamente vinculadas à paranoia dos policy makers americanos em face  da suposta tendência expansionista do comunismo soviético num mundo fragilizado por outra  terrível grande guerra mundial. Paranoia essa que deu início à Guerra Fria (1947-1991). A incorporação da doutrina no ordenamento jurídico veio a ocorrer apenas em 1967,  quando da elaboração do Decreto-Lei n. 314, o qual atribuiu a segurança nacional como uma  responsabilidade de todos os cidadãos (art. 1º) e a definiu como “a garantia da consecução dos  objetivos nacionais contra antagonismos tanto internos como externos” (art. 2º). Além disso,  tipificou a prevenção e a repressão contra as formas de guerra psicológica adversa e  revolucionária ou subversiva (art. 3º), formas estas que se encontravam no cerne da DSN, o que demonstra uma clara preocupação na defesa interna do país.

[5] O presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou com vetos a Lei 14.197, de 2021, que revoga a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170, de 1983), criada durante a ditadura militar. Além de revogar a LSN, o texto aprovado pelo Congresso estabelece uma série de tipos penais em defesa do Estado Democrático de Direito.

[6] Os atos institucionais eram decretos com poder de Constituição e foram utilizados pelos militares para darem legitimidade às violências e ilegalidades cometidas durante o período da Ditadura Militar. Ao todo, foram emitidos 17 atos institucionais, entre 1964 a 1969. Os Atos Institucionais são as normas elaboradas no período de 1964 a 1969, que permitiram a institucionalização e radicalização do regime militar. Os AIs, como são chamados, foram editados pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ou pelo Presidente da República, para garantir a estabilidade do regime.

[7] Ato Institucional nº 17, de 14 de outubro de 1969. Autoriza o Presidente da República a transferir para reserva, por período determinado, os militares que haja atentado ou venham a atentar contra a coesão das Forças Armadas.

[8] A partir do AI-2, os poderes do presidente foram ampliados, passando a poder decretar 180 dias de Estado de Sítio sem a aprovação prévia do Congresso Nacional. Outros artigos dessa medida também definiram eleições indiretas para presidente da República, autorizaram a intervenção na política estadual, a demissão dos funcionários públicos que não se adequassem ao novo governo e a emissão de decretos relacionados à segurança nacional.

[9] No mesmo ano, o AI-4 foi instituído para permitir a reabertura do Congresso Nacional, em recesso desde o golpe. O objetivo da abertura foi permitir a aprovação da constituição de 1967 e manter a imagem de legitimidade do regime. Nesse momento, o Congresso foi pressionado a discutir as normas com urgência (para evitar maiores debates…), sem cogitar que a possibilidade de o mandato ser cassado impedia maiores alterações ao projeto apresentado ao Congresso.

[10] 1964-1967: Humberto Castello Branco - Cearense, foi um dos líderes do golpe. General, foi transferido para a reserva no posto de marechal. Durante seu governo, de 1964 a 1967, instituiu o Serviço Nacional de Informações (SNI). Criou o Banco Central e o Banco Nacional de Habitação (BNH). Os partidos que existiam na época foram fechados. Passaram a ser permitidas apenas duas legendas: a Aliança Renovadora Nacional (Arena), governista; e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição. Castello Branco aprovou o regulamento geral do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e promulgou a Constituição de 24 de novembro de 1967, que institucionalizava a ditadura. No seu governo, foram cassados os direitos políticos de deputados, governadores, ex-presidentes e lideranças de entidades civis. Em 1967, foi aprovada a Lei de Imprensa, que limitava a liberdade de pensamento e informação e era uma expressão do caráter arbitrário do regime. Fonte: Agência Câmara de Notícias

[11] 1974-1979: General Ernesto Geisel - Gaúcho, trouxe de volta ao poder o general Golbery do Couto e Silva. Juntos, articularam um projeto de abertura "lenta, gradual e segura" rumo a uma indefinida "democracia relativa". Mas a crise econômica e a reação da "linha dura" do Exército colocariam permanentemente em cheque os planos de "distensão" imaginados por Geisel e Golbery.

O presidente fechou o Congresso em abril de 1977. Geisel foi um entusiasta da extração petrolífera no Brasil. Dirigiu a refinaria de Cubatão em 1956 e a Petrobras (1969 a 1973). Em sua gestão na presidência da Petrobras, concentrou esforços na exploração da plataforma submarina. Conseguiu acordos no exterior para a pesquisa e firmou convênios com o Iraque, o Egito e o Equador. Após o golpe de 1964, foi nomeado chefe da Casa Militar pelo presidente Castello Branco, que o encarregou de investigar denúncias de torturas em unidades militares do Nordeste. Castello o promoveu a general-de-exército em 1966 e o nomeou ministro do Supremo Tribunal Federal em 1967. Geisel foi lançado candidato à Presidência pela Arena, em 1973, e derrotou no Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1974, Ulysses Guimarães - que era o candidato do único partido legal de oposição, o MDB. Na política externa, procurou ampliar a presença brasileira na África e na Europa, evitando o alinhamento incondicional à política dos Estados Unidos. Fonte: Agência Câmara de Notícias

[12] O Pacote de Abril, como este conjunto de leis ficou conhecido, impunha uma série de normas relativas ao processo eleitoral que visavam impedir o avanço do partido de oposição ao governo militar, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), vitorioso nas eleições legislativas de 1974. A Lei nº 9.504/97, art. 107, revogou o artigo 250 do Código Eleitoral e atualmente regulamenta a propaganda eleitoral brasileira. A Lei Falcão foi seguida pelo Pacote de Abril de 1977, conjunto de leis que, dentre outras medidas, fixou mandato de 6 anos para o último presidente da ditadura.

[13]  No mesmo dia em que foi decretado, o AI-5 foi também decretado o fechamento do Congresso Nacional, sendo este reaberto somente em outubro de 1969, para a escolha do presidente general Emílio Garrastazu Médici. Na vigência desse Ato, 181 parlamentares tiveram seus mandatos cassados. Dentre esses estava o deputado Márcio Moreira Alves. Foi ele quem realizou o discurso que serviu como pavio para a decretação do AI-5. No dia anterior à decretação, o deputado incitou à população a fazer um boicote aos desfiles de 7 de setembro daquele ano, além de conclamar as moças a que se recusassem a sair ou receber visitas dos jovens oficiais e integrantes das Forças Armadas. Dos parlamentares cassados, 173 eram deputados e 8 eram senadores. Dentre eles Juscelino Kubitschek, Marcelo Nunes de Alencar e Pedro Ludovico Teixeira. Além dos deputados e senadores, em janeiro de 1969, três ministros do STF – Victor Nunes, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva – tiveram a aposentadoria compulsória decretada por meio de decreto não enumerado baseado no AI-5.

[14] Neste contexto, em 1969, como produtos do AI-5, foram criados dois órgãos ligados ao Exército: o Destacamento de Operações e Informações (DOI) e o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI). Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, esses órgãos foram uma forma de se institucionalizar a tortura. Cidadãos brasileiros, como o ex-deputado Rubens Paiva, o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho foram torturados e mortos em nome da “segurança nacional” nas dependências dos DOI-CODI.

[15] Depois da Constituição de 1988 – projeto democrático em inacabada construção –, autoritários (atores, atos e ideias) cruzaram o marco estabelecido no texto constitucional  brasileiro. E na história recente do país, tivemos o golpe de 2016 (Miguel, 2019). Não custa  lembrar: o golpe contra a presidente Dilma Rousseff arruinou o jogo democrático. De lá para cá, a palavra “golpe” não saiu mais do cenário brasileiro. É que a palavra golpe é subsidiária de medidas de exceção, o que leva ao descumprimento da Constituição, retrato assustador do caminho que temos seguido, desembocando no veto escandaloso à candidatura do ex-presidente  Lula da Silva, em 2018, por imparcialidade de Sergio Moro, na Lava Jato, incubadora de práticas desgarradas do devido processo legal, conjuntura que favoreceu a eleição de Jair Bolsonaro.

[16] Leonel Brizola (1922-2004) foi um político brasileiro, um dos principais líderes da esquerda trabalhista brasileira. Após o golpe de 1964, esteve exilado durante quinze anos, só retornando ao Brasil em 1979. Em 1958, Brizola foi eleito para o governo do Rio Grande do Sul. Foi empossado no dia 31 de janeiro de 1959. Em 1961 liderou um movimento visando garantir a posse do vice-presidente, seu cunhado João Goulart, após a renúncia do presidente Jânio Quadros. Alegando que Goulart tinha ligações com os comunistas, os militares tentaram impedir a posse. Em setembro foi promulgada a Emenda Constitucional n.º 4, que instituiu o Sistema Parlamentarista de governo no país, que limitava drasticamente os poderes do presidente. Leonel Brizola deixou o governo do Rio Grande do Sul em 31 de janeiro de 1963. Em outubro de 1962, Brizola foi eleito deputado federal pela Guanabara (atual cidade do Rio de Janeiro). Foi um dos líderes da Frente de Mobilização Popular, que pressionou o presidente João Goulart a implementar as “reformas de base”, como a agrária, tributária e bancária. Após a decretação da anistia política, em 30 de agosto de 1979, Brizola retornou ao Brasil, e se fixou no Rio de Janeiro. Em novembro, foi escolhido presidente nacional do novo PDT. Porém, o TSE concedeu a legenda petebista ao grupo de Ivete Vargas, então, Brizola e seus partidários criaram, em maio de 1980, o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em novembro de 1982 candidatou-se ao governo do Rio de Janeiro e foi eleito, sendo empossado em março de 1983. No ano seguinte engajou-se pela campanha em defesa do restabelecimento das eleições diretas para a presidência da república. Em março de 1989, Brizola foi lançado candidato à presidência do Brasil pelo PDT, a primeira eleição direta para presidente. Embora tenha saído na frente na pesquisa de intenção de voto, o ex-governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello assumiu o primeiro lugar. No segundo turno, Collor saiu vitorioso contra o segundo colocado, Luís Inácio da Silva.

[17] João Figueiredo foi um militar e político brasileiro que ficou conhecido como o último presidente do Brasil do período da Ditadura Militar. Seu governo se estendeu de 1979 e 1985, ficando marcado pelas medidas de abertura controlada promovida pelos militares e pelo fortalecimento da oposição civil aos militares. Assumiu a presidência como o sucessor de Geisel e na presidência demonstrou ser uma figura autoritária, sendo conhecido por suas declarações mal-educadas. Seu governo obteve péssimos resultados na área da economia e se encerrou como o último" governo militar após a derrota para Tancredo Neves na eleição de 1985." "A escolha dos presidentes durante a Ditadura Militar era realizada de maneira indireta, portanto sem a participação da população. Com isso, a escolha do novo presidente seria feita por um colégio eleitoral que era composto pelos membros do Congresso Nacional. O candidato escolhido por Ernesto Geisel para sucedê-lo foi mesmo João Figueiredo, escolha anunciada em 1977.

Do outro lado, concorrendo contra Figueiredo, estava o general Euler Bentes Monteiro, o indicado pela oposição consentida. O resultado foi a vitória de Figueiredo; ele obteve 355 votos contra 226 do general Euler. A eleição aconteceu em 1978, e a posse de Figueiredo se deu no dia 15 de março de 1979."

[18] Nova República, ou Sexta República Brasileira, é o período da História do Brasil que se seguiu após o fim da ditadura militar aos dias atuais. É caracterizado pela ampla democratização política do Brasil e sua estabilização econômica. Usualmente, considera-se o seu início em 1985, quando, concorrendo com o candidato situacionista Paulo Maluf, o oposicionista Tancredo Neves ganha uma eleição indireta no Colégio Eleitoral, sucedendo ao último presidente militar, João Figueiredo. Tancredo não chegou a tomar posse, vindo a falecer. Seu vice-presidente, José Sarney, assume a presidência em seu lugar. Sob seu governo é promulgada a Constituição de 1988, que institui um Estado Democrático de Direito e uma república presidencialista. Historicamente fez parte dos últimos anos do período da História Mundial conhecido como Guerra Fria, que teve seu fim após as Revoluções de 1989 e o colapso da União Soviética em 1991. A partir de então passou a fazer parte do atual período histórico, a Era da Globalização.

[19] O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declare a inconstitucionalidade de interpretações que ampliem as atribuições estabelecidas no artigo 142 da Constituição Federal, que dispõe sobre o papel e a função das Forças Armadas. O pedido foi apresentado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1045. O dispositivo estabelece que as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) se destinam à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Segundo o partido, parcela radical do bolsonarismo tem defendido uma intervenção militar em razão de um suposto estado político de coisas ilegítimo, com base em interpretação “mirabolante” do artigo. Por isso, pede que não haja possibilidade de atribuir às Forças Armadas o status de poder moderador do Brasil, vedando a ampliação de atribuições fora de previsão constitucional, principalmente relacionadas à competência de arbitrar eventuais dissensos e conflitos entre Poderes. Na ação, o PSOL requer a declaração de inconstitucionalidade de interpretações que permitam a ruptura total ou parcial do regime democrático ou a instauração de governo de exceção pelas Forças Armadas ou por civis apoiados por elas. Solicita, ainda, que a veiculação, a propagação ou o incentivo a essas interpretações não sejam protegidas pela imunidade parlamentar e que parlamentares que adotarem essas práticas sejam investigados e responsabilizados nos âmbitos político, civil, criminal e administrativo. Também há pedido de responsabilização civil, administrativa e penal de magistrados, servidores públicos e particulares na mesma situação.

[20] Como advertiu Lewandowski, a vigente Lei n. 14.197, de 2021, que incorpora ao Código Penal a punição a crimes contra o Estado Democrático de Direito, tais como o de subverter as instituições  vigentes “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. No artigo, o ministro Lewandowski também fez menção ao artigo 142 da Constituição para justificar eventual uso das Forças Armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional:  [...] e aqui cumpre registrar que não constitui excludente de culpabilidade a eventual  convocação das Forças Armadas e tropas auxiliares, com fundamentos no artigo 142 da  Lei Maior, para a ‘defesa da lei e da ordem’, quando realizada fora das hipóteses legais, cuja configuração, aliás, pode ser apreciada em momento posterior pelos órgãos competentes (Lewandowski, 2021).

[21]  Nota-se que, em 2021, com dois anos e meio de governo, já eram escancarados os tantos atos em que o presidente Jair Bolsonaro contribuiu para o abalo dos valores democráticos, a  começar pela celebração ao golpe de 1964. Não se trata, por evidente – e nem de perto – de algo  simples. O presidente celebra um regime que fechou o Congresso Nacional.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Ditadura Militar Brasileira Totalitarismo Autoritarismo Constituição Federal de 1967 Forças Armadas

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