História do Controle de Constitucionalidade
A evolução do controle de constitucionalidade no Brasil reflete o impacto das mudanças políticas e jurídicas, desde o Império até a Constituição de 1988, envolvendo a definição do papel do Supremo Tribunal Federal e a relação entre os poderes.
Resumo: A história do controle de constitucionalidade no Brasil nos encaminha a uma visão crítica sobre a realidade jurídica contemporânea. É coerente entender que a investigação da natureza histórica permite o diálogo entre as gerações passadas e presentes para ter mais ampla perspectiva da sociedade contemporânea e de sua organização política.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Controle de Constitucionalidade. História do Direito. Filosofia do Direito. Democracia.
O controle de constitucionalidade permite visualizar um dos momentos mais expressivos existentes na tensão entre o sistema político e jurídico e o acoplamento natural estrutural entre direito e política que se origina na Constituição. O modo de realização do controle de constitucionalidade é resultante de decisão política decorrente de circunstâncias políticas específicas não se traduzindo por consequência em prerrogativa peculiar à função de juiz.
Por outro viés, acolhe-se a noção de que a elaboração da história do controle de constitucionalidade precisa desmistificar a tradicional narrativa de linearidade em sua evolução legislativa, segundo a qual o controle fora introduzido com a Constituição brasileira de 1891 e com a sucessão de textos constitucionais fora ampliado e consolidado na Constituição brasileira de 1988, quando galgou sua forma mais aperfeiçoada.
Segundo a corrente historiográfica do contexto histórico, cujos expoentes no campo da política e do direito são Quentin Skinner (2010), John Pocock (2009) e Pietro Costa (2006), são analisadas as fontes históricas concernentes a cada uma das Constituições brasileiras. A narrativa histórica refletiva e alternativa àquela que atualmente hegemoniza o discurso constitucional contemporâneo.
É comum afirmar que a Constituição Política do Império brasileiro de 25 de março de 1824 não conheceu a prática de controle da constitucionalidade das leis. Esse controle não se confunde com o controle judicial que ocorreu sob a vigência do sistema constitucional imperial devido aos estreitos limites, o que permite acessar as evidências de sua existência.
A Constituição outorgada por Dom Pedro I em março de 1824 é praticamente idêntica à que também outorgou em Portugal em 1826 como Dom Pedro IV e atendeu ao pensamento constitucionalista predominante no Velho Continente no início do século XIX, a considerar que o poder provinha simultaneamente de Deus e do povo, com a ascendência Daquele, mas sem esquecer que o rei deveria atender também ao desejo dos cidadãos.
Daí se explica o título concedido a Dom Pedro: Dom Pedro I, por graça de Deus e unânime aclamação dos Povos, Imperador constitucional e Defensor perpétuo do Brasil.
Apontam-se três razões para concluir pela inexistência do controle de constitucionalidade à luz da Constituição de 1824, a saber: 1. o controle das leis era exercido pelo Legislativo, tendo em vista que a Carta do Império atribuía expressamente à Assembleia Geral a competência para interpretar as leis e para zelar na guarda da Constituição; 2. o consenso em torno de uma atuação dos juízes limitada à simples aplicação da lei; 3. a existência do Poder Moderador revestido de funções próprias de uma corte constitucional.
A Carta do Império conferiu à Assembleia Geral o poder de interpretar as leis e ainda velar na guarda da Constituição. Deve-se evitar os anacronismos, para tanto deve haver cuidados historiográficos. Doutrinadores contemporâneos como Gilmar Ferreira Mendes, Clèmerson Merlin Clève e Luís Roberto Barroso defendem a inexistência de controle de constitucionalidade conforme os conceitos de interpretação e de velar na guarda da Constituição positivados na Carta de 1824 detivessem o mesmo campo semântico atual.
Cumpre ainda sublinhar que o conceito de interpretação era extremamente complexo e multifacetado, incluindo tanto atos praticados pelo legislador quanto pelo juiz. No século XIX, se vê a conclusão segundo a qual ao juiz não cabia interpretar leis, porquanto tal poder era tolerado até certo ponto pela comunidade jurídica do Império.
Ressalte-se que o controle legislativo da constitucionalidade da lei implantado na Carta do Império se de um lado mostrou-se inoperante e permitiu uma certa promiscuidade entre o legislador ordinário e o legislador constituinte, por outro lado, não excluiu da Lei Maior o seu caráter de constituição rígida, pois distinguia os procedimentos de elaboração das leis e de emendas constitucionais.
Segundo Pimenta Bueno, que estudou a natureza da função judicial e também do ato de interpretar leis sem descurar da sensibilidade política que o tema secularmente despertava. Ao lado daquela interpretação reservada ao Legislativo, havia a interpretação judicial ou por via doutrinária, que seria feita individualmente por meio do estudo dos fundamentos da lei, a fim de chegar com segurança às suas conclusões diante da impossibilidade real de as leis preverem todas as circunstâncias dos casos disciplinados.
E consistia na faculdade que a lei deu ao juiz e que por isso ele tem de examinar o verdadeiro sentido, o preceito da lei ou dos princípios do direito e de aplicá-lo à questão por ele agitada, tal qual o compreende e sob sua responsabilidade.
Para o jurista do Império, a interpretação pelo juiz era concebida como verdadeira delegação legislativa, de forma que seu objetivo devia ser restrito ao caso concreto e controlado pelo legislador, jamais podendo fixar regra geral obrigatória para os demais juízes ou tribunais. Cinge-se a preocupação à cláusula "velar na guarda da Constituição", que conceitualmente conferia ao Legislativo a função de interpretar, observar e cumprir a Constituição. E impunha o dever de respeitá-la e fazer respeitá-la da maneira por ela estabelecida, afirmava Pimenta Bueno à luz do direito comparado. E ainda impunha o dever de examinar e de fiscalizar o fiel cumprimento da lei pelo governo, representando uma grande força contra eventual arbitrariedade do Executivo.
A referida cláusula de velar na guarda da Constituição, diferentemente da atualidade, era interpretada como prerrogativa genérica que permitia à Assembleia inspecionar e examinar se as leis eram fielmente observadas, não significando propriamente a previsão normativa para haver o exercício do controle da constitucionalidade das leis.
Noutro viés, alguns estudiosos como Continentino argumentavam que o Poder Moderador seria a causa da inexistência do controle de constitucionalidade no sistema brasileiro. Tal afirmação, contudo, carece de melhor debate.
Um simples cotejo analítico entre o “Projeto de Constituição para o Império do Brasil de 1823” elaborado pela Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império (BRASIL, 2003, Tomo II), que foi dissolvida por Dom Pedro e a Carta de 1824 (BRASIL 2017c) fragiliza tal justificativa, haja vista que no Projeto de 1823, diferentemente da Carta de 1824, não havia menção ao Poder Moderador; por outro lado, a configuração institucional do Poder Judiciário em ambos os textos era substancialmente similar (CONTINENTINO, 2015).
Em nenhum deles havia qualquer menção à função judicial de fiscalização da constitucionalidade das leis, o que implica dizer que foi adotada uma configuração tímida para o Poder Judiciário, inspirada sobretudo em Montesquieu (2011), segundo quem ao juiz cabia tão-somente a aplicação da letra da lei, sendo-lhe vedado recorrer a qualquer recurso de natureza interpretativa ou discricionária.
Ainda que coubesse ao Poder Moderador velar sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos, não fazia parte do espectro de suas atribuições exercer o controle da constitucionalidade das leis, tornando inválida e inaplicável uma lei que tenha incompatibilidade com a Constituição nos moldes atualmente existentes.
O Poder Moderador era o responsável por conservar as boas relações entre os poderes políticos e impedir eventuais abusos. Tobias Barreto (2012) não tolerava o sistema constitucional brasileiro, que em sua visão penava com os prejuízos teológicos e metafísicos.
No constitucionalismo imperial, prevalecia a imagem da própria ordem jurídico-constitucional, segundo a qual o imperador ocuparia o ápice do aparato estatal e normativo, tornando-se figura sagrada e mítica, infalivelmente voltado para realizar o interesse coletivo e o bem-estar da sociedade, de modo que a validade de leis e atos não encontraria seu limite na Constituição, mas em sua vontade sempre justa e legítima e, por isso mesmo, constitucional.
Nesse contexto político, não haveria ambiente propício ao desenvolvimento do controle judicial, já que a majestade imperial sobrepairava os demais poderes e funcionava como suprema inspeção da nação.
E com advento da Reforma constitucional, por meio da Lei 16 de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicional de 1834), que faz algumas alterações e adições à Constituição Política do Império, introduziu-se procedimento específico de tutela da Constituição de 1824, tornando-se pois inquestionável que a ordem constitucional imperial passou a abrigar a prática do controle de constitucionalidade (embora não judicial). Naquela época, atribui-se formalmente aos presidentes de Províncias e à Assembleia Geral a competência para oporem-se às leis contrárias à Constituição Imperial.
O Ato Adicional de 1834 tentou ir contra a estrutura centralizadora do governo imperial. Durante o Período Regencial várias medidas foram tomadas com o intuito de se conter as rebeliões provinciais.
A Constituição de 1824 teve apenas uma única emenda, a qual ficou conhecida como o Ato Adicional de 1834, aprovado pela Lei nº. 16 de 12 de agosto. Nos seus 32 artigos, estabeleceu algumas mudanças significativas, principalmente no que se referiu ao Capítulo V da Constituição, que definia as atribuições dos Conselhos Gerais de Província. Ele extinguiu os Conselhos Gerais das províncias e criou em seu lugar as assembleias legislativas provinciais, com poderes para legislar sobre economia, justiça, educação, entre outros.
Além disso, a cidade do Rio de Janeiro foi transformada em Município Neutro, desmembrado da Província do Rio de Janeiro, que passou a ter a sede do governo em Niterói.
Sua aprovação de certo modo está ligada aos conflitos gerados em torno da Assembleia Constituinte de 1823 e da Constituição de 1824. Naquele contexto, Dom Pedro I, sentindo as tensões políticas, resolveu dissolver a Constituinte e, pouco tempo depois, outorgar a Constituição de 1824. As tensões no âmbito do Estado daí em diante se agravaram: revoltas no nordeste, crise econômica, pressão de Portugal.
Esses fatos, aliados a outros, levaram D. Pedro I a abdicar do trono em 1831 em favor de seu filho menor, Pedro de Alcântara. A renúncia do imperador desencadeou no Brasil um dos períodos mais tensos da nossa história. Como estabelecia a Constituição Imperial no seu artigo 123, foi instituída a regência trina provisória, que depois, com o Ato, virou regência una definitiva.
O grupo político que assumiu o poder após a abdicação de Dom Pedro I era constituído principalmente pelos liberais moderados e exaltados oriundos da luta pela independência e da Constituinte de 1823. De posse do poder, passaram a propor algumas medidas que visavam fortalecer o poder das províncias, atendendo aos interesses de grupos. Os ânimos se exaltaram e vários conflitos emergiram Brasil afora. Para amenizar as tensões, a Câmara dos Deputados passou a discutir e aprovou uma lei em 12 de outubro de 1832 que autorizava a mesma a reformar a Constituição.
O objetivo era minimizar os conflitos políticos regionais gerados pela vacância do monarca, pela própria instituição das regências e pelos diversos interesses de grupos locais. Foram elaborados projetos, Câmara e Senado se desentenderam até que chegaram a um consenso, aprovando o Ato Adicional. Foi uma vitória significativa do grupo liberal.
Esse mecanismo de controle de constitucionalidade das leis provinciais tinha por fim contrabalancear a competência legislativa atribuída às Províncias por meio da criação das Assembleias Legislativas Provinciais, o que ficou posteriormente explicitado com a Lei 105 de 12 de maio de 1840, a Lei de Interpretação do Ato Adicional, que interpretou alguns artigos da Reforma Constitucional.
E com o Ato Adicional de 1834, estabeleceram-se três procedimentos distintos para o controle das leis, o que documentava a existência de tal prática institucional no tempo do Império.
Por definição política quanto à autoridade legitimada para dizer o direito em última instância não recaiu sobre os juízes ou o Poder Judiciário. A salvaguarda da higidez da Constituição fora reservada para instâncias políticas do Executivo e Legislativo.
Faz-se necessário compreender que a previsão do controle (não judicial) de constitucionalidade fora substancialmente modificada com o advento da República, adotando-se a partir de então o controle judicial na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, o que acarretou a redefinição da autoridade legitimada para dizer o direito em última instância.
A recepção do controle judicial na ordem jurídica brasileira foi o resultado de uma complexa conjuntura de fatores; jamais pode ser vista como fruto da decisão de um único homem que optara por introduzi-lo na Constituição de 1891 à semelhança do modelo norte-americano como decorrência natural da transição da Monarquia para a República. A modificação na trajetória constitucional do Brasil pode ser explicada em face da experiência político-jurídica obtida durante o Império e, além dela, das causas que ocasionaram a referida transformação histórica.
A chegada da República trouxe maior autonomia política e administrativa para os Estados (antigas Províncias), o que foi contrabalanceado com o poder atribuído ao Supremo Tribunal Federal (e aos juízes em geral) para, por meio do controle de constitucionalidade, preservar as competências administrativas e legislativas da União, bem como manter a integridade política nacional.
Portanto, foi adotado novo modelo constitucional de referência, a fonte de inspiração e de comparação dos políticos e constitucionalistas brasileiros tenderia a ser encontrada no sistema constitucional norte-americano e não mais no modelo constitucional europeu franco-ibérico. Conforme afirmou Rui Barbosa, "nossa lâmpada de segurança será o direito americano" e a "Constituição brasileira é filha dele".
O Decreto 848 de 11 de outubro de 1890, que organizou a Justiça Federal em seu artigo 386, encarregou-se de expressar a mudança no rumo do pensamento constitucional e na prática judicial brasileira ao definir os parâmetros distintos para a aplicação e a interpretação do direito.
A concepção do Poder Judiciário investido de maior protagonismo institucional foi assimilada pelo Governo Provisório, pela Comissão que elaborou o Projeto de Constituição e pelo Congresso Constituinte de 1890-1891, já que imprescindível à manutenção da nova forma de Estado (MAXIMILIANO 2005).
Parcela dos constituintes entendia que tal atribuição seria vital para assegurar o federalismo brasileiro, assim como a Suprema Corte dos Estados Unidos mantivera com firmeza o federalismo norte-americano (BRASIL 1891; BRASIL 1924).
Além do mais, muitos recordavam suas experiências concretas dos tempos imperiais; tendo em vista o aprendizado político do Império, em que as Assembleias Legislativas locais foram pródigas na edição de leis, especialmente de natureza tributária, para incrementar a própria arrecadação, usurpando a competência do Governo Central, achava-se que os novos Estados da Federação adotariam igual expediente, especialmente para incrementarem sua receita orçamentária, em detrimento dos interesses e da competência da União.
Percebe-se que houve sutil redefinição quanto à autoridade legitimada para afirmar o significado do direito em derradeira instância distinta daquela dos tempos imperiais. A propósito do novo sistema, Carlos Maximiliano (2005) anotou que o espírito do código supremo, em consonância com o direito positivo e o norte-americano, determinava que a constitucionalidade das leis e dos atos do Executivo deveria ser julgada pelo Supremo nos termos do artigo 59 §1º da Constituição.
Assim, sintonizando com os novos contornos da Constituição de 1891, sintetizou com precisão a mudança institucional por que passaria a função judicial: contemplado com a atribuição de interpretação da Constituição, inspirada na Suprema Corte dos EUA, o Poder Judiciário revelaria toda sua competência e força.
É verdade que os oposicionistas ao projeto republicano e federalista do governo revolucionário preocupavam-se com a gama de poderes que seria conferida ao STF, instituição que sofria o risco concreto de ser cooptada pelo Executivo, convertendo-se em órgão auxiliar do Presidente da República, já que lhe competia indicar unilateralmente os membros da corte.
Diversos constituintes antigovernistas manifestaram-se contra o fortalecimento institucional do STF, que se espelhava na Suprema Corte dos Estados Unidos e que rompia com a tradição monárquica do seu “antecessor”, o Supremo Tribunal de Justiça do Império.
Por essa razão, a proposta de Rui Barbosa consistente na introdução do princípio da stare decisis no sistema constitucional brasileiro acabou rejeitada pela “Comissão Especial dos 21”, criada no seio da Constituinte para avaliar o mérito do Projeto de Constituição do Governo Provisório (BRASIL 1891).
A Comissão dos 21 manifestou receio de que o STF se tornasse um órgão submisso ao chefe do Poder Executivo e, por consequência, por meio da vinculação obrigatória dos tribunais, todo o Judiciário fosse cooptado pelo Presidente da República, que indiretamente teria a autoridade da última palavra (CONTINENTINO, 2015).
Cumpre observar que o embate ocorrido na Constituinte de 1890-1891 e que a construção da competência judicial do controle de constitucionalidade resultante de cálculo político relativamente controlável, de modo que não se pode entendê-lo tal qual tradicionalmente se concebe como resultante de uma atribuição inerente e natural do Poder Judiciário (Pontes de Miranda, 1932).
Ocorreu a redefinição da autoridade legitimada para dizer o direito em última instância, estabelecendo-se como marco fundamental a ensejar grande ruptura na cultura jurídica brasileira.
E, de início, a prática do controle judicial, ainda que expressa e constitucionalmente autorizada, suscitou questionamentos diversos, sujeitando inclusive juízes a processos criminais, a exemplo dos "crimes de hermenêutica" (Repolês, 2010), o que permite concluir, principalmente em comparação com outras democracias onde historicamente não foi acolhido esse modelo (como, por exemplo, Inglaterra e França), que o judicial review decorre principalmente de uma decisão política fundamental em torno da definição da autoridade legitimada para dizer a última palavra. Não constitui, pois, conditio sine qua non à existência de um sistema constitucional democrático e republicano.
A República brasileira tinha o sonho de institucionalizar o federalismo no Brasil, operou essa mudança de autoridade. Foi necessário, ipso facto, reduzir o poder do Congresso Nacional, de modo que o artigo 15 da Constituição do Império, que atribuía à Assembleia Geral poderes amplos, inclusive o de interpretar as leis, não foi reproduzido na Constituição de 1891 (Cavalcanti, 2002). A competência de interpretar as leis e a Constituição foi implicitamente transferida ao Poder Judiciário. O STF então surgira fortalecido.
A Constituição brasileira de 1934 veio a inaugurar um período após o fim da República Velha e quanto à formação de controle de constitucionalidade, também se caracterizou pela cautela com que se cuidou de poderes e competências do Supremo Tribunal Federal.
Em verdade, a República Velha abandonou o padrão francês e acolheu o modelo estadunidense, tal qual fizeram os outros países latinos. Assim, a República Velha teve a honra de introduzir em nosso sistema o controle judicial de constitucionalidade como herança do padrão norte-americano de organização de poder.
Existia entre os constituintes um sentimento refratário à atribuição de maior envergadura institucional ao STF, o que influenciou sua estrutura. O momento histórico é relevante para entender a engenharia constitucional de 1934, pois a formatação da Corte Suprema guarda íntima relação com os patamares democráticos do Estado de Direito.
Recordemos a instabilidade política vivenciada em nosso país nos idos da década de 1920 e que se tornou crítica com a Revolução de 1930, a qual, acrescida com maior protagonismo do STF no âmbito político através da denominada "doutrina habeas corpus", induziu a formação de um refreamento institucional que condicionou significativas alterações ocorridas no Judiciário brasileiro, suspeitando-se até de vingança contra o STF por haver decisões contrárias aos revolucionários da década de 1920-30.
Arthur Bernardes, que governou o país de 1922 a 1926, sempre em regime de estado de sítio, providenciou a Emenda de 5 de setembro de 1926, dando ao STF o poder de dirimir os conflitos entre os juízes federais e dos Estados, bem como conhecer dos recursos das decisões dos juízes e tribunais federais, cabendo a estes processar e julgar as causas em que alguma das partes fundar a ação ou a defesa em disposição da Constituição Federal. No entanto, tais alterações tiveram pouco tempo de vida útil, pois logo em 1930 veio a denominada Revolução Liberal, que levou Getúlio Vargas ao poder.
Depois da Revolução de 1930, o Estado iniciou sua jornada em direção ao autoritarismo, que culminou com a decretação do Estado Novo em 1937. Quando vários expedientes foram usados, que sem dúvida contribuíram para o enfraquecimento do Poder Legislativo e do Judiciário, particularmente da Suprema Corte, o que terminou por refletir na configuração das Constituições brasileiras de 1934 e 1937.
Explica-se adequadamente pelo papel do Senado Federal na Constituição de 1934, que fora transformado em Conselho Federal com atribuições bastante limitadas, dentre estas a de exercer a função de calibração institucional.
A nova função incluía o sistema de controle de constitucionalidade, justificado pela larga experiência acumulada com o controle difuso já previsto na Constituição de 1891.
Verificava-se, de um lado, que o modelo de controle judicial (difuso/incidental) das leis era falho porque os efeitos das decisões do STF eram limitados às partes litigantes do processo e não obrigavam aos demais órgãos. Identificou-se que o modelo de controle institucionalizado em 1891 não tinha o condão de reduzir o volume de processos no STF e no Judiciário em geral, nem tornar a justiça mais célere, menos cara e efetiva na tutela dos direitos dos cidadãos. A decisão do STF configuraria uma espécie de voto sem força obrigatória ou de força puramente platônica.
Seria imprescindível instituir-se algum procedimento que fizesse com que a declaração de inconstitucionalidade se revestisse de efeitos contra todos os destinatários da lei.
De outro viés, confiar ao STF a competência para julgar nulas as leis com eficácia erga omnes ensejaria o grave risco de criar-se uma "ditadura judiciária no Brasil", conforme expressou a opinião do constituinte Nilo de Alvarenga, ou uma República Judiciária no Brasil, conforme disse Oswaldo Aranha. A solução encontrada fora conferir ao Conselho Federal (antigo Senado Federal) a prerrogativa de estender os efeitos do STF quando assim julgasse conveniente e oportuno.
Porém, anteriormente à definição, chegou-se até a considerar a criação de um tribunal político, à semelhança da Corte Constitucional austríaca, como alternativa aos inconvenientes do judiciarismo e de eventual ditadura do Judiciário. A proposta inovadora, contudo, cedeu à força da tradição do sistema difuso, então em vigor há mais de quarenta anos.
Frise-se que na Constituição de 1934 o Conselho Federal era órgão colaborador da Câmara dos Deputados no exercício do Poder Legislativo, além de exercer o papel de coordenação dos Poderes, o que ajuda a compreender o porquê de haver sido o órgão escolhido para exercer o juízo político consistente na generalização de efeitos da decisão de inconstitucionalidade proferida pela Corte Suprema. Eis que estava presente o fim de evitar o temido expansionismo judicial, impondo-se o contrabalanceamento político à força do direito, que poderia exceder-se com a gama de poderes concentrados na competência do Senado.
O entendimento de que as decisões do STF deveriam ter eficácia inter partes prevaleceu no contexto de 1891 e de 1934, ocasionando novamente a rejeição da adoção do princípio do stare decisis. E houve a decisão política fundamental de não se atribuir à Corte Suprema tamanho poder ao ponto de autorizá-la, decidindo casos concretos individuais, proferir decisões com efeitos erga omnes que valessem igualmente para todos os destinatários da lei, arriscando-se a implantar a indesejável juristocracia.
Pela mesma razão, na Constituinte de 1933, não se aceitou a proposta de Themístocles Cavalcanti de se reservar ao STF a função de julgar em tese a constitucionalidade das leis, revogando-as. De acordo com Afrânio de Melo Franco, a previsão mais danosa e perigosa faculdade ensejaria a subversão do regime da separação dos poderes e a instituição de uma ditadura do Poder Judiciário no Brasil.
A competência do Senado, como instância adequada para realizar o juízo de generalização dos efeitos da decisão do STF, nesse caso, consumou a própria negação do princípio da stare decisis em prol da manutenção da tradição institucional do STF de sempre decidir em concreto, bem como a rejeição à atribuição de julgar em abstrato a constitucionalidade das leis.
Realmente, a paradoxal relação existente entre a política e o direito influenciou de forma contundente a engenharia institucional do controle de constitucionalidade e a definição da autoridade legitimada para dizer o significado do direito em última instância.
A hesitação por parte dos constituintes de empoderar o Supremo Tribunal Federal, que se tornou uma das questões fundamentais debatidas ao longo processo de elaboração da Constituição de 1934, reflete como a configuração do controle está intrinsecamente ligada ao contexto político de cada momento em que se desenvolvem distintas compreensões sobre a relação e o funcionamento de cada um dos poderes.
A Polaca, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, que foi outorgada por Getúlio Vargas ao instituir o Estado Novo, trouxe significativas bases à hipertrofia do Executivo e ao crescente autoritarismo governamental, a pretexto de realizar "salvação nacional", abalando o caráter democrático do Estado de Direito.
O jurista responsável, Francisco Campos, pela elaboração da referida Carta ao longo de vários escritos e discursos proferidos, esforçou-se por ressignificar o conceito de democracia, tentando mostrar que o Estado Novo pretendia realizar o ideal de uma democracia substancial, em que o bem comum constituiria o grande valor a ser promovido.
O que acarretou a limitação de direitos individuais ou de prerrogativas dos demais poderes, especialmente do Poder Legislativo, o interesse coletivo e a identidade nacional deveriam prevalecer sobre os interesses individuais (e egoísticos) de cada um.
O STF também sofreu sensível impacto da mudança de regime em face da Carta de 1937, que previu que as decisões de inconstitucionalidade poderiam ser revistas pelo Parlamento, mantendo-se a validade da lei, não obstante o julgamento desfavorável do STF, o que na prática equivalia à redefinição da competência da autoridade legitimada para dizer o significado do direito em última instância.
Eis o teor do art. 96 da Polaca: “Art. 96. Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República. Parágrafo único. No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República.
Fica evidente o viés autoritário do governo instalado, já que o poder de interpretar a Constituição envolvia, em certo modo, o poder de reformular, conforme justificava o idealizador do novel instituto Francisco Campos.
O contexto político-jurídico era marcadamente centralizador, aquele mecanismo institucional, que em outras realidades constitucionais é resultante de uma decisão política consensual e legítima, assumiu nítida feição antidemocrática.
Porque o Parlamento fora dissolvido pelo então Presidente da República, fora direta e pessoalmente exercida pelo próprio Presidente. Não obstante o discurso favorável à soberania popular, o poder de reverter as decisões da Corte Suprema se transformou em potencial instrumento de cooptação e de controle da Corte.
Em verdade, ainda que não se tenha plena dimensão de sua repercussão na prática institucional ao longo do Estado Novo, havendo, porém, notícia de que o Presidente da República se utilizou até do poder conferido pela Carta Constitucional para reverter a decisão do STF, malgrado as reações contrárias (Bittencourt, 1949).
E tal experiência permitiu concluir que, em nosso país, o caráter democrático do parágrafo único da Carta de 1937 foi instrumentalizado em prol da concentração ilegítima de poder. Na opinião de Paulo Bonavides (2012), a Polaca gerou eclipse na evolução do controle de constitucionalidade ao sujeitar a decisão judicial de inconstitucionalidade ao reexame do Parlamento.
Ao fechar o Congresso Nacional e ainda assumir inteiramente suas atribuições, o Presidente da República desvirtuou completamente o singular procedimento de controle de constitucionalidade previsto na Carta de 1937. Destarte, coube-lhe a competência de rediscutir e de alterar as decisões do STF, o que evidenciou sua influência e hegemonia sobre os demais poderes.
Duas conclusões quanto à Polaca se podem ter, a saber: Em primeiro lugar, ela acarretou um retrocesso em relação ao institucional arranjo de defesa constitucional até então existente (1891 e 1934), já que, contrariando a lógica historicamente consolidada à luz da separação dos poderes, promoveu excessiva centralização de poderes no Executivo, que foi contemplado com a competência de criar, modificar, revogar e interpretar as leis, inclusive para reafirmar a validade e a eficácia de lei considerada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.
Em tempos de autoritarismo, nenhum órgão, mesmo os do Judiciário, que são independentes e, em princípio, mais infensos à volatividade da política, consegue exitosa e duramente conter as violações ao direito perpetradas pelos governantes e pela política.
Com o término da Segunda Guerra Mundial, o Brasil, que aderiu aos Aliados por pressão norte-americana. E assim o discurso de sustentação do Estado Novo perdeu sensivelmente sua força. E então Getúlio Vargas foi pressionado pelo fim do regime e acabou deposto da Presidência da República antes do término do seu mandato.
Iniciou-se o período de transição de volta à democracia e expressiva instabilidade política, marcado pelo suicídio de um Presidente, por deposições presidenciais, por mudanças de regime de governo (presidencialismo e parlamentarismo) que chegou ao fim com o golpe de 1964.
Getúlio, o “pai dos pobres”, havia morrido. O povo estava de luto, mas vigilante. Nas ruas, deixava claro que não aceitaria ver os inimigos do presidente que o haviam levado à morte dando novamente as cartas no Brasil.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 surgiu, portanto, em momento de muita efervescência política em torno da redemocratização.
O controle de constitucionalidade na Constituição de 1946 se deu num caráter político-liberal descentralizador em reação ao centralismo da Constituição de 1937, federativo, garantidor dos direitos individuais, repristinando as inovações trazidas pela Constituição de 1934, sem permitir, no entanto, a solução das crises institucionais que se tornaram constantes.
O caráter liberal da Constituição de 1946 é resultante de consenso entre as diversas correntes ideológicas que podiam se manifestar logo após o término da Segunda Guerra Mundial e simultaneamente impressionadas pelo poderio presidencialista norte-americano e ainda pelas lições da Europa continental parlamentarista.
Relativamente à tradição histórica constitucional brasileira, a nova Carta foi fruto de uma síntese das garantias individuais previstas na Constituição de 1891 e das conquistas sociais consagradas nas Constituições de 1934 e de 1937 (ANDRADE 1986), bem como do esforço de instituir mecanismos efetivos de limitação ao arbítrio, dada a experiência política autoritária antecedente (BALEEIRO 1968). Havia largo consenso sobre a necessidade de imposição de rígidas restrições ao Poder Executivo.
Em razão do Poder Judiciário, procurou-se livrá-lo do jugo do Executivo, restabelecendo as garantias da independência e da inamovibilidade dos juízes, que foram substancialmente relativizadas, e restaurar as prerrogativas de autogestão, a exemplo da escolha de seus presidentes e vice-presidentes, a qual, na ordem constitucional anterior, fora tomada e exercida pelo Chefe do Poder Executivo.
De igual forma, eliminou-se a atribuição da Câmara dos Deputados de manter a validade de ato normativo julgado inconstitucional (vide parágrafo único do artigo 96 da Carta de 1937), reafirmando-se a competência soberana do STF.
Durante quase vinte anos, o STF, de seu funcionamento sob a vigência da Constituição de 1946, passou por grave crise política, econômica e jurídica. E a administração da justiça vivenciou grande desafio de lidar com processos que o assolavam. Até se cogitou criar um tribunal de reclamações e aumentar o número de ministros integrantes do STF.
E similar ao instituto introduzido no tempo do ordenamento jurídico do Império, seguindo o constitucionalismo francês e lusitano, conferir ao STF a prerrogativa de editar "assentos", ou seja, autorizar que suas decisões possuam força de lei com eficácia geral e contra todos, mas tal opinião não prevaleceu. Institui-se o Tribunal Federal de Recursos, que fora contemplado com diversas atribuições recursais, reservando-se ao STF a apreciação exclusiva das questões federativas e constitucionais.
A arquitetura institucional da redemocratização brasileira tornou o STF um órgão fundamental à efetivação do novo regime democrático brasileiro. Havia consciência de seu poderoso papel institucional como baluarte da democracia e como intérprete último da Constituição, buscando-se assim restaurar-lhe a independência outrora perdida, bem como revesti-lo de garantias que não mais possibilitasse sua submissão ao Poder Executivo.
No entanto, infelizmente, outra ruptura ocorreria na ordem constitucional brasileira, o que veio novamente alterar o equilíbrio de forças entre os Poderes constituídos e assim trazer nova mudança em torno da autoridade legitimidade para dizer o direito em última instância.
Adveio um autoritarismo constitucional (1964, 1967 e 1969), que foi derivado da tomada do poder pelos militares, feito em 31 de março de 1964, uma ordem de cunho centralizador que relembrava os tempos do Estado Novo, firmando-se no cenário político brasileiro. A hipertrofia do Executivo foi sendo esquadrinhada através de diversos atos normativos que se seguiram à destituição do governo de João Goulart.
Foi editado o Ato Institucional nº 1 (AI 1), de 9 de abril de 1964, que “dispõe sobre a manutenção da Constituição Federal de 1946 (...) com as modificações introduzidas pelo poder constituinte originário da revolução vitoriosa” que estabeleceu diretrizes iniciais do novo governo e suspendeu diversos direitos e garantias constitucionais e políticos.
De início, o Supremo Tribunal Federal ainda conseguiu exercer sua atividade com independência e altivez, consoante se pode observar por alguns julgamentos de grande repercussão, a exemplo do habeas corpus do professor Sérgio Cidade de Resende e dos governadores Miguel Arraes de Pernambuco e Mauro Borges de Goiás (GODOY 2008; COSTA 2006).
No entanto, suas decisões começaram a desagradar o comando revolucionário, de modo que foram apresentadas propostas legislativas com o objetivo de “adequar” o STF e o Poder Judiciário aos novos tempos (KOERNER 2013; COSTA 2006).
As modificações mais significativas foram aquelas promovidas pelo Ato Institucional nº 2 (AI 2), de 27 de outubro de 1965, que “mantém a Constituição Federal de 1946, as Constituições Estaduais e respectivas Emendas”, e pela Emenda Constitucional nº 16 (EC 16), de 26 de novembro de 1965, que “altera dispositivos constitucionais referentes ao Poder Judiciário”.
O AI 2, entre outras intervenções, ampliou o número de membros do STF de onze para dezesseis, suspendeu garantias de ministros e impediu a apreciação judicial de atos governamentais baseados na “legislação revolucionária” pós-1964.
Essas alterações foram assimiladas como uma inaceitável interferência do Poder Executivo no Judiciário (COSTA 2006), gerando repúdio por parte dos ministros do STF.
A EC 16/1965, por sua vez, deu continuidade às modificações promovidas pelo AI 2 e atribuiu ao Supremo a competência de julgar a representação de inconstitucionalidade dos atos dos poderes federais, o que, segundo Aliomar Baleeiro (1968), configurou uma “atribuição política delicada no equilíbrio dos outros dois Poderes”.
Com efeito, a partir da EC 16/1965 foram lançadas as bases para a fiscalização concentrada e abstrata da constitucionalidade dos atos normativos, a qual desde então tornou-se a mais grave e sensível competência do STF.
O sistema de controle brasileiro, que se caracterizava como “difuso/concreto” por espelhar-se preponderantemente na tradição norte-americana do judicial review, começou a ser enquadrado como “misto”, ao haver incorporado elementos da tradição austríaca do controle “concentrado/abstrato”.
Do ponto de vista jurídico-formal, a nova configuração do sistema de controle não mais sofreu substancial alteração até o advento da Constituição de1988, eis que tanto a Constituição brasileira de 1967 quanto a Emenda Constitucional nª1, de 17 de outubro de 1969 (CF/1969), que edita novo texto da Constituição anterior e que mantiveram, em linhas gerais, a estrutura desenhada sob a vigência da Constituição brasileira de 1946, com as modificações realizadas pelo AI 2 e pela EC 16/1965.
Entretanto, deve-se ressaltar que a garantia do controle de constitucionalidade como instrumento de efetiva garantia dos direitos fundamentais e do regime federalista fora sensivelmente atingida, fragilizando-a em face da característica desse período, em que se deu grande concentração de poderes no Executivo, enquanto o Judiciário e Legislativo foram paulatinamente despojados de suas atribuições institucionais mínimas para que pudessem resistir aos desmandos governamentais.
Nesse contexto, o AI-2 e a EC 16/1965 serviram à consolidação do governo autoritário, onde se buscou a centralização de poder e a eliminação de focos internos de resistência. E as Cartas de 1967 e de 1969, a seu turno, davam continuidade ao totalitarismo em consonância com o regime antidemocrático.
Apesar de haver a ampliação formal da competência do STF, em particular com a inserção do controle concentrado nos termos da EC 16/1965, por força do contexto histórico, o STF não foi definido como sendo a autoridade legitimada para dizer o significado do direito em última instância, nem atuou como garantidor das liberdades constitucionais, funcionando especificamente como instrumento para dar aval ao regime autoritário instaurado e que perdurou por mais de duas décadas.
Cumpre afirmar que o controle de constitucionalidade não é prerrogativa inerente à função judicial. Apesar de se concordar que seja o Poder Judiciário o poder mais adequado para realizar a defesa da Constituição, isso não autoriza afirmar a regra de que o Judiciário teria a função precípua de fazê-lo. A análise dos textos constitucionais e seus respectivos avanços e retrocessos demonstra que a história constitucional brasileira não é resultante de uma evolução linear e ascendente. Aliás, a Constituição de 1967 manteve o sistema de fiscalização estruturado ao longo das Constituições que lhe antecederam.
E pouco alterou a configuração instituída pela EC 16/1965, salvo em relação a dois pontos, a saber: eliminou a previsão anteriormente existente de interposição de representação de inconstitucionalidade genérica em âmbito estadual; transferiu para o Presidente da República a competência para suspender o ato estadual declarado inconstitucional pelo STF no âmbito da representação interventiva. Ainda mais tímida, a Constituição de 1969 limitou-se a admitir a instituição pelos Estados.
Todo o empenho durante o processo constituinte fora relativo, e a prática institucional e os costumes constitucionais poderão ou não confirmar as expectativas políticas veiculadas em cada uma das Constituintes.
Convém abordar a classificação do controle de constitucionalidade.
O controle de constitucionalidade pode ser classificado por meio de diversos critérios. A seguir serão apresentados cada um desses critérios e os diferentes tipos de controle de constitucionalidade que se identificam a partir deles:
Quanto à natureza do órgão julgador: a) Político: exercido por órgãos que não fazem parte do Poder Judiciário. O controle de constitucionalidade da França, por exemplo, é tipicamente político. b) Judicial: exercido por órgãos do Poder Judiciário, modelo adotado pela grande maioria dos países, inclusive é aquele adotado pelo Brasil.
Quanto ao momento em que é exercido: a) Preventivo: é exercido antes do aperfeiçoamento do ato ou da edição da lei tidos como inconstitucionais. Um exemplo disso no Brasil seria o veto jurídico do Presidente ou da Presidente da República. b) Repressivo: é exercido após o aperfeiçoamento do ato ou edição da lei tida como inconstitucional. Ambos os tipos podem ocorrer no Brasil.
Quanto ao número de órgãos: a) Difuso (americano): é o modelo americano que pode ser exercido por todo e qualquer magistrado, sendo este competente para declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos. Foi criado a partir do mencionado caso Marbury v. Madison. b) Concentrado (europeu): é o modelo segundo o qual um único órgão tem competência para declarar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade de uma lei ou ato normativo. Também é conhecido como sistema das cortes constitucionais, foi inventado pelo jurista Hans Kelsen, anteriormente mencionado na Alemanha no século XX, por isso também é conhecido como controle alemão de constitucionalidade, controle europeu ou controle austríaco. Ambos os tipos ocorrem no Brasil.
Eis que cabe reafirmar que a atual configuração do sistema de controle de constitucionalidade é mais condicionada pela história institucional e pela política do que propriamente por ontologia jurídica peculiar das funções inerentes de cada um dos poderes políticos.
A Constituição Federal brasileira de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso ao ampliar de forma marcante a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103), permitindo que praticamente todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas.
A seletividade do STF no controle de constitucionalidade é uma realidade que pode ser observada em diversos aspectos da atuação da Corte. Para garantir a efetividade do controle de constitucionalidade e a proteção dos direitos fundamentais, é importante que a Corte adote uma postura mais equilibrada e consistente na escolha e julgamento dos casos. Ademais, faz-se necessário que o STF exerça o controle de constitucionalidade de forma independente e imparcial, sem se deixar influenciar por fatores externos ou pressões políticas.
Referências.
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