Gestão da prova nos sistemas processuais penais
Caso a gestão de prova no processo penal se concentrar nas mãos do julgador, enquadrar-se-ia no processo inquisitorial, todavia, se a gestão estiver sob a iniciativa das partes, predomina o processo acusatório. A mera separação formal entre as fases pré-processuais, quando vige mitigação do contraditório e, a fase processual onde além da separação de funções de acusar, julgar e defender durante a persecução criminal disfarçariam o real espírito do sistema persecutório. Enfatiza-se que a gestão da prova deve estar nas mãos das partes (mais especificamente, a carga probatória está inteiramente nas mãos do acusador), assegurando-se que o juiz não terá iniciativa probatória, mantendo-se assim suprapartes e preservando sua imparcialidade
O vocábulo "prova"
do latim proba possui diversos significados. Sendo polissêmica e tanto
poderá ser a atividade probatória, meio de prova ou resultado probatório. A
mutabilidade e dinâmica da palavra prova, que, em processo penal, passa a
representar tudo o que diz respeito a esta, mesmo os meios empregados na
demonstração de fatos, a atividade usada pelas partes para levar ao processo,
os meios de prova, bem como o próprio resultado do procedimento probatório.
Prova, em processo penal,
passou a representar tudo o que a ela pertinente, isto é, os meios empregados
na demonstração de fatos ou do thema probandum, a atividade utilizada
pelas partes para levar ao processo os meios de prova, bem como o próprio
resultado do procedimento probatório, isto é, o convencimento exteriorizado
pelo julgador.
Contudo, distinguem-se
elementos, fontes, meios e metodologias de busca da prova. Inegável a sua frequente
mutabilidade e dinamicidade.
Gustavo Badaró (2008) atenta
para os diversos significados do termo prova: como atividade probatória que
significa o conjunto de atos praticados para a verificação de um fato. É a
atividade desenvolvida pelas partes e, subsidiariamente, pelo juiz, na
reconstrução histórica dos fatos (vide o artigo 156 CPP). A prova também pode
ser considerada meio de prova, instrumento pelo qual se introduzem no processo
as fontes probatórias.
Nesse sentido, se cogita em
prova testemunhal, prova pericial etc. Finalmente, a prova pode ser
identificada como resultado probatório, isto é, o convencimento que os meios de prova geram no juiz e nas partes. Nesse
sentido, por exemplo, o art. 312 do CPP
se refere à “prova da existência do crime”. (BADARÓ, 2008).
Prova é “elemento instrumental
para que as partes influam na convicção
do juiz e o meio de que este se serve para averiguar sobre os fatos em que as partes fundamentam suas alegações”. prova é
“o somatório de elementos que formam a convicção
do juiz acerca da existência ou da inexistência dos fatos relevantes à causa”
Mandarino (2016) escreve que é
consenso que a “prova assume a função de ser um instrumento para fundamentar racionalmente uma
escolha da versão dos fatos que se possa definir como verdadeira”.
A prova tem natureza de
direito público subjetivo, porquanto é um direito efetivamente garantido ao indivíduo pela lei. Noutro modo,
a prova “apresenta-se como um direito subjetivo
público ou cívico, em que fica assegurada a oportunidade de desenvolvimento da causa para demonstrarem suas afirmações.
Trata-se de um direito condicionado à garantia do devido processo legal” .
A função da prova é trazer ao
processo os fatos e as circunstâncias do passado penalmente relevante, ou seja, do fato
criminoso objeto de apuração, pois “são os objetos mediante os quais o juiz obtém as experiências
que lhe servem para julgar”
Já se admite que não é função
da prova trazer ao processo o retrato fiel do fato delitivo – no que muitos
ainda chamam de verdade real e cujas consequências para a efetivação do sistema acusatório ainda serão discutidas no
presente trabalho –, pois a prova também está sujeita à dialética processual, sendo
instrumento de argumentação, na busca do
convencimento do julgador:
Através da prova são
introduzidos no processo penal os fatos e as circunstâncias de uma determinada infração
criminal (função cognoscitiva reconstrutiva) e tudo o que importar ao
convencimento do julgador (função persuasiva).
Afasta-se a prima facie a
funcionalidade do encontro da verdade natural,
direcionamento centralizado pelo modelo inquisitorial – um compromisso do inquisidor, uma justificativa
do agir ex officio e um reflexo na falta
de regulamentação da metodologia probatória e dos meios de prova.
Da funcionalidade da busca e
do encontro da verdade natural evolui-se à funcionalidade persuasiva-argumentativa e
persuasiva-dialética no espaço público
do processo, bem como à obtenção do convencimento do julgador, constituindo-se em prova o produto que passou
pelo substrato argumentativo. (GIACOMOLLI,
2016).
Os princípios da verdade
formal e real[1]
atuam em campos diferentes, não sendo um oposto ao outro. A verdade formal
delimita a prova utilizada na racionalização da decisão e a verdade real
permite trazer aos autos provas independentemente da vontade ou iniciativa das
partes.
Assim, a verdade formal e a
real, apesar de não serem objetos de grandes evoluções em seu conteúdo, têm
relacionamento harmonioso — ao contrário do outrora afirmado pela doutrina — e
asseguram a sua grande importância no âmbito penal e cível, sendo tal noção
interessante para o conhecimento do operador do Direito.
Os momentos da aplicação
desses princípios, não são os mesmos, também impedindo qualquer colisão entre
eles, pois enquanto a verdade real é utilizada nos momentos instrutórios do
processo, a verdade formal é utilizada nos momentos decisórios.
Muitos doutrinadores mais
antigos que a verdade real seria própria do Direito Processual Penal e a
verdade formal, do Processo Civil. Isso provavelmente já foi tido como verdade,
por conta do caráter eminentemente publicista dos direitos tratados no ramo
penal e a disponibilidade de que gozam boa parte dos direitos da esfera cível.
Entretanto, aquela afirmação
não mais corresponde à verdade e, dentre os motivos, podemos lembrar que o
exemplo do parágrafo anterior sugere que a verdade formal deve,
indubitavelmente, ser aplicada no Direito Processual Penal.
E, ainda, o fato de a verdade
real estar invadido cada vez mais o âmbito do Processo Civil, fenômeno que se
iniciou a partir dos direitos civis indisponíveis e se ampliam continuamente,
cf. demonstra a jurisprudência:
PROCESSO CIVIL. Agravo no Recurso
Especial. Iniciativa probatória do juiz. Perícia determinada de ofício.
Possibilidade. Mitigação do princípio da demanda. Precedentes. — Os juízos de
primeiro e segundo graus de jurisdição, sem violação ao princípio da demanda,
podem determinar as provas que lhes aprouverem, a fim de firmar seu juízo de
livre convicção motivado, diante do que expõe o art. 130 do CPC. — A iniciativa
probatória do magistrado, em busca da verdade real, com realização de provas de
ofício, é amplíssima, porque é feita no interesse público de efetividade da
Justiça. (AgRg no REsp 738.576/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T, j. em
18.08.2005, DJ 12.09.2005, p. 330)
O texto constitucional
brasileiro vigente disciplina a prova penal não somente para implicitamente
apontá-la coo direito subjetivo das partes, mas quando afirma que a todos, em
processo judicial ou administrativo, são asseguradas a ampla defesa e o
contraditório, mas também porque afirma expressamente ser vedada a prova obtida
por meio ilícito, conforme seu artigo 5º, inciso LVI.
O Código de Processo Penal
brasileiro depois da reforma de 2008 delimita o conceito de prova ilícita em
seu artigo 157 como sendo as obtidas em violação de normas constitucionais ou
legais.
Grande ponto de interesse é a
discussão sobre o ônus probatório, isto é, sobre a quem incumbe o dever de provar.
Já o Código de Processo civil
brasileiro afirma que o ônus da prova incumbe ao autor quanto ao fato
constitutivo de seu direito e, ao réu, quanto à existência de fato impeditivo,
modificativo ou extintivo do autor.
Nota-se, contudo, que no
processo penal em face do princípio da não culpabilidade, contido no vigente
texto constitucional brasileiro, o ônus probatório é da acusação, pois é quem
imputa a responsabilidade criminal ao réu, que não está obrigado a provar sua
inocência, tendo em vista ser a única e a maior presunção consagrada
constitucionalmente, que é a presunção de inocência do réu.
Frise-se que afirmar que o
réu, no processo penal, não está obrigado a provar sua inocência, obviamente,
não significa afirmar que este não poderá fazê-lo, afinal, é função da prova
formar o convencimento do julgador.
Portanto, tal diferença no
tratamento do ônus probatório em sede de processo civil e de processo penal
pode ser assim resumida:
"Diferentemente
do processo civil, no processo penal não há distribuição ou repartição do encargo probatório. A
demonstração da responsabilidade criminal
do imputado é estabelecida de forma categórica, ou seja, é de quem afirma, ou seja, da acusação (art. 156 do
CPP). O acusado, em razão do art. 5º,
LVII, do CPP, não está obrigado a demonstrar sua inocência, afirmada ou não em juízo. É da acusação a carga da
persuasão da prova, do convencimento do
julgador da culpabilidade do imputado”.
“Contudo, no espaço público e dialético do processo, a defesa poderá
produzir prova e argumentar em favor de
sua inocência, tornando crível a sua argumentação, inclusive criando a dúvida razoável, a qual conduzirá à absolvição
ou à diminuição da imputação acusatória”.
“Portanto, a delimitação do
ônus probatório estabelece regras de instrução
(encargo da prova é da acusação) e de julgamento (in dubio pro reo). (GIACOMOLLI, 2016)."
O nobre guardião da
Constituição Federal brasileira e, ipso facto, também guardião do sistema
acusatório, o Supremo Tribunal Federal faz constar no
Acórdão do julgamento do habeas
corpus 88875/AM, de relatoria do Ministro Celso de Mello, que, no processo
penal, o ônus da prova cabe exclusivamente a quem acusa.
O relator, Ministro Celso de
Mello, faz ainda questão de pontuar que o ônus da prova a ser suportado pela acusação é resultado do
Estado Democrático de Direito, rememorando – como é de sua característica, rememorar – que
o sistema de direito positivo brasileiro já conferiu ao réu o ônus de provar sua inocência, mas em
contexto de regime autoritário, que foi o Estado Novo.
(...) AS ACUSAÇÕES PENAIS NÃO SE PRESUMEM
PROVADAS: O ÔNUS DA PROVA INCUMBE,
EXCLUSIVAMENTE, A QUEM ACUSA. - Nenhuma acusação penal se presume provada. Não
compete, ao réu, demonstrar a sua
inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de
qualquer dúvida razoável, a culpabilidade
do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento
histórico do processo político brasileiro
(Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a
obrigação de o acusado provar a sua própria
inocência (Decreto-Lei n. 88, de 20/12/37, art. 20, n. 5). BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. HC 88875 /AM. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello.
Julgado em 07/12/2010. Publicado em
DJe-051 12.03.2012.
A quem compete o ônus
probatório no processo penal brasileiro, caberá doravante discutir a iniciativa
probatória judicial, tema cada vez mais profundo e complexo.
A chamada teoria geral do
processo, instrumentalistas, ou mesmo
notórios civilistas, a exemplo de José Roberto dos Santos Bedaque, Professor
Titular de Direito Processual Civil da
Universidade de São Paulo (USP), costumam ver o tema com menos ressalvas do que os processualistas
penais da nova geração.
Bedaque (2012), ao tratar dos
poderes instrutórios do juiz, anota não se tratar de “uma atividade substitutiva de qualquer das
partes, em detrimento de outras”, e conclui: Quem considera a efetividade do processo um
dos mais eficazes fatores de harmonia
social, não pode concordar com tal orientação, de inspiração exageradamente positivista.
O raciocínio deve ser feito de
maneira exatamente oposta àquela
desenvolvida pelos processualistas tradicionais. As regras referentes à distribuição do ônus da prova
devem ser levadas em conta pelo juiz
apenas e tão somente no momento de decidir. São regras de julgamento, ou seja, destinam-se a fornecer ao julgador
meios de proferir a decisão, quando
os fatos não restaram
suficientemente provados. Antes disso, não tem ele de se preocupar com as normas de distribuição do
ônus da prova, podendo e devendo esgotar
os meios possíveis, a fim de proferir julgamento que retrate a realidade fática e represente a atuação da
norma à situação apresentada em juízo.
Os princípios estabelecidos no
art. 333 do CPC só devem ser aplicados depois
que tudo for feito no sentido de se obter a prova dos fatos. E quando isso ocorre, não importa a sua origem, isto é,
quem a trouxe para os autos. (BEDAQUE,
2012).
Mesmo entre doutrinadores que
não se opõem à livre investigação da prova pelo magistrado, há quem veja que tal possibilidade
não prescinda de ressalvas, como é o caso de
Almeida e Colucci (2008), que
alertam que o magistrado somente pode se utilizar da livre investigação das provas quando em dúvida
perante o conjunto probatório; ressalvam que visa diminuir o risco de o juiz assumir o papel da
parte, colocando em risco sua imparcialidade.
No âmbito do processo penal,
há de se discutir se, quando o juiz se interessa pela prova, pela busca da prova, se ele perde sua
imparcialidade.
Afirma Lopes Jr. (2009), para
quem, sempre que se atribuem poderes
instrutórios ao juiz[2], rompe-se a estrutura
dialética do processo e fere-se de morte a imparcialidade[3]. Para o autor, a
imparcialidade do juiz está comprometida quando estamos diante de um juiz-instrutor, com poderes de
gestão e iniciativa probatória:
Sempre que se atribuem poderes
instrutórios ao juiz, destrói-se a estrutura dialética do processo, o contraditório,
funda-se num sistema inquisitório e sepulta-se
de vez qualquer esperança de imparcialidade (enquanto terzietà = alheamento). É um imenso prejuízo gerado pelos
diversos pré-juízos que o julgador faz.
(...) Como explicamos anteriormente, a
imparcialidade do juiz fica evidentemente comprometida quando estamos diante de um juiz-instrutor
ou quando lhe atribuímos poderes de
gestão/iniciativa probatória. É um contraste entre a posição totalmente ativa e atuante do
instrutor, contrastando com a inércia que caracteriza o julgador. Um é sinônimo de
atividade, e o outro, de inércia. (LOPES
JR., 2009).
A iniciativa probatória do
juiz não apenas suscita polêmica no campo processual, mas também pode ser indicativo do grau de
efetividade da adoção de um sistema processual em determinado contexto político. Por tal razão,
haveremos de discutir se a gestão da prova autorizada pelo Código de Processo Penal ao
magistrado, em seu art. 156, revela que o sistema acusatório positivado pela Constituição da
República brasileira ainda possui diversos entraves para se efetivar.
Cabe diferenciar os três
principais sistemas processuais penais à
luz dos princípios fixos de cada um.
Como visto, os princípios
presentes em um “tipo ideal de sistema acusatório” são os princípios de que quem acusa investiga, da
publicidade, do contraditório, da oralidade, da liberdade do acusado, da igualdade, da
passividade judicial, do acusador diferente do juiz e da necessidade de uma acusação.
O princípio do acusador
diferente do juiz é, pois, o princípio nuclear do sistema acusatório. Por outro lado, são elementos encontrados nos
tipos ideais de sistema inquisitivo o caráter
prescindível do acusador, o início do processo com acusação, a notitia criminis
ou de ofício, o princípio da
oficialidade, o segredo processual, o princípio da escritura, a ausência de contradição, a desigualdade de armas, o juiz
que investiga também julga, a prova legal e tortura, a prisão preventiva obrigatória e a
incomunicabilidade do réu, além do recurso contra a decisão de primeira instância e a nulidade como consequência
da falta de respeito à lei e às formas estabelecidas.
Entre os elementos citados,
dois são tidos como fixos, como eixo central, a informar que, quando presentes, se está diante de um
sistema inquisitivo: o caráter prescindível da presença de um acusador distinto do juiz e o
fato de o processo poder ser instaurado por acusação, notitia criminis ou de ofício.
Já o sistema misto é aquele
que congrega a presença prescindível da acusação quando da abertura do processo (notadamente na fase
da investigação criminal) com a necessária distinção entre acusação e julgador (AVENA,
2010).
Portanto, a análise dos
elementos fixos de cada sistema parece já nos permitir estabelecer diferenças marcantes entre cada
um, sendo este, pois, um importante critério diferenciador.
Outro importante critério
diferenciador dos sistemas processuais
penais existentes é a gestão da prova. Aliás, para Coutinho (2001), a gestão da
prova não é um, mas o critério identificador dos princípios unificadores de
cada sistema.
Enquanto no sistema
inquisitório, de princípio inquisitivo, a gestão da prova está nas mãos do juiz, no sistema acusatório, de
princípio dispositivo, a prova é gerida pelas partes:
Assim, para a devida
compreensão do Direito Processual Penal é fundamental o estudo dos sistemas processuais, quais
sejam, inquisitório e acusatório, regidos,
respectivamente, pelos referidos princípios inquisitivo e dispositivo.
Destarte, a diferenciação
destes dois sistemas processuais faz-se através de tais princípios unificadores, determinados
pelo critério de gestão da prova.
Ora, se o processo tem por
finalidade, entre outras, a reconstrução de um fato pretérito crime, através da instrução
probatória, a forma pela qual se realiza a instrução identifica o princípio unificador.
Com efeito, pode-se afirmar
que o sistema inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, tem como principal característica
a extrema concentração de poder nas mãos
do órfão julgador, o qual detém a gestão da prova.
Eis que, o acusado é mero objeto de investigação e tido
como o detentor da verdade de um crime,
da qual deverá dar contas ao julgador.
(...) Já no sistema
acusatório, o processo continua sendo um
instrumento de descoberta de uma verdade histórica. Entretanto, considerando que a
gestão da prova está nas mãos das partes,
o juiz dirá, com base exclusivamente nessas provas, o direito a ser aplicado no caso concreto (o que os ingleses
chamam de judge made law). (COUTINHO,
2001)[4].
Ferrajoli (2010) afirma que o
interrogatório das testemunhas pelo juiz
ou mesmo seu poder ilimitado de admitir ou não admitir provas representam resquícios inquisitórios, ainda
que o sistema vigente seja formalmente o acusatório.
A gestão da prova, umbilicalmente ligada está
a questão dos poderes instrutórios do
juiz. Segundo Taruffo (2005), analisando a tipologia de tais poderes na Europa,
estão postos três modelos legislativos
diferentes:
a) Un primer modelo está
representado por los ordenamentos em los que el juez cuenta con um poder general para disponer
de oficio la adquisición de las pruebas,
no propuestas por las partes, que considere útiles para la determinación de los hechos. (...)
b) Un segundo modelo, em el
cual se inpiran la mayor parte de los ordienamientos actuales – entre los que
se puede poner como ejemplo Italia y Alemania
– prevé que el juez disponga de algunos poderes de iniciativa instructoria. Naturalmente estos poderes
pueden ser más os menos numerosos o más
o menos amplios dependiendo del caso. Sin embargo, hay una clara tendencia al incremento de los poderes de
instrucción del juez que se manifiesta también em Italia, por ejemplo, com la
reciente intruducción del art. 281 ter.
(...)
c) Finalmente (...) existen
ordenamentos en los que no están previstos de manera expresa verdaderos poderes de
iniciativa instructoria por parte del juez,
pero em los que, sin embargo, el juez desempeña un papel activo em la adquisición de las pruebas. Los ejemplos
relevantes en este sentido son especialmente
dos: el inglés y el español. (TARUFFO, 2006)
Um importante critério
diferenciador dos sistemas processuais penais
existentes é a gestão da prova: Ora, faz-se uma opção política quando se dá a
função de fazer aportar as provas ao
processo seja ao juiz (como no Sistema Inquisitório), seja às partes, como no Sistema Acusatório, por evidente que
sem se excluir (eis por que todos os
sistemas são mistos) as atividades secundárias de um e de outros, tudo ao contrário do que se passava nos
sistemas puros. Daí que a gestão da prova
caracteriza, sobremaneira, o princípio unificador e, assim, o sistema adotado. (COUTINHO, 2009)
O Princípio Inquisitivo marca a cadeia de significantes do Sistema
Inquisitório, e o Princípio Dispositivo, a do Sistema Acusatório, é a gestão da prova o critério
identificador de cada sistema:
(...) a compreensão de sistema
decorre da exigência de um princípio unificador,
capaz de derivar a cadeia de significantes dele decorrentes, não se podendo admitir a coexistência de princípios
(no plural) na origem do sistema kantiano.
Assim é que no Sistema Inquisitório o Princípio Inquisitivo marca a cadeia de significantes, enquanto no Acusatório
é o Princípio Dispositivo que lhe
informa. E o critério identificador é, por sua vez, o da gestão da prova.
Sendo o processo penal
atividade marcadamente recognitiva, de acertamento de significantes, a fixação de quem exercerá a
gestão da prova e com que poderes se
mostra indispensável, no que já se denominou de ‘bricolage de significantes’. O processo penal nunca se
satisfez com aquilo que se parece
verdadeiro, ou seja, com a mera verossimilhança, que é aceita no processo civil.
No Inquisitório o juiz
congrega, em relação à gestão da prova, poderes
de iniciativa e de produção, enquanto no Acusatório essa responsabilidade é das partes, sem que possa
promover a sua produção. De outra face,
no Inquisitório a liberdade do condutor do feito na sua produção é praticamente absoluta, no tempo em que no
Acusatório a regulamentação é precisa,
evitando que o juiz se arvore num papel que não é seu. (ROSA, 2013).
À luz da gestão da prova, será
inquisitivo o sistema que permite ao juiz a iniciativa e a produção probatória,
ao tempo em que tais encargos são exclusivos das partes no sistema acusatório.
No mesmo sentido escreve Aury
Lopes Jr.:
Ainda que todos os sistemas sejam mistos,
não existe um princípio fundante misto.
O misto deve ser visto como algo que, ainda que mesclado, na essência é inquisitório ou acusatório, a partir do
princípio que informa o núcleo.
Então, no que se refere aos
sistemas, o ponto nevrálgico é a identificação de seu núcleo, ou seja, do princípio informador,
pois é ele quem vai definir se o sistema
é inquisitório ou acusatório, e não os elementos acessórios (oralidade, publicidade, separação das atividades etc.)
Como afirmamos anteriormente,
o processo tem como finalidade (...) buscar a reconstituição de um fato histórico (o crime
sempre é passado, logo, fato histórico),
de modo que a gestão da prova é erigida à espinha dorsal do processo penal, estruturando e fundando o
sistema a partir de dois princípios informadores,
conforme ensina Jacinto Coutinho: - Princípio dispositivo: funda o sistema
acusatório; a gestão da prova está nas mãos
das partes (juiz espectador). - Princípio inquisitivo: a gestão da prova está
nas mãos do julgador (juiz ator [inquisitor]);
por isso, ele funda um sistema inquisitório. (LOPES JR., 2009).
No sistema inquisitivo, a
gestão da prova está, sobretudo, a cargo do juiz, que, na busca da chamada “verdade real”, tem
amplos poderes de incursionar na produção de provas. Conforme a doutrina, “o sistema
inquisitório é fundado pelo princípio inquisitivo, ou seja, de instrução e conhecimento de ofício
pelo juiz na busca da verdade material” (LOPES
JR., 2012).
No sistema acusatório, em que
vige o princípio dispositivo, ao revés, o juiz não interfere na produção da prova, função exclusiva das
partes. Para muitos, a posição de “juiz-espectador” possibilita a manutenção da esperada
imparcialidade quando do julgamento:
A posição do juiz é o ponto nevrálgico da
questão, na medida em que “ao sistema
acusatório lhe corresponde um juiz-espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos e,
por isso, mais sábio que experto; o rito
inquisitório exige, sem embargo, um juiz-ator, representante do interesse punitivo e, por isso, um enxerido, versado no
procedimento e dotado de capacidade de
investigação”.
O tema também está intimamente
relacionado com a questão da verdade no
processo penal. No sistema inquisitório, nasce a (inalcançável e mitológica) verdade real, em
que o imputado nada mais é do que um
mero objeto de investigação, “detentor da verdade de um crime”, e, portanto, submetido a um inquisidor que está
autorizado a extraí-la a qualquer custo.
Recordemos que a intolerância vai fundar a inquisição. A verdade absoluta é sempre intolerante, sob pena de
perder seu caráter “absoluto”. (LOPES
JR., 2012).
Ferrajoli (2010), que assim se
manifesta sobre a gestão da prova e os
sistemas processuais penais: As diferenças
entre sistema inquisitório e sistema acusatório que se manifestam no interrogatório do imputado são
apenas um reflexo da alternativa
epistemológica entre as duas opostas concepções da verdade processual que marcam os dois sistemas e
condicionam em geral os métodos de
prova.
A verdade almejada e
perseguida pelo processo inquisitório, sendo concebida como absoluta ou substancial, e
consequentemente única, não pode ser de
parte e não admite, portanto, a legitimidade de pontos de vista contrastantes cujo conflito só não exige, mas
exclui o controle desde baixo, em
especial o controle do imputado. (...) Entende-se que sobre essa base não há sentido em falar de ônus da prova a cargo
da acusação, mas, no máximo, da
necessidade da prova: exigida, pretendida – ou totalmente extorquida – do próprio acusado. Ao contrário, a verdade
perseguida pelo método acusatório, sendo
concebida como relativa ou formal, é adquirida, como qualquer pesquisa empírica, através do procedimento por
prova e erro.
(...) Do mesmo modo que ao acusador são vedadas as funções
judicantes, ao juiz devem ser em suma
vedadas as funções postulantes, sendo inadmissível a confusão de papéis entre os dois sujeitos que caracteriza
ao contrário o processo misto (...). (FERRAJOLI, 2010).
Em conclusão parcial, que a gestão da prova é,
ao lado dos elementos fixos de cada
sistema, importante critério diferenciador dos sistemas processuais penais, sendo que é no sistema
acusatório em que a gestão da prova é exclusiva das partes.
A forma como a produção e a
gestão da prova são conduzidas indica, ainda que o julgador não pareça preocupado com
o enquadramento do sistema processual penal vigente, o sentimento deste em relação à função
do processo penal. Também este o pensamento de José Roberto dos Santos Bedaque – instrumentalista – que, em sua obra
“Poderes Instrutórios do Juiz”.
A gestão da prova como
critério de diferenciação dos sistemas processuais penais não é uma unanimidade, a exemplo de Gustavo
Henrique Badaró (2003), para quem não há incompatibilidade entre o processo penal
acusatório e um juiz ativo, dotado de poderes instrutórios.
E a essência do processo
acusatório e, portanto, a diferença deste para o processo inquisitório – está na
separação das funções de acusar, julgar e defender:
Não há incompatibilidade entre
o processo penal acusatório e um juiz ativo, dotado de poderes instrutórios, que lhe
permitam determinar a produção das provas
que se façam necessárias para a descoberta da verdade. A essência do processo acusatório está na separação das
funções de acusar, julgar e defender.
A ausência de poderes
instrutórios do juiz é apenas uma característica histórica do processo acusatório, mas não é um
traço essencial. (BADARÓ, 2003)
Para Geraldo Prado, entre
outros doutrinadores e estudiosos, os poderes instrutórios do juiz são
incompatíveis com o sistema acusatório. E, afirma que quando o juiz se dedica a
produzir provas de ofício, se coloca como sujeito ativo do conhecimento a
empreender tarefa que não é neutra, pois sempre deduzirá a hipótese que pela
prova pretenderá ver confirmada.
A doutrina estrangeira
identifica o poder instrutório do juiz como marca do sistema inquisitivo. Damaska (2015), quando
diferencia o juízo penal do cível, aponta o penal como sendo decididamente inquisitivo quando o
juiz não se limita a supervisionar a produção da prova.
Diz, assim, que, “en pocas
palavras, la investigacíon – tan decididamente inquisitorial en los procesos penales – en los juicios
civiles se acerca más a un tipo de juez que, más que dirigir, se limita a supervisar la práctica de
la prueba” (DAMASKA, 2015).
Carvalho (2003), por seu
turno, também aponta a gestão da prova como elemento que identifica o sistema inquisitório[5], mas alerta que a busca
pela “verdade real” revela a mentalidade inquisitória presente até mesmo em pleno
Estado Democrático de Direito, onde deveria ser efetivo o sistema acusatório.
Os elementos que revelam a
mentalidade inquisitória presente no processo
penal brasileiro atual que nos debruçaremos adiante, in litteris: (...)
ao legitimar a oficiosidade desmedida do magistrado na produção da prova, o sistema inquisitório permite ao
julgador fazer as vezes de defensor e acusador
em processo que ele decidirá no final.
Em resumo, propicia ao juiz a prévia eleição de uma tese (como
única e absoluta verdade) e a busca
desmesurada de meios aptos a comprová-la.
Neste rumo, a lógica inquisitorial estabelecida como caminho a
solução do caso em debate me faz presenciar
– irresignado, mas não surpreso -, em pleno Estado Democrático de Direito, a busca do malfadado mito da
verdade real[6].
(CARVALHO, 2003).
Em países em que o sistema
processual penal é semelhante ao brasileiro ou que, como mais recentemente é o caso dos
Estados Unidos da América, possui grande influência nas últimas reformas legislativas levadas a
efeito no Brasil. Alguns países a seguir citados expressamente positivam o sistema acusatório
na Constituição, como Portugal e México; outros, não, como Itália, Colômbia, Chile e
Peru.
Dentre os países que primeiro
positivaram o sistema acusatório na Constituição, Portugal se destaca. A Constituição da
República Portuguesa, art. 32, 5, determina que o processo penal tenha estrutura acusatória,
submetendo a audiência de julgamento e os atos instrutórios ao princípio do contraditório:
Artigo 32.º
Garantias de processo criminal
1. O processo criminal
assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
2. Todo o arguido se presume
inocente até o trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais
curto prazo compatível com as garantias
de defesa.
3. O arguido tem direito a
escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo, especificando a lei os
casos e as fases em que a assistência por
advogado é obrigatória.
4. Toda a instrução é da
competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos
atos instrutórios que se não prendam
diretamente com os direitos fundamentais.
5. O processo criminal tem
estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei
determinar subordinados ao princípio do
contraditório.
6. A lei define os casos em
que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em
atos processuais, incluindo a audiência
de julgamento.
7. O ofendido tem o direito de
intervir no processo, nos termos da lei.
8. São nulas todas as provas
obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva
intromissão na vida privada, no domicílio,
na correspondência ou nas telecomunicações.
9. Nenhuma causa pode ser
subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
10. Nos processos de
contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os
direitos de audiência e defesa. (grifos
meus).
A fim de cumprir o mandamento
constitucional, de janeiro de 1988, entrou em vigor o Código de Processo Penal
português, classificado pela Exposição de Motivos, como correspondente às
exigências do sistema acusatório.
O Governo lusitano deveria
obedecer ao mandato constitucional que
determinava – e ainda determina – a adoção de um processo penal com estrutura acusatória.
Por isso, a Assembleia da
República traçou várias diretrizes que deveriam ser seguidas, entre as quais se pode destacar:
a) estabelecimento da “máxima acusatoriedade” do processo; b) o incremento do que chamou de
igualdade material de armas entre acusador e acusado; c) monopólio da acusação nas mãos do
Ministério Público; d) liberdade de atuação para o defensor; e) fortalecimento dos
princípios da oralidade, imediação, celeridade, concentração, contraditório e publicidade; f)
nulidade dos atos que não respeitem as formas estabelecidas; g) o caráter excepcional e
provisório da prisão preventiva.
Todos os aspectos delineados pela Assembleia
portuguesa, o Decreto-Lei 78, de 17 de novembro de 1987,
aprovou o novo Código de Processo Penal, revogando o anterior. Sua entrada em vigor se
deu em 01.01.1988, conforme previsto pela Lei 17, de 1º de junho de 1987 (ANDRADE, 2013).
Como ocorre nos sistemas
acusatórios, o processo penal português somente tem início com a acusação pública, elemento fixo e
caraterizador da estrutura acusatória.
Após a reforma de 2008, a
Constituição Política do Estados Unidos Mexicanos
assinala que o processo penal será acusatório e oral, regido pelos princípios
da publicidade, do contraditório, da
concentração, entre outros: Como visto, a Constituição do México expressamente dispõe que o sistema
processual penal vigente no país deverá
ser acusatório.
Convém pontuar que o inciso V
do art. 20 da Constituição mexicana determina que o ônus da prova corresponde à acusação:
Artículo 20
(...) V. La carga de la prueba para demonstrar la
culpabilidade corresponde a la parte
acusadora, conforme lo establezca el tipo penal. Las partes tendrán igualdad procesal para sostener la acusacíon o
la defensa, respectivamente.
À luz da temática gestão da
prova, tão cara à grande parte da doutrina nacional, está claro que o sentido da Lei Maior do México é
da separação entre a acusação e o juízo, cabendo ao primeiro a prova da culpa.
Dentre os países que adotam o
sistema acusatório, porém sem disposição expressa da Constituição, primeiro se destaca a Itália,
pelo Código de Processo Penal concebido em 1988. Ferrajoli, em “Direito e Razão”[7] (2010), afirma que se
adotou, a partir da reforma de 1988 o
sistema acusatório, superando-se, inclusive, o sistema misto do chamado Código
Rocco:
O novo Código de Processo
Penal e o sistema acusatório – Este modelo constitucional de processo – que permaneceu
congelado por quase quarenta anos –
encontrou parcial atuação com o novo Código de Processo Penal aprovado com o DPR 447, de 22.09.1988, em
vigor a partir de 24.10.1989.
Rompendo uma tradição
plurissecular, o novo Código adotou o sistema acusatório não expressamente previsto pela
Constituição de per si, configurando o
novo processo como uma relação trigonal entre juiz, acusação e defesa, em antítese não apenas ao processo
medieval de tipo inteiramente “inquisitório”,
mas, também, àquele “misto” do velho Código Rocco, que era baseado, no que tange à fase instrutória, na
confusão entre juiz acusação, e na relação
diádica inquisidor/inquirido.
A principal inovação estrutural
introduzida foi a separação do juiz da acusação,
mediante a eliminação da velha figura do juiz instrutor, substituída por um juiz para as investigações preliminares
em princípio estranho ao seu desenvolvimento
(art. 328), e do pretor, que agora possui função apenas judicante.
Ao Ministério Público, de
outra parte, foram conferidas as funções via de regra postulantes graças a duas
importantes inovações: a exclusão da instrução
sumária e a supressão já antecipada pela Lei 330, de 05.08.1988, do seu poder de determinar a captura do imputado,
podendo agora apenas dispor do mecanismo
denominado fermo, por não mais de 96 horas, em caso de perigo de fuga ou de graves indícios de
culpabilidade dos delitos punidos com penas
não superiores no mínimo de 2 e no máximo a 6 anos (art. 384). (FERRAJOLI, 2010).
Desde o ano 2000, o sistema
acusatório guia o processo penal chileno, cuja experiência vem sendo alvo de
intensos estudos, inclusive por pesquisadores brasileiros.
O Código de Processo Penal
Chileno dispõe que o princípio acusatório norteia o modelo de procedimento criminal. Diz-se isso porque o
artigo terceiro é explícito em estabelecer que cabe exclusivamente ao Ministério Público a
condução da investigação criminal:
Artículo 3°.- Exclusividad de
la investigación penal. El ministerio público dirigirá en forma exclusiva la investigación
de los hechos constitutivos de delito,
los que determinaren la participación punible y los que acreditaren la inocencia del imputado, en la forma prevista
por la Constitución y la ley.
Demais disto, no Chile,
sublinhe-se a existência do juiz de garantias, do procedimento oral, da presunção de inocência e, sobretudo,
da direção da investigação criminal por parte dos promotores de justiça.
É exatamente na exclusividade
do Ministério Público na investigação criminal e na proposição da ação penal que se baliza a
afirmação de que o Chile adota um sistema acusatório de processo penal.
Tendo por base a gestão da
prova como um dos critérios diferenciadores dos sistemas processuais penais, pode-se afirmar que o
processo penal colombiano, datado de 2004, é acusatório,
visto que a lei adjetiva veda a iniciativa probatória do juiz, a prova
de ofício, e expressa que a iniciativa
probatória é apenas das partes.
A doutrina especializada
adverte, porém, que a Suprema Corte Colombiana mitigou a regra da proibição da produção da prova de
ofício pelo juiz, art. 361:
Sem embargo, a Corte Suprema de Justiça,
Sala de Cassação Penal, com a relatoria
do magistrado Edgar Lombana Trujillo, aprovada por Ata n. 28, de 30 de março de 2006, veio a limitar a rigidez
desta norma, estabelecendo “(...)
4.5. Es aqui que, em
términos generales, el Juez Penal está em la obligacíon de acatar ek artículo 361 de la Ley 906 de
2004, em cuanto prohíbe decretar pruebas
de oficio, pues se trata de um mandato legal que tiene razón de ser en el sistema acusatorio implementado em
Colombia. Sin embargo, cuando por motivos
de índole constitucional el Juez arribe a la conviccíon de que es imprescindible decretar una prueba de oficio,
antes de hacerlo debe expressar con
argumentos cimentados las razones por las cuales en el caso concreto la aplicacíon del artículo 361 produciría efectos
inconstitucionales, riesgo ante el cual,
aplicará preferiblemente la Carta, por ser la ‘norma de normas’, como lo estipula el artículo 4º constitucional”.
(...) (JUNOY, 2017).
A despeito da mitigação da
rigidez do multicitado art. 361 do Código de Processo Penal Colombiano, em nada altera a afirmação de que,
no país latino em questão, o princípio que se adota é o acusatório, embora releve o que mais
tarde também se verificará no Brasil: as arestas que impedem a efetividade do sistema
acusatório.
Já em relação ao Peru, cujo atual
Código de Processo Penal data de 2006, tem-se que a Constituição não estabelece expressamente o
sistema processual vigente, se acusatório ou inquisitivo ou misto, tal qual a Constituição
do México e de Portugal.
Também defende essa tese a
doutrina de Joan Picó i Junoy:
De igual modo, no novo Código
Processual penal peruano, de 29 de julho de 2004, que entrou em vigor em 1º de julho de
2006, rege o princípio acusatório, sobre
a base da nítida separação de funções instrutórias (Ministério Público), de controle da investigação (juiz da
investigação preparatória) e decisórias (juiz
penal); a devida correlação entre a acusação e a sentença; e a proibição da reformatio in peius. (JUNOY, 2017).
Como visto, para os doutrinadores,
se os princípios que norteiam o processo penal peruano são princípios próprios do sistema acusatório, é
crível dizer que este é, pois, o norte a ser seguido.
Assim, a oralidade, a
concentração da audiência, a separação das funções de acusar e julgar, o contraditório e a paridade de armas
são elementos que municiam a afirmação de que o sistema processual penal vigente no Peru é o
acusatório.
O processo penal alemão é
acusatório, pois, embora o juiz tenha certa discricionariedade para colher elementos de prova que entenda necessários,
a ele é vedado iniciar a persecução penal
de ofício, pois esta é condicionada ao oferecimento de uma acusação:
Na atualidade, o processo
penal alemão está estruturado da seguinte maneira:
a) a investigação criminal não
é considerada uma fase do processo jurisdicional,
já que, com a extinção do juizado de instrução, quem a preside é o Ministério Público: b) o juiz não tem
poderes para abrir ex officio a fase jurisdicional da persecução penal, que está
condicionada ao oferecimento de uma acusação;
c) a legitimidade ativa somente está confiada ao Ministério Público; d) o juiz não pode proceder de
ofício, mas, após o início do processo, tem
liberdade para buscar os elementos que entenda necessários para poder julgar; e) estão previstos os princípios de
publicidade, oralidade, igualdade de armas,
contraditório, presunção de inocência, in dubio pro reo, legalidade e oportunidade; f) o juiz tem liberdade à hora
de valorar a prova, sempre expondo os
motivos de suas decisões; g) a desobediência às normas processuais pode provocar a nulidade dos atos
praticados; e h) possibilidade de
recurso contra as decisões proferidas. (ANDRADE, 2013).
No que tange à Inglaterra e
aos Estados Unidos da América, países que adotam o common law, a doutrina se divide em
apontar que o processo penal possui natureza acusatória ou que pertencente ao adversary system.
Todavia, apesar da
divergência, não se pode ter o adversary system como antítese ao sistema acusatório, senão como uma
manifestação mais rígida do sistema acusatório clássico, no qual não somente o processo tem início
apenas com o oferecimento de uma acusação, como somente se admite a figura do juiz passivo.
É justamente na atuação do
juiz que reside a fundamental diferença entre o sistema acusatório comum e o adversary system,
porquanto naquele é permitido que o juiz tenha uma atuação mais ativa.
Entre os juristas pertencentes
ao direito continental, é comum a afirmação de que o processo penal dos países da Common
Law[8]
possui natureza acusatória.
Entretanto, quando se observa
a opinião dos juristas pertencentes à Common Law, nitidamente se abrem
duas vias para sua classificação.
Para um primeiro grupo, que se soma ao posicionamento de seus
companheiros do direito continental, a
classificação a ser dada ao seu processo seria a de integrante do sistema acusatório. Mas, para um segundo
grupo, cujo entendimento parece ser
majoritário, o processo penal inglês e norte-americano seria integrante do adversary system, ao invés do sistema
acusatório.
Esse sistema se caracteriza
pela atuação discricionária das partes no processo penal, tendo ele início
somente com o oferecimento de uma acusação. (...).
Apesar da divergência
doutrinária, a nosso juízo, essa discussão simplesmente demonstra duas maneiras distintas de ver uma
mesma realidade, como quem vê os dois
lados de uma única moeda.
Se a doutrina processualista
continental, conforme veremos, afirma
que o sistema acusatório exige, para sua configuração, a presença de uma acusação ou de
um acusador distinto do juiz, o que se
nota é que o adversary system dá como certa essa presença. Mais que isso, ela centra toda a importância de seu
processo no modo como irão intervir as
partes e o juiz ao longo de seu desenvolvimento.
Assim, acusador e acusado adotariam uma postura eminentemente ativa, ao
passo que o juiz atuaria como um
verdadeiro árbitro ou mediador, deixando toda a atividade probatória a cargo das partes.
Como se pode observar, os dois
sistemas têm uma preocupação em comum, que
é garantir que decisão seja proferida
por um juiz imparcial. E, é exatamente
na busca dessa imparcialidade que se pode verificar o que distingue um sistema do outro.
(...) Estaríamos autorizados a
dizer, então, que o adversary system seria uma manifestação mais rígida ou tradicional do
sistema acusatório clássico, enquanto a participação mais ativa do juiz no
processo penal seria considerada como
uma evolução ou flexibilização desse sistema, recendo, por isso, o nome de inquisitorial system.
Dessa forma, não vemos grandes
inconvenientes em afirmar que o adversary system e o inquisitorial system são
duas maneiras distintas de catalogar a uma mesma estrutura sistêmica de processo penal,
que recebe, por parte da doutrina processualista
continental, o nome de acusatória. (ANDRADE, 2013).
Como visto, em síntese, seja
no sistema acusatório “comum”, seja no adversary system, há uma preocupação com a imparcialidade, pelo
que é possível afirmar que o sistema processual penal adotado tanto na Inglaterra quanto nos
Estados Unidos da América é, por assim dizer, acusatório.
A estrutura do processo penal
norte-americano é assim definida por Mandarino: Por ser um sistema misto de Civil Law e
Commom Law, importante frisar que o processo judicial norte-americano deve
respeitar os princípios de ordem constitucional.
São eles:
A repulsa aos aspectos
inquisitoriais, vedando o impulso oficial do magistrado (inquisitorial proceedings). O
relacionamento entre as partes e o juiz é neutra, decidindo o magistrado apenas quando provocado
pelo autor ou pelo réu, conhecido no
processo civil como adversary proceedings.
No processo penal, as partes são representadas pelo Ministério
Público (prosecutor) e pelo acusado
(accused), conhecido (MANDARINO, 2016). como accusatory
proceedings.
Tem-se, pois, que o sistema
processual penal dos Estados Unidos é fortemente acusatório
Não vige consenso doutrinário
sobre o sistema processual penal de fato adotado no Brasil, se é o acusatório,
o inquisitório ou o misto, afirma Mandarino. O que se tem é que o texto
constitucional vigente normatiza o sistema acusatório, razão pela qual mais
parece ser razoável afirmar que o sistema procssual penal deve se amoldar para
efetivar o sistema acusatório.
No Brasil, o princípio do
sistema acusatório, mesmo que com algumas aberrações e contradições, ou seja, de forma
mista, já era adotado anteriormente pela
legislação infraconstitucional, mas hoje deflui, de forma pura, de princípios processuais inseridos na
própria Constituição, mormente ao
estabelecer a Carta Magna o princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), o princípio do juiz natural e
imparcial (art. 5º, LIII, 92 e 126), e, principalmente,
a privatividade da promoção da ação penal pública assegurada ao parquet (art. 129, I). (LIMA, 2002)[9].
Em outras palavras, com olhos
voltados à Constituição da República, é possível afirmar que o sistema processual penal a ser efetivado
no Brasil é o sistema acusatório (SHCNEIDER, 2014).
Também o novel art. 3º-A do
Código de Processo Penal dispõe expressamente que o processo penal terá estrutura acusatória,
vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de
acusação.
Todavia, a discussão que ora
se trava não perde efeito nem mesmo com a edição da Lei 13.964/2019, que modifica o Código de Processo
Penal no ponto citado, na medida em que outros
dispositivos que tratam da gestão da prova pelo juiz não foram revogados.
A Constituição brasileira
vigente enuncia, implícita ou explicitamente, direitos constitucionais do processo penal por meio de princípios.
Os princípios regentes são o
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, base sobre a qual todos os direitos e garantias são
erguidos e sustentados, e o Princípio do Devido Processo Legal, que é a síntese de todos os princípios
indicadores de regularidade do processo penal (ESTEFAM; GONÇALVES, 2017).
Os princípios explícitos são
oito: princípio da não culpabilidade ou da presunção de inocência (art. 5º, LVII); princípio da ampla
defesa (art. 5º, LV); os princípios do Júri[10] (art. 5º, XXXVIII); o princípio do contraditório (art.
5º, LV); o princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII); o princípio da publicidade
(art. 5º, XXXIII e LX); o princípio da vedação das provas ilícitas (art. 5º, LVI); e o princípio
da legalidade estrita da prisão cautelar (art. 5º, LXI) (TÁVORA; ALENCAR, 2012).
Registre-se que uma das
consequências do princípio da não culpabilidade ou da presunção de inocência, disposto no art. 5º,
LVII, da Constituição da República, é justamente o ônus da prova cabido à acusação.
Os princípios implícitos são
os princípios do duplo grau de jurisdição, do promotor natural, da oficialidade, da intranscendência,
da iniciativa das partes e a vedação do duplo processo, ou vedação do bis in idem.
O princípio implícito da
iniciativa das partes indica que compete ao Ministério Público ou ao querelante
– nas ações penais privadas – oferecer a ação penal, e não ao juiz.
Portanto, sem ainda
problematizar a questão, tem-se que o princípio implícito da iniciativa das partes, que veda ao juiz o
início da ação penal, é elemento autorizador a afirmar que o sistema processual
penal brasileiro deve buscar ser cada vez mais acusatório.
Diz-se isso porque, como visto
em passagens anteriores, o sistema acusatório atual se caracteriza pela
imparcialidade do julgador, com a clara distinção entre acusação e defesa; pela
oralidade, publicidade do processo (em regra), exigência do contraditório e da
ampla defesa, acusação pública,
iniciativa probatória das partes, duplo grau de jurisdição, entre outras
características (ANDRADE, 2013).
Todos estes, são elementos,
explicita ou implicitamente, positivados na Constituição da República
brasileira. Todavia, mais do que isso, pois, por acusador diferente de juiz, ou
seja, a nítida separação entre quem acusa e quem julga, se tem o centro
gravitacional do sistema acusatório.
As atividades de acusar e
julgar devem ser demarcadas a sujeitos distintos, sob pena de não haver julgamento, no sentido estrito da
palavra, mas apenas uma mera confirmação da acusação (LOPES JR., 2012).
Como deve haver a clara
distinção entre acusação e juiz, o sistema ideal acusatório pressupõe que haja
uma acusação para o início do processo. Aqui reside também o chamado princípio
acusatório, que impõe que somente um acusador distinto do juiz pode dar início
ao processo, elemento constante no princípio implícito da iniciativa das partes
(LOPES JR., 2012).
À luz dos princípios
constitucionais que regem o processo penal pátrio, alguns doutrinadores, a
exemplo de Fernando Capez (1997), afirmam não que o sistema acusatório é o
sistema a ser perseguido, mas que é o adotado no Brasil, sublinhando,
especificamente, que a autoridade judiciária
não atua como sujeito ativo na produção da prova, ficando a salvo de qualquer
comprometimento psicológico prévio: e juizado especial criminal, esse modelo
processual não padece das mesmas críticas endereçadas aos juizados de
instrução, no sentido de que o juiz, ao participar da colheita da prova
preliminar, teria a sua parcialidade afetada.
É que, no sistema acusatório,
a fase investigatória fica a cargo da
Polícia Civil, sob controle externo do Ministério Público (CF/1988, art. 129,
VII; Lei Complementar n. 734/1993, art. 103, XIII, a a e) a quem, ao final,
caberá propor a ação penal ou o arquivamento do caso.
A autoridade judiciária não atua como sujeito ativo da produção da prova, ficando a salvo de qualquer
comprometimento psicológico prévio.
O sistema acusatório[11] pressupõe as seguintes
garantias constitucionais: da tutela jurisdicional
(art. 5º. XXXV), do devido processo legal (art. 5º, LIV), da garantia do acesso à justiça (art. 5º, LXXIV),
da garantia do juiz natural (art. 5º,
XXXVII e LIII), do tratamento paritário das partes (art. 5º, caput, I),
da ampla defesa (art. 5º, LV, LVI e
LXII), da publicidade dos atos processuais e motivação dos atos decisórios (art. 93, IX) e
da presunção de inocência (art. 5º,
LVII). É o sistema vigente entre nós. (CAPEZ,
2010).
Apesar do quanto anotado por
Fernando Capez, é cediço que o arquétipo da legislação processual penal no Brasil confere, sim, ao
magistrado amplos poderes, como requisitar a abertura de inquérito policial, bem como
poderes instrutórios, como ouvir testemunhas não arroladas pelas partes, razão pela qual também
se diz que vigora no Brasil um sistema acusatório com traços de inquisitivo (TOURINHO FILHO,
2012).
O nosso sistema acusatório
possui “laivos de inquisitivo”, na
medida em que permite ao juiz decretar prisão preventiva de ofício, ser
destinatário de representação,
determinar a realização de diligências, entre outras medidas:
No Direito pátrio, o sistema
adotado, pode-se dizer, não é o processo acusatório puro, ortodoxo, mas um sistema
acusatório com laivos de inquisitivo,
tantos são os poderes conferidos àquela cuja função é julgar com imparcialidade a lide, mantendo-se
equidistante das partes.
Na verdade, pode o Juiz requisitar abertura de inquérito (art.
5º, II, do CPP); decretar de ofício prisão
preventiva (art. 311, do CPP); conceder habeas corpus de ofício (art. 654, §2º, do CPP); ser destinatário da
representação (art. 39, do CPP); ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a
produção antecipada de provas consideradas
urgentes e relevantes (art. 156, I, do CPP); determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir a sentença,
a realização de diligências, para dirimir
dúvida sobre ponto relevante (art. 156, II, do CPP); ouvir testemunhas além das indicadas pelas partes (art. 209 do
CPP) e, inclusive, as referidas pelas
testemunhas (§1º do art. 209 do CPP) etc. (TOURINHO FILHO, 2012).
Entretanto, que, se antes era facultado ao
juiz decretar a prisão preventiva ex
officio, se no curso da ação penal, após a edição da Lei 13.964/2019, tal
possibilidade não é mais vigente, eis
que agora, seja no curso do inquérito ou da ação penal, a prisão preventiva somente pode ser decretada se a requerimento
do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade
policial.
E ainda que formalmente a Lei
13.964/2019[12]
tenha feito constar no art. 3º-A10 do Código de Processo Penal que o processo terá
estrutura acusatória, restam, porém, as citadas possibilidades de o juiz ser destinatário da
representação (art. 39, do CPP), requisitar abertura de inquérito (art. 5º, II, do CPP),12 ordenar
a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes (art. 156, I, do CPP),
ainda que antes de iniciada a ação penal, bem como determinar a realização de diligências, ouvir
testemunhas além das indicadas pelas partes, entre outras possibilidades.
Também Jardim (2000) afirma
que o Brasil adota o sistema acusatório, malgrado mantenha elementos do sistema inquisitivo,
pelo que afirma que a nossa tendência legislativa é a de “purificar ao máximo o sistema
acusatório, entregando a cada um dos sujeitos processuais funções não precípuas, mas absolutamente
exclusivas (...)”.
A reforma processual de 2008[13], mas no que parece ter
sido um movimento não tão arrojado como se
esperava. Igualmente, a tendência se confirmou com a entrada em vigor da Lei
13.964/2019.
Por exemplo, a Lei n.
11.690/2008 alterou o art. 21214 do Código de Processo Penal para que as partes possam fazer perguntas
diretamente à testemunha, quando antes as perguntas das partes eram requeridas ao juiz; todavia, criou
Parágrafo único para permitir que, sobre os pontos não esclarecidos, o juiz possa complementar a
inquirição.
Parece haver, no particular, o
receio de que, ao afastar ao máximo o juiz da produção da prova, perca-se o norte da bússola que guia o
processo à descoberta da chamada verdade real.
Como dito, outro exemplo de
tendência legislativa para a efetivação do sistema acusatório é a supressão da possibilidade de o
juiz decretar a prisão preventiva de ofício no curso da ação penal, havida no contexto da Lei
13.964/2019. E, não só: a dicção expressa de que o processo penal terá estrutura acusatória,
art. 3º-A do Código de Processo Penal.
Ainda assim, permaneceram
intactos outros elementos indicadores dos resquícios de inquisitorialidade no sistema brasileiro, o
que confirma a tese de timidez das reformas legislativas.
Por isso mesmo, o doutrinador
carioca afirma textualmente que “O processo penal brasileiro adota o sistema acusatório moderno,
mantendo, entretanto, alguns resquícios do inquisitorialismo e preservando a acusação
privada para casos restritos” (JARDIM, 2000).
Na mesma linha de intelecção,
Ambos e Lima (2009), já após a reforma processual de 2008, nominaram o sistema processual
brasileiro como um processo acusatório inquisitorial, pois, embora haja a separação entre as funções
de acusar e julgar (pelo que a acusação somente se inicia por impulso do Ministério Público ou
do ofendido, em casos específicos), persistem os elementos inquisitivos do inquérito e,
principalmente, o poder do juiz em buscar a prova no
processo:
(...) o elemento acusatório é
mais identificado na função e na posição que ocupa o Ministério Público, como única
autoridade que pode iniciar o processo e
que formula a acusação, ficando ainda elementos inquisitivos no inquérito e no fato de o juiz poder buscar a
prova no processo.
Assim, tal qual o processo alemão, pode-se dizer que o
processo brasileiro hoje é um processo acusatório
– em sentido estrito – mas ainda com elementos inquisitivos, podendo também ser
chamado de um processo acusatório inquisitorial.
E dentro do tema da prova,
verificamos esta realidade, pois no Brasil o Estado, através da polícia, ou
outra autoridade, que pode ser o Ministério Público, busca a prova (a diferença do processo alemão
é a de que não temos o juiz de instrução)
na fase preliminar, sendo que o juiz, de forma supletiva, também pode buscar a prova em juízo (agora o juízo
oral).
Portanto, dentro da estrutura
dos três sistemas mundiais, elaboradas por Kai Ambos, o Brasil também se situa
de certa forma no primeiro, que é um “procedimento
inquisitivo-acusatório”, no qual o órgão judicial intervém na obtenção das provas, porque o processo é
direcionado ao esclarecimento dos fatos
e no qual o juízo oral pode se preparar ou se embasar sobre a base daquilo que consta nos autos relativos à instrução
preliminar, utilizando matizes maiores
do sistema acusatório (sistema que de um jeito ou outro é adotado em Alemanha, França, Países Baixos, Áustria e
Portugal). (AMBOS; LIMA, 2009).
A aparente tensão entre as
normas infraconstitucionais e a Constituição da República, contendo aqueles traços de sistema inquisitivo
em ordenamento que a Constituição quer acusatório,
cria essa peculiaridade no direito processual penal brasileiro, razão pela qual
há quem identifique nosso sistema como
misto (COUTINHO, 2009).
Todavia, a inexistência
hodierna de sistemas processuais puros mitiga a ideia de um sistema misto, sob pena de considerarmos todos
os sistemas vigentes como assim sendo (COUTINHO,
2009).
Sobre o sistema misto, já foi
dito em passagem anterior que, neste contexto, o processo se torna mera repetição do inquérito, pois o
que existiria seria um discurso que apenas “requenta” a prova policial quando do
julgamento (LOPES JR., 2009).
Também decorrem da prática
forense algumas críticas ao chamado sistema misto, porquanto as perguntas feitas em audiência de
instrução são meramente para confirmar o que foi dito durante o inquérito policial:
A fraude reside no fato de que
a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo trazido integralmente para dentro do
processo e, ao final, basta o belo discurso
do julgado para imunizar a decisão.
Esse discurso vem mascarado com as mais variadas fórmulas, do estilo: a
prova do inquérito é corroborada pela
prova judicializada; cotejando a prova policial com a judicializada; e assim todo um exercício imunizatório (ou
melhor, uma fraude de etiquetas) para
justificar uma condenação, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição.
O processo acaba por
converter-se em uma mera repetição ou
encenação da primeira fase.
(...) Enquanto não tivermos um processo verdadeiramente acusatório, do início
ao fim, ou, ao menos, adotarmos o
paliativo da exclusão física dos autos do inquérito policial de dentro do processo, as pessoas continuarão
sendo condenadas com base na “prova”
inquisitorial, disfarçada no discurso do “cotejando”, “corrobora”... e outras fórmulas que mascaram a realidade: a
condenação está calcada nos atos de
investigação, naquilo feito na pura inquisição. (LOPES JR., 2009).
Tomando por base a ideia de
princípio unificador, Coutinho (2001) sustenta que o sistema misto é essencialmente inquisitório
e , portanto, ao fim e ao cabo, o sistema do processo penal brasileiro é inquisitório,
“porque regido pelo princípio inquisitivo, já que a gestão da prova está, primordialmente, nas
mãos do juiz”.
A gestão da prova a cargo do
juiz macula o sistema brasileiro por este caráter inquisitório.
À mesma conclusão chega Khaled
Jr. (2016), para quem “não pode haver mais dúvidas de que a abertura de poderes para que
o juiz produza provas representa uma porta aberta para a reprodução da patologia
inquisitória”.
Tal concepção é complementada
pela ideia firmada por Prado (2006), de que, quando “o juiz se dedica a produzir provas de
ofício, se coloca como sujeito ativo do conhecimento
a empreender tarefa que não é neutra, pois sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver confirmada.”
Em verdade, como dito na
abertura deste tópico, diante de tanta divergência doutrinária, nos parece mais importante do que caracterizar
o sistema processual penal brasileiro, identificar os elementos que lhe afastam do mandamento
constitucional, pois se a matriz constitucional preleciona o sistema pátrio como sendo
acusatório, devem-se buscar meios para assim torná-lo lo, efetivamente.
O que há, efetivamente, é um
choque entre o que preleciona a Constituição da República – que determina o
modelo acusatório, e a normativa infraconstitucional, que aliada à prática forense, insiste numa perspectiva
inquisitorial:
(...) O nosso modelo atual não
guarda a essência dos modelos históricos: acusatório, inquisitivo e nem do adversarial.
Verifica-se um choque
doutrinário e jurisprudencial
no ordenamento jurídico brasileiro entre normatividade ordinária, sufragada pelas
práticas forenses de perspectiva inquisitorial,
e a normatividade constitucional e convencional. Embora o modelo processual, a partir dos acordos
internacionais ratificados pelo Brasil, e
da Constituição Federal seja o acusatório, a legislação ordinária e as práticas
judiciais ainda persistem nas matrizes
inquisitoriais e totalitárias do processo penal. (GIACOMOLLI, 2016).
Devem ser, pois, identificados
na norma infraconstitucional e na prática forense os traços inquisitoriais com fins de reformá-los,
conferindo efetividade ao texto fundamental do país, afinal de contas não conferir
efetividade ao texto constitucional é retrocesso impensável no Estado Democrático de Direito. Como
anotaram Callegari e Giacomolli (2012), a supressão das garantias constitucionais
fomentam a “metodologia do terror, repressiva de ideias, de certos grupos de doutrinadores, e
não de fatos”.
Entre esses traços
inquisitivos, conforme já foi dito anteriormente, estão, mesmo após as reformas havidas em 2008 e em 2019, com a
edição das Leis 11.690 e 13.964, respectivamente,
a possibilidade de o juiz ser destinatário da representação.
Igualmente, encerram fatos que
autorizam dizer que a legislação infraconstitucional está em desacordo com a Constituição da República
acerca da efetivação do sistema acusatório, estão os dispositivos atinentes à elucidação
dos fatos – a busca da prova, por parte do juízo –, tais como a possibilidade de o juiz requerer a
abertura de inquérito policial (art. 5º, II, do CPP), ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal,
a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, e determinar, no curso
da instrução ou antes de proferir a sentença, a realização de diligências, para
dirimir dúvida sobre ponto relevante (art. 156, I, II, do CPP), ouvir testemunhas além das indicadas pelas
partes e, inclusive, as referidas pelas testemunhas (art. 209, §1º do CPP).
É certo que a edição das Leis
11.690/2008 e 13.964/2019 buscaram depurar o sistema. Mas, conforme já mencionado, não tocaram em
pontos essenciais da busca pela efetivação do sistema acusatório, tal qual o disposto nos arts.
15619 e 20920 do Código de Processo Penal, dispositivos capitais quanto ao tema gestão da prova[14].
No caso da Lei 13.964/2019,
sobreveio agravante. Conquanto ela tenha introduzido, no cenário jurídico brasileiro, o chamado Juiz
das Garantias, alterando substancialmente as diretrizes da conexão entre investigação e
ação penal, teve sua aplicação suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.
Entre outras medidas, a Lei
13.964/2019, logo apelidada de “pacote anticrime”, trouxe substanciais alterações também no Código de
Processo Penal, como foi explanado alhures, inclusive dispondo expressamente, no art.
3º-A, que o Processo Penal brasileiro passaria a ter estrutura acusatória.
Todavia, diversos dispositivos
marcadamente inquisitivos permaneceram inalterados.
Por exemplo, permaneceram as
possibilidades de o juiz ser destinatário da representação (art. 39, do CPP), requisitar abertura de inquérito
(art. 5º, II, do CPP), ordenar a produção antecipada de provas consideradas
urgentes e relevantes (art. 156, I, do CPP), ainda que antes de iniciada a ação penal, bem como determinar a realização
de diligências, ouvir testemunhas além das indicadas pelas partes, entre outras possibilidades.
Nesse pêndulo de avanços e
retrocessos, ainda que não tenha mexido nos arts. 156 e 209 do Código de Processo Penal, que tratam da
gestão da prova, a Lei 13.964/2009 introduziu, no ordenamento jurídico brasileiro, a figura do
juiz de garantias, fato que retrata o compromisso do legislador em efetivar a estrutura
acusatória do Processo Penal brasileiro.
A propósito, advertiu Pedro
Bertolino quando se referiu à adoção do juiz de garantias no ordenamento
processual em Buenos Aires:
El juez de garantias es uma
figura clave para entender mejor el nuevo sistema procesal penal bonaerense; expresado de outra
manera: su justa comprensión abre, por
lo pronto, una amplia puerta para visualizar la estructura y las finalidades del conjunto sistemático adoptado
por el legislador provincial. (BERTOLINO, 2000).
Entre os doutrinadores
nacionais, destacamos o quanto sublinhou Priscilla Plascha Sá:
A figura do juiz das garantias[15] – dissociada
completamente daquela do juiz do processo
– é o assento da busca por um efetivo e não mais mitológico sistema acusatório, com estrutura (inclusive,
principiológica) que o sustente, para se consagrar no processo penal o modelo
democrático; afastando a possibilidade de,
nesta fase, existir iniciativa probatória do juiz e preservando assim seu distanciamento a fim de evitar influência na
formação dos elementos que venham a
configurar ou antecipar a pretensão de quem quer que seja. (SÁ,
2010).
Não parece ter sido por outra
razão que expressamente consta na Exposição de Motivos do PLS 156/2009 – projeto do novo Código de
Processo Penal, o qual descreve o juiz das garantias ora encampado pela Lei 13.964/2019 ,
que há suma importância em “se preservar ao máximo o distanciamento do julgador, ao menos
em relação à formação dos elementos que venham
a configurar a pretensão de qualquer das partes”.
A Comissão de Juristas faz
anotar que, para “a consolidação de um modelo orientado pelo princípio acusatório, a instituição de um
juiz de garantias, ou, na terminologia escolhida, de um juiz das garantias, era de rigor”. E
continua a exposição de motivos:
Impende salientar que o
anteprojeto não se limitou a estabelecer um juiz de inquéritos, mero gestor da tramitação de
inquéritos policiais. Foi, no ponto, muito
além. O juiz das garantias será o responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela imediata e
direta das inviolabilidades pessoais.
A proteção da intimidade, da
privacidade e da honra, assentada no texto constitucional, exige cuidadoso exame acerca
da necessidade de medida cautelar
autorizativa do tangenciamento de tais direitos individuais.
O deslocamento de um órgão da jurisdição com
função exclusiva de execução dessa
missão atende à duas estratégias bem definidas, a saber: a) a otimização da atuação jurisdicional criminal, inerente à
especialização na matéria e ao gerenciamento
do respectivo processo operacional; e b) manter o distanciamento do juiz do processo,
responsável pela decisão de mérito, em relação
aos elementos de convicção produzidos e dirigidos ao órgão da acusação.
O Juiz das Garantias decorre,
pois, do princípio acusatório, na medida em que se evita que o juiz do processo não seja o mesmo juiz que
monitora a investigação, preservando ao máximo
a imparcialidade do juiz do processo. A finalidade do juiz das garantias,
portanto, é impedir que o juiz que
proferirá a sentença seja contaminado com as provas produzidas sem o contraditório e a ampla defesa. (MARRAFON,
2010).
O Chile adota a figura do Juiz
de Garantias, destacando-se que a reforma do Código de Processo Penal recebeu amplo apoio da
magistratura, “tendo-se investido fortemente em capacitação de magistrados e servidores para
atuar da melhor forma possível dentro da lógica acusatória” (CARVALHO; MILANEZ, 2020).
Todavia, a efetivação do juiz
de garantias no Brasil será adiada, pois por meio de decisão cautelar proferida nas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade (ADIs) 6298, 6299, 6300 e 6305, o ministro do Supremo Tribunal Federal,
Luiz Fux, afirmou que a implementação do juiz das garantias é uma questão complexa que
exige a reunião de melhores subsídios que indiquem os reais impactos para os diversos
interesses tutelados pela Constituição Federal, entre eles, o devido processo legal, a duração
razoável do processo e a eficiência da justiça criminal. O Ministro levou em consideração
também o impacto financeiro da medida.
Eis a parte dispositiva da
decisão liminar:
Ex positis, na
condição de relator das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6305, com as vênias de praxe e pelos motivos expostos:
(a) Revogo a decisão monocrática
constante das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e suspendo sine die a eficácia, ad referendum do Plenário,
(a1) da implantação do juiz das garantias e seus consectários (Artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C,
3º-D, 3ª-E, 3º-F, do Código de Processo
Penal); e (a2) da alteração do juiz sentenciante que conheceu de prova declarada inadmissível (157, § 5º, do
Código de Processo Penal); (...).
Nos termos do artigo 10, § 2º,
da Lei n. 9868/95, a concessão desta medida cautelar não interfere nem suspende os
inquéritos e os processos em curso na presente
data. Aguardem-se as informações já solicitadas aos requeridos, ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral
da República.
Após, retornem os autos para a análise dos pedidos
de ingresso na lide dos amici curae e a designação oportuna de
audiências públicas. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 22 de janeiro de 2020.
(grifos nossos). A suspensão da implantação do juiz das
garantias, bem como da aplicabilidade do próprio artigo 3-A do Código de Processo
Penal, significa mais um momento na história nacional em que a lei parece que terá de se
adaptar à realidade que pretende mudar.
A maior inovação processual
penal trazida pela Lei 13.964/2019 ( que é o juiz das garantias ), na subida da longa ladeira rumo à
efetivação do sistema acusatório, está suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.
Quanto a isso, assim provocou
Lênio Streck:
“Resta, ao final, uma — irônica — pergunta:
A nova lei estaria pecando por cumprir
em demasia a Constituição? Seria uma hiperconstitucionalização?
Tratar-se-ia, ao lado do
neo-inconstitucionalismo, de uma nova “teoria”? No Brasil, cumprir demais os ditames da Carta,
provocando desagrado a determinados
agentes e intérpretes, acarretaria, paradoxalmente, a sua violação? Chegamos a este ponto?” (STRECK,
2020)
Não temos como não concordar
com Streck, posto que a multicitada decisão do Ministro Fux significa um verdadeiro “banho de água
fria” nas pretensões acusatórias do legislador. E mais: significa que não há um engajamento da
magistratura e do Ministério Público em aceitar uma mudança na mentalidade inquisitorial.
Como observam Carvalho e
Milanez (2020), enquanto no Brasil, logo após a edição da Lei 13.964/1990, a Associação de Magistrados
Brasileiros (AMB) e a Associação de Juízes Federais (AJUFE) ingressaram com Ação Direta
de Inconstitucionalidade, impugnando especificamente
o juiz de garantias, no Chile a adoção do instituto teve amplo apoio da magistratura:
No Brasil, por seu turno,
verifica-se uma forte resistência de setores da magistratura – e do Ministério Público – no
que tange à figura do juiz de garantias
e, de forma mais ampla, quanto a reformas que contemplem ideais acusatórios no processo penal.
Com efeito, após a sanção
presidencial à Lei 13.964/19, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação
dos Juízes Federais (AJUFE) ingressaram
com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.298), impugnando especificamente a criação do juiz
de garantias e pretendendo o reconhecimento
da inconstitucionalidade dos arts. 3-A a 3-F, introduzidos pela Lei 13.964/19 no CPP, em posição de forte
resistência quanto ao instituto.
Essa disparidade de posições
institucionais entre a magistratura chilena
e a brasileira serve não apenas como critério de distinção entre a forma de compreensão do instituto de juiz de
garantias nos dois países, mas também é
importante para recordar, sempre, que as reformas legislativas devem sempre estar atreladas às mudanças de
práticas.
Se a inserção do juiz de garantias no Brasil não vier acompanhada de
uma verdadeira abertura das instituições
para o novo, tal como ocorreu no Chile, corre-se o risco de que com os arts. 3-A a 3-F, inseridos no CPP/41 pela
Lei 13.964/2019, mudem-se as coisas e
para que tudo fique como sempre esteve. (CARVALHO; MILANEZ, 2020).
Não se pode perder de vista
que, em termos de processo penal, a história “revela a conjunção carnal entre o
modelo político instituído e o sistema processual posto a marchar” (MELCHIOR,
2013).
Nas palavras de Luiz Lenio
Streck e Rafael Tomaz Oliveira, um Estado Democrático de Direito depende da
concretização das garantias processuais constitucionais e infraconstitucionais:
Um Estado Democrático de
Direito apenas sobrevive, em todo seu esplendor, na medida em que as garantias
processuais penais consagradas no texto das Constituições e das leis processuais têm sua
concretização devidamente realizada pelos Tribunais” (STRECK; OLIVEIRA, 2012).
A esse respeito, no Chile,
anotam Carvalho e Milanez (2020) que:
“O amplo consenso quanto à democratização
do processo penal –A esse respeito, no Chile, anotam Carvalho e Milanez (2020)
que: O amplo consenso quanto à
democratização do processo penal – verdadeira questão de política pública e não
apenas de mera administração da justiça[16] – possibilitou uma forte
introjeção dos ideais acusatórios no processo penal chileno, podendo-se
perceber que, além da modificação legislativa, buscou-se uma ampla modificação
de práticas e de mentalidade”. (CARVALHO e MILANEZ, 2020)
Na aplicação chilena, o instituto
do juiz de garantias “não é somente uma nova etapa do procedimento, mas, antes,
um novo modelo de justiça, no qual os direitos do acusado importam, cabendo ao
juiz de garantias zelar por eles” (CARVALHO; MILANEZ, 2020).
Caberá, então, ao juiz de garantias
chileno comprovar desde a legalidade da prisão e, uma vez formulada a acusação,
controlar a correção de seus vícios formais, passando pela decisão quanto à
produção antecipada de provas requeridas pelas partes (CARVALHO; MILANEZ, 2020).
No caso brasileiro, pela
dicção do art. 3º-B do Código de Processo Penal:
O juiz das garantias é responsável pelo
controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos
individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder
Judiciário, competindo-lhe especialmente:
I - receber a comunicação
imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da
Constituição Federal;
II - receber o auto da prisão
em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no
art. 310
deste Código;
III - zelar pela observância
dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua
presença, a
qualquer tempo;
IV - ser informado sobre a
instauração de qualquer investigação criminal
V - decidir sobre o
requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o
disposto no § 1º deste artigo;
VI - prorrogar a prisão
provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las,
assegurado, no primeiro caso, o
exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto
neste Código ou em legislação especial
pertinente;
VII - decidir sobre o
requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não
repetíveis, assegurados o contraditório
e a ampla defesa em audiência pública e oral;
VIII - prorrogar o prazo de
duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões
apresentadas pela autoridade policial e
observado o disposto no § 2º deste artigo;
IX - determinar o trancamento
do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua
instauração ou prosseguimento;
X - requisitar documentos,
laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da
investigação;
XI - decidir sobre os
requerimentos de:
a) interceptação telefônica,
do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras
formas de comunicação;
b) afastamento dos sigilos
fiscal, bancário, de dados e telefônico;
c) busca e apreensão
domiciliar;
d) acesso a informações
sigilosas;
e) outros meios de obtenção da
prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado;
XII - julgar o habeas corpus
impetrado antes do oferecimento da denúncia;
XIII - determinar a
instauração de incidente de insanidade mental;
XIV - decidir sobre o
recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código.
Compete ao juiz das garantias,
entre outros procedimentos, receber a comunicação imediata da prisão, fazer o
controle da legalidade da prisão em flagrante, zelar pela observância dos
direitos do preso, inclusive determinando que ele seja conduzido à sua
presença; e mais: ser informado sobre a instauração de qualquer investigação
criminal, decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida
cautelar.
Também compete ao juiz das
garantias, na forma do disposto no Código de Processo Penal brasileiro, após a
edição da Lei n. 13.964/2019, decidir sobre o requerimento de produção
antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis; prorrogar,
substituir ou revogar prisão provisória ou outra medida cautelar; prorrogar o
prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso; determinar o
trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para
sua instauração ou prosseguimento; requisitar documentos, laudos e informações
ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação.
Para além disso, competirá ao
juiz das garantias, em substituição ao juiz do processo, decidir sobre
requerimentos de interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas
de informática e telemática ou outras formas de comunicação; afastamento do
sigilo fiscal, bancário, de dados e telefônico; busca e apreensão domiciliar;
acesso a informações sigilosas etc.
Trata-se, portanto, de
tentativa legislativa no sentido de evoluir na depuração do sistema processual
penal brasileiro, de forma a torná-lo cada vez mais coerente com o sistema
acusatório preconizado na Constituição da República.
Busca-se, dessa forma, impedir
que o juiz do processo seja contaminado com as provas produzidas sem o crivo do
contraditório e da ampla defesa, de modo a julgar a causa com mais rigores de
imparcialidade.
Não por outra razão fica
defeso, ao juiz que de qualquer forma praticar atos incluídos nas competências
do juiz das garantias, funcionar no processo.
O Juiz das Garantias[17] é, portanto, o
“responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela das
liberdades públicas, ou seja, das inviolabilidades pessoais/liberdades
individuais frente à opressão estatal, na fase pré-processual” (CASARA, 2010).
O sistema acusatório está,
portanto, umbilicalmente ligado ao desenvolvimento do Estado Democrático de
Direito. Diz-se isso porque o sistema processual penal acusatório é real
mecanismo de limitação ao poder punitivo do Estado, atuando no controle do
comportamento do juiz, nas palavras de Antonio Pedro Melchior:
Trata-se de perceber um
processo penal vocacionado e concebido como um verdadeiro mecanismo de
contenção e regulação do próprio exercício do poder punitivo, o que inclui
atuar, na medida do possível, como interdição ao comportamento inconsciente do
julgador.
Um sistema processual
democrático estabelece o local do julgador, na medida em que fortalece o
diálogo contraditório das partes e o fardo probatório que recai sobre o órgão
da acusação. Esta é a principal estratégia de regulação do poder punitivo estatal
que o julgador presenta.
A sua exclusão da tarefa de
manipular o fato histórico, gerindo a prova que ingressa no processo (e que
posteriormente será objeto de sua valoração), torna-se assim um mecanismo
fundamental de interdição à sua própria economia psíquica inconsciente,
frequentemente mais comprometida com uma hipótese punitiva – desdobramento do
lugar que seu discurso assumiu no processo penal contemporâneo, concebido como
instrumento de uma “guerra contra o crime”. (MELCHIOR, 2013).
O fato de o sistema processual
penal acusatório ter surgido no país concomitantemente com a aquisição de
direitos civis, políticos e sociais de forma inédita, não é mero acaso.
Existe uma relação íntima do
sistema processual penal e o processo de aquisição histórico de direitos no
país, o que encaminha o debate processual penal para a própria transição do
Estado Democrático de Direito e para uma compreensão ampla sobre o sistema
acusatório. (SCHNEIDER, 2014).
A busca pela efetivação do
sistema processual penal acusatório é também a busca pela consolidação do Estado Democrático de Direito.
“É por isso que a gestão da prova pelo juiz é uma questão tão delicada e um
problema tão genuinamente democrático”. (MELCHIOR, 2013).
É claro que a gestão da prova
não é o problema mais delicado no sentido de consolidar o sistema acusatório e,
por conseguinte e vice-e-versa, fortalecer o Estado Democrático de Direito, mas
é o ponto sobre o qual o presente trabalho concentra luzes.
De todo modo, mesmo após a
edição da Lei 13.964/2009, que estabelece expressamente que o processo penal
terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação
e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação, nada mudou em relação
à possibilidade de o juiz requerer a abertura de inquérito policial; ordenar,
mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas
consideradas urgentes e relevantes; determinar,
no curso da instrução, ou antes de proferir a sentença, a realização de
diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante; ouvir testemunhas além
das indicadas pelas partes e, inclusive, as referidas pelas testemunhas, entre
outras medidas.
Um ponto que não pode passar
ao largo é saber se a Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que introduziu o
art. 3º-A no Código de Processo Penal para dizer expressamente que o processo
penal brasileiro passou a ter estrutura acusatória, não teria revogado
múltiplos artigos do referido Código – a exemplo dos arts. 5º, inciso II, 39,
156, inciso I, 209, 209, § 1º, e 385 – e, no caso da legislação especial, também o
art. 3º da Lei 9296, de 24 de julho de 1996, ou seja, aqueles pertinentes à
iniciativa probatória do juiz ou à transgressão de dispositivos outros
incompatíveis com o sistema preconizado no referido art. 3º-A.
A resposta ao questionamento
passa inexoravelmente pela constatação dos elementos fixos identificadores dos
dois principais sistemas examinados ao longo do estudo. No caso do sistema
inquisitivo, de princípio inquisitivo, o caráter prescindível de um acusador
distinto do juiz e a instauração do processo por acusação, notitia criminis ou
de ofício.
No mesmo rastro, o sistema
acusatório, de princípio acusatório, traz como elementos fixos a obrigatória
separação entre acusador e julgador e a forma de iniciar o processo.
Nota-se que a gestão da prova
pelo juiz, embora funcione como elemento diferenciador entre os dois sistemas,
talvez o mais importante de todos, não funciona como o único marco disruptivo
entre um e outro.
Então, os artigos do Código de
Processo Penal que admitem a iniciativa probatória do juiz permaneceriam, em
princípio, inalterados no ordenamento jurídico brasileiro, criando uma
antinomia própria entre a Constituição Federal e o Código de Processo Penal
perfeitamente passível de discussão em sede de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) ou em caráter incidental.
Se, antes, doutrina e
jurisprudência não discrepavam quanto à estrutura acusatória do processo penal
brasileiro, com o advento do art. 3º-A do Código de Processo Penal, tornou-se
ociosa a discussão em torno de tal questão (sistema acusatório).
Voltando para o foco central
da presente investigação – a gestão da prova pelo juiz no processo penal, a
matéria estaria superada, no sentindo de se entender como presente a total
vedação de tal iniciativa ao juiz.
Dois outros pontos remanescem:
admitir-se que a gestão da prova não é o único elemento diferenciador entre o
sistema inquisitivo e acusatório e a segunda parte do art. 3º-A do Código de
Processo Penal com a determinação de que são vedadas ao juiz na fase de
investigação e a substituição da atuação probatória do órgão da acusação.
Com isso, deve-se esclarecer
tendo como foco os artigos do Código de Processo Penal que autorizam a
iniciativa probatória do juiz “no curso da instrução”, a exemplo dos arts. 156,
inciso II, e 209, caput e Parágrafo único.
Os Procuradores da República
Francisco Dirceu Barros e Vladimir Aras[18], em artigo intitulado “O
Princípio Acusatório no Processo Penal”, trazem relevantes informações no que
tange à imparcialidade do julgador e à interferência indevida deste “na
condução de una causa criminal”, à luz dos princípios regentes do sistema
acusatório:
Também no campo da soft law[19],
vale lembrar que, nos Princípios de Bangalore sobre Conduta Judicial[20], de 2001, no âmbito do
valor “imparcialidade”, a regra 2.2
reforça o modelo acusatório de separação de funções no processo penal, ao
recomendar que a “interferência constante” na condução de uma causa criminal
deve ser evitada.
Apesar do conceito de soft
law ser alvo de críticas, como a exemplo da escola positivista, prevalece
atualmente o entendimento majoritário de que os ordenamentos internos sofrem
influência de diplomas não vinculativos, fenômeno estudado sob a alcunha de soft
law.
Portanto, soft law e hard
law[21]
são chamados de instrumentos sobredireito, o que não se confunde com a
enumeração das fontes materiais ou formais do direito internacional público
(como doutrina, costumes, jurisprudência).
De tal forma, passaremos a
seguir a analisar de que modo institutos como soft law e hard law
influenciaram o processo de formação do direito à proteção de dados no cenário
internacional, em comparação ao caso brasileiro.
De fato, o comentário 63 aos
Princípios[22]
diz que: “63. Um juiz tem o direito de
fazer perguntas visando clarificar os assuntos.
Mas se interfere
constantemente e virtualmente, assumindo a condução de um caso civil ou o papel
de persecução em um caso penal, e usa os resultados de seu próprio
questionamento para chegar a uma conclusão no julgamento do caso, o juiz se
torna advogado, testemunha e juiz ao mesmo tempo, e o litigante não recebe um
julgamento justo”. (BRASIL, Ministério Público Federal, 2020.)
A função do juiz é certamente
um dos temas de maior relevância na filosofia do direito, pois guarda estreita
relação com o dizer a justiça. Não é outro senão o magistrado quem aplica a
norma positiva com tamanha legitimidade que não pode ser revista por outro
Poder que não o próprio Poder Judiciário.
A atuação do magistrado não
pode ser movida por paixões ou interesses, sendo-lhe exigível que seja um
eterno vigilante de si mesmo, absolutamente concentrado nas provas de que
dispõe e no arcabouço normativo.
No sistema acusatório, o
julgador deve se colocar entre as partes, mas além de seus interesses, cuidando
para agir com absoluta imparcialidade:
A imparcialidade do julgador
apresenta-se como consequência lógica da adoção da heterocomposição, através da
qual um terceiro imparcial substitui a autonomia das partes, exatamente a
posição que o Estado ocupa no processo por via do juiz.
(...) No modelo acusatório, o julgador, como
representante do Estado-juiz, deve colocar-se entre as partes e além do
interesse delas. Deve agir imparcialmente para bem conceder a prestação
jurisdicional.
Para tanto, são-lhe
asseguradas certas garantias (vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade
de vencimentos), mas também lhe são vedadas certas atitudes, como o exercício
da atividade político-partidária, o recebimento de participações no processo ou
o exercício de outra profissão (exceto uma de magistério), tudo isso
buscando-se assegurar a sua maior independência e imparcialidade. (SILVA,
2005).
No processo penal brasileiro,
se tem que o juiz é elevado “ao ápice da pirâmide, o protagonista, o condutor
do sistema, do processo. Assim, justificam-se seus poderes instrutórios, seu
agir ex officio” (GIACOMOLLI, 2016).
A ampla liberdade de
iniciativa probatória conferida ao juiz, aliada à ideia de que existe uma
verdade real a ser perseguida no processo penal, pode conduzir o magistrado a
não sentenciar com base no que fora estritamente produzido pelas partes, mas
apenas quando satisfeita sua ideia de alcance da verdade[23].
A verdade material ou real é o
que teria acontecido no mundo dos fatos, ou os fatos investigados tal qual
ocorreram. O papel do processo penal, então, seria buscar esses fatos, não se
limitando ao quanto trazido pelas partes.
A verdade[24], no processo penal,
constrói-se com a garantia da dialética das partes vistas num plano da
igualdade. Igualdade que é garantida por diversos instrumentos assegurados
constitucionalmente e que se enquadram no chamado processo penal acusatório.
Perde sentido valer-se o
julgador do princípio da verdade real para arvorar-se do poder de produzir
provas, porquanto assim concretizará a figura do juiz instrutor, incompatível
com as diretrizes esposadas na Constituição. (SILVA, 2005).
Pode-se afirmar que o sistema
acusatório foi positivado pela Constituição Federal de 1988 a partir do momento
em que esta adota uma clara distinção entre as atividades de julgar e de acusar[25], colocando o juiz como
terceiro imparcial e conferindo às partes a exclusividade da iniciativa
probatória.
No mesmo diapasão, o sistema
acusatório traz a oralidade como fator predominante na instrução, seguida da
publicidade dos atos processuais em sua maior parte[26].
Da mesma forma, prestigia o
contraditório como elemento de resistência à imputação (defesa), o afastamento
do método tarifado de apreciação das provas (sistema da prova legal),
ancorando-se o provimento jurisdicional na livre apreciação das provas pelo juiz,
por meio do livre convencimento motivado.
Destaca-se que até o ano de
2013, o conteúdo probatório era assentado, quase que, exclusivamente, na prova
testemunhal, ainda que o Código de Processo Penal disponibilize as partes do
processo um rol de meios de prova.
Entretanto, como já sabido na
cátedra jurídica, percebe-se uma precariedade no conteúdo da prova testemunhal,
por diversas razões e fatores.
Assim, a partir desse
contexto, de muita inquietação acusatória, no que diz respeito à obtenção de
material probatório para instrução do processo criminal, surge o propalado
instituto da colaboração premiada, mediante a aprovação, no Congresso Nacional,
no ano de 2013, da Lei Federal n.º 12.850/2013, que viabiliza a obtenção de
provas de crimes cometidos por organizações criminosas, que, devido ao alto
grau de organização e complexidade, impossibilitavam o descobrimento da verdade
real de muitos desses fatos típicos cometidos sob tais parâmetros fáticos,
situação que se altera após o surgimento no universo legislativo desse
importante e pouco conhecido instituto probatório no processo penal brasileiro[27].
A Lei Federal n.º 12.850/2013,
conhecida como Lei da Delação Premiada, foi criada com o intuito de aprimorar a
investigação criminal no direito processual penal; é por meio dela é que se
consegue atualmente, extrair maiores informações dos crimes cometidos por
organizações criminosas, tendo como meio de prova a colaboração premiada[28] do acusado.
Assim, entende-se por
organização criminosa[29] a conjuntura de quatro ou
mais pessoas que ordenadamente dividem tarefas, ainda que informalmente,
objetivando direta ou indiretamente adquirir vantagem de qualquer natureza,
mediante a prática de infrações penais, em que as penas são superiores a quatro
anos, ou de caráter transnacional (Art. 1º, §1º da Lei 12.850/2013). Já para o
Código Penal, constitui infração penal “associarem-se três ou mais pessoas,
para o fim específico de cometer crimes” (Art. 288).
Hoje, ainda que prevista em
lei, definir associação criminosa é muito complexo, pois não se pode
confundi-la com organização criminosa, a legislação atribui três
características a este grupo: relação de subordinação hierárquica, finalidade
de lucro ilícito e divisão de tarefas, são organizadas como uma empresa que
busca adquirir lucro; já à associação criminosa não tem qualquer referência à
sua estrutura, dificultando assim a prova de sua existência.
No desejo de comprovação de
uma organização criminosa[30] surge a lei de
colaboração premiada, a qual visa auxiliar a obtenção de tal prova, por meio
das referências dadas pelo réu. Entretanto, para que ocorra a colaboração é
necessário que o acusado assine conjuntamente com seu procurador um termo de
colaboração[31].
Prova em sentido estrito
requer: presença do juiz competente, iniciativa autorizada pelo sistema
acusatório, acatamento aos direitos fundamentais notadamente, o contraditório e a defesa ampla
com debate efetivo das partes, inexistência de vedação constitucional, respeito
ao procedimento legal previsto, aptidão para influir na decisão judicial, não
somente sob o ponto de vista subjetivo, mas objetivo, sob a forma de argumento
válido (conforme o sistema) e científico (verdadeiro).
Confrontando esses conceitos
com a colaboração premiada[32] da Lei 12.850/2013, é
possível perceber que ela é eivada de tríplice déficit. Para essa
conclusão, segue-se o parâmetro adotado por este texto, positivista.
A base é o direito positivo, o
que está posto. Eis os dispositivos, portanto, que orientam essa ilação: (1)
averbando que a confissão não pode, sozinha, justificar condenação, no Código de Processo Penal: (a) o art. 158:
“quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de
delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”; (b) o
parágrafo único, do art. 186: “o silêncio, que não importará em confissão, não
poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”; (c) o art. 197: “o valor da
confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de
prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas
do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou
concordância”; (d) o art. 198: “o
silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento
para a formação do convencimento do juiz”; (e) o art. 200: “a confissão será divisível e retratável, sem
prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das provas em
conjunto”;
(2) preconizando que os elementos obtidos fora
do processo penal não podem, isoladamente, autorizar condenação, art. 155, do
Código de Processo Penal, cujo teor aduz que “o juiz formará sua convicção pela
livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo
fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na
investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”;
e
(3) destacando que a sentença condenatória não
pode ter por base somente a colaboração premiada, o § 16, do art. 4º, da Lei nº
12.850/2013, com redação forte no sentido de que “nenhuma sentença condenatória
será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”.
Assim, a colaboração premiada,
sob essa perspectiva, tem valor diminuto. Metaforicamente, é axiologicamente
reduzido ao cubo, três vezes menor que qualquer elemento constante de uma
investigação preliminar.
Já para Nucci (2013), a
colaboração é um “testemunho qualificado, feito pelo indiciado ou acusado.
Naturalmente, tem valor probatório, especialmente porque houve admissão de
culpa pelo delator”.
Portanto, tendo em vista que a
temática, objeto do presente estudo, é recente, em razão da legislação contendo
a colaboração premiada, salienta-se que os estudos científicos a esse respeito
se encontram em estágio embrionário, razão pela qual se dispensa maiores
comentários a esse respeito.
Nesse norte, o presente estudo
tem como base metodológica a avaliação de disposições legislativas e
bibliográficas, referentes à temática aqui retratada. Sendo o método dedutivo
abordado pelo viés histórico e dialético, os quais se mostram mais eficazes na
determinação do surgimento, conceito, classificação e efeitos legais da Lei de
colaboração premiada.
Pode-se afirmar que
anteriormente ao ano de 2013, o instituto da colaboração premiada já era
utilizado no ordenamento jurídico brasileiro, como se percebe na Lei 9.807/1999
(Lei de Proteção à Vítima e às Testemunhas) que trata no artigo 13 sobre o
perdão judicial[33],
e no artigo 14 sobre redução da pena em casos de condenação, desde que o
acusado tenha atendido aos resultados necessários previstos na lei.
Ainda, a Lei 7.942/1986 que
versa sobre os Crimes contra o Sistema Financeiro também aborda no artigo 25,
§2º a redução de pena devido à efetiva colaboração do indiciado. No artigo 8º,
parágrafo único da lei que expõem sobre Crimes Hediondos[34] (Lei 8.072/1990) tem-se a
presença da delação premiada, mediante redução de pena.
Já no artigo 16, parágrafo
único da Lei 8.137/1990[35] vislumbra-se a redução da
pena quando o coautor ou partícipe revela através da confissão a trama
delituosa nos Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e das Relações de
Consumo.
Ademais, nos crimes de Lavagem
de Capitais[36]
(Lei 9.613/1998) e Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) o instituto em análise
também se faz presente, nos artigos 1º, §5º e artigo 41, respectivamente.
De toda sorte, a gestão da prova no processo penal é uma garantia para pleno cumprimento do princípio do devido processo legal e para decisões judiciais calcadas na verdadeira justiça[37].
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Notas:
[1] Toda verdade é relativa e diante da
impossibilidade de se constatar efetivamente o ocorrido, deve o magistrado,
utilizando-se da sua liberdade probatória, tentar trazer aos autos, ao menos,
algo que conforme a sua noção ideológica obtida com as provas colacionadas (a
verdade dos autos) com a realidade (a verdade objetiva), não podendo,
obviamente, por conta dos deveres de efetividade e de razoável duração do
processo, se estender demasiadamente na tentativa de diligência que sequer
tenham indícios de obter um resultado proveitoso. Ao final, quando da certeza
de que coletou as provas possíveis aos autos e/ou que mesmo que existem outras,
o resultado do processo não seria diferente do escolhido, deve julgar com a
prova neles constantes.
[2]Daniel de Castro conceitua poderes
instrutórios como aqueles exercidos pelo juiz ao determinar, de ofício, a
realização de diligências que servem à instrução do processo, com o objetivo de
formar seu convencimento. No direito
brasileiro nenhum poder é absoluto, dessa forma, é comum ver doutrinadores tentar traçar limites à atividade probatória do juiz,
de forma a direcioná-la e dar segurança jurídica aos litigantes. Como tratado
no capítulo anterior, alguns juristas
entendem ser o princípio do dispositivo o maior
limitador do poder instrutório judicial, contudo, já fora visto que o postulado não
apresenta qualquer empecilho, já que se
relaciona à possibilidade das partes de dispor sobre o direito material, e
não propriamente ao poder analisado. Em
síntese, outros limites apresentados pela doutrina são: a)Imparcialidade:
Entende-se que a atividade instrutória do juiz se relaciona com algum
envolvimento subjetivo na causa, o que poderia ferir sua seriedade e
credibilidade no julgamento. Ao
determinar a produção da prova o juiz age não como pessoa interessada, mas como
Estado que busca a verdade, o que é permitido e imposto pelo ordenamento
jurídico. Outrossim, não há como saber previamente o resultado da prova e à
qual direito reclamado ela beneficiará. A finalidade da prova é o convencimento do juiz, assim, ao exercer seu poder instrutório
objetivo sua própria segurança para realizar um julgamento justo, e não
favorecimento de alguma das partes. b) Fatos e circunstâncias constantes dos
autos: O art. 131 do CPC/1973 dispõe que o juiz, ao apreciar livremente as provas, deve atender aos fatos
e circunstâncias constantes dos autos. Ocorre que tal dispositivo legal se
relaciona à valoração da prova e não à atividade probatória. Apresenta limitação ao convencimento do juiz, que deverá
estar fundamentado em elementos dos autos, e não em fatores externos. O
objetivo é dar segurança às partes para que não sejam surpreendidas com não
reconhecimento de seus direitos em decisão fundamentada em algo sobre o que não puderem se manifestar ou
não tinham conhecimento, o que feriria,
inclusive, o contraditório e a ampla defesa.
[3] Outrossim, nas situações em que
julgador não estiver convencido por nenhuma das provas das partes, ou seja,
quando não houver elementos suficientes nem para deferir, nem para indeferir, o
pedido, poderá determinar a produção das provas faltantes ao seu convencimento.
Evidente, porém, que, como toda decisão judicial,
o juiz deverá fundamentar e justificar a sua atividade instrutória,
evitando-se, assim, o benefício indevido
de um dos litigantes e/ou a imparcialidade do julgador.
[4]
Conforme Malatesta “verdade” e
“certeza” não se confundem, já que
verdade, em geral, é a conformidade da noção ideológica com a realidade, enquanto a crença na percepção
desta conformidade é a certeza. De
qualquer forma há de se reconhecer que a verdade é norteadora do processo uma vez que se pode
balizar validade a um processo que
esteja maculado com mentira. O direito e a justiça não se prestam para
tanto. De forma a se alinhar aos ditames
mundiais nossa Lei Suprema, procurou
tutelar os direitos do cidadão no que tange a buscar a verdade, com rigorismo, tratando-os como princípios
constitucionais que asseguram esses
direitos aos cidadãos, que quando processados, por qualquer motivo, serão respeitados.
Fica, assim, evidente a repulsa ao emprego de meios agressivos que vão de encontro aos direitos
humanos. Veja o exemplo da tortura que
foi meio largamente utilizado por vários sistemas jurídicos durante a história
da humanidade e até mesmo no Brasil.
Hoje a Lei Maior garante ser um direito do
cidadão e um dever de o Estado não submeter ninguém a tortura, pelo que
dispõe o artigo 5º, III, da C.F/1988.
[5] O
sistema inquisitório tem por característica marcante a figura do juiz, o qual
possui amplos poderes, sem imparcialidade, confundindo-se com a figura do
acusador, na medida em que produz a prova. Julga, portanto, a partir da prova
que ele mesmo produziu, sem necessário contraditório e ampla defesa. O sistema
inquisitivo é caracterizado pela ausência dos princípios do contraditório e da
ampla defesa. Neste sistema o juiz concentra todas as funções, ele é
investigação, acusação, defesa e julgador.
[6]
No processo Penal, a verdade real busca a apuração de fatos, que mais se
correlacionam com algum ocorrido. Para a aplicação desse princípio, é
necessário que se utilize todos os mecanismos de provas para a compilação
idêntica dos fatos. Tal concepção implica a atribuição de poderes
inquisitoriais ao juiz, a fim de que este possa, munido de seu livre
convencimento, descobrir a verdade real dos fatos e, assim, fazer justiça.
Logo, a verdade real aparece como justificativa do livre convencimento do juiz.
[7]
Embora a teoria garantista seja
“um parâmetro de racionalidade, justiça e de legitimidade da intervenção punitiva”, na prática, há
reiterado desrespeito a este sistema, o que o torna simples referência com ideologias
mistificadas. A partir dessa consideração, a fim de destacar as formas pelas
quais o garantismo deve atuar, Ferrajoli
resgata os três significados da teoria, quais sejam, o modelo normativo, a teoria jurídica e a
filosofia política. O primeiro deles,
nada mais é que um modelo normativo que busca a estrita legalidade como meio à contenção do Estado no
que tange às intervenções nas garantias
individuais, maximizando-as, dessa forma. Logo, todo sistema que normativamente e efetivamente atente a este
fim, é garantista. É sob essa ótica que
surge a ideia do garantismo como modelo limite, a partir da qual há a
concepção de que existem diversos níveis
de garantismos pelos quais se pode classificar um Estado, conforme as garantias constitucionais e a
atuação deste sob os direitos individuais,
sobretudo a liberdade. Já o
segundo significado do garantismo, como teoria jurídica, possui o condão de estabelecer a validade e a efetividade das
normas. Isso porque, há a nos Estados
hodiernos a tendência de estabelecer modelos normativos garantistas e
realizar práticas operacionais destas
normas, contrárias ao garantismo, motivo pelo qual houve a necessidade do garantismo como
“teoria da divergência entre normatividade
e realidade, entre direito válido e direito efetivo, um e outro
vigentes”. É sob esse viés que o
garantismo atua como legitimação, ou perda desta, do direito penal.
[8] Na Common Law compete ao juiz
não apenas o controle da admissibilidade
da evidence, mas também, o papel de direcionar o júri na sua apreciação.
Impende que seja criterioso nas
intervenções e que jamais indique ao júri o modo de decidir. Cabe ao juiz tecer
as considerações que julgue apropriadas a respeito da prova oral produzida em juízo. A opção por
alertar os jurados dependerá das circunstâncias
do caso, do conteúdo e qualidade da evidence da testemunha; o que no
mais das vezes será feito por intermédio
da corroboration ou judicial note. O
conceito de corroboration pode ser expresso pela evidence oriunda de uma fonte independente. Em alguns casos, a
evidence deve ser avaliada por mais de um
meio para que a convicção seja sustentável. O Perjury Act de 1911
é exemplo contundente: uma pessoa não
pode ser condenada por perjúrio com base na evidence de apenas uma testemunha. O alerta do juiz para que os
jurados busquem a corroboration é conhecido
como judicial warning.
[9]
Nesse diapasão, porém a de se
lembrar que princípio constante no
artigo 5º, LIV, da Magna Carta que revolucionou o processo de forma geral foi o princípio do devido processo
legal. Retirado das entranhas do Direito
Anglo-americano, o due process of law contêm em suas premissas
sem embargos de outras: a) o direito a
citação, ato indispensável para regular formação da relação processual; b) direito de arrolar testemunhas
e apresentar outras provas; c) direito
ao contraditório e a ampla defesa; d) direito de ser julgado com base em
provas legitimamente obtidas; e) o
direito do juiz natural; f) a indeclinabilidade da prestação jurisdicional quando buscada; g) direito d
peticionar e recorrer; h) direito à decisão
com eficácia de coisa julgada.
Dessa forma, sagrou-se com o advento da Constituição Federal de 1988, modelo adequado e justo na
persecução processual na busca da
verdade no processo civil.
[10]
A Constituição Federal de 1988
expressa no artigo 5º, inciso XXXVIII, princípios específicos para o júri,
quais sejam: plenitude de defesa, sigilo das votações, soberania dos vereditos
e competência mínima para o julgamento de crimes dolosos contra a vida.
Especialmente, sobre os princípios: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das
votações; c) a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos
crimes dolosos contra a vida.
O princípio do sigilo das votações, como o próprio nome
indica, assegura que o voto dos jurados seja secreto. Assim, quando for a hora
de decidir sobre a condenação ou absolvição do réu, a votação ocorre em um
ambiente separado, a "sala secreta". Na falta de sala especial, o
juiz determinará que o público se retire para que a votação ocorra no plenário
esvaziado. Os veredictos são os votos dados pelos jurados. Então, o princípio
da soberania dos veredictos significa que a decisão do Conselho de Sentença é
que prevalece.
[11] O sistema acusatório caracteriza-se
pela separação das funções de acusar, julgar, defender. O juiz é imparcial e as
provas não possuem valor pré-estabelecido, podendo o juiz apreciá-las de acordo
com a sua livre convicção, desde que fundamentada. O sistema acusatório é
aquele que se pauta num procedimento de partes muito bem definidas, cada uma
com sua função, onde o julgador se vê distante da produção de provas, sendo ela
ônus da acusação e defesa, respeitando o contraditório, a oralidade e
publicidade dos atos do processo.
[12]
O advento da Lei nº 13.964/2019,
foi introduzido o acordo de não persecução penal no Código de Processo Penal,
nas disposições cristalizadas no art. 28, do CPP. Devemos distinguir, contudo, este instituto,
de outro, com designação similar, porém com natureza diversa, que é o acordo de
não persecução penal referido no § 4º, do art. 4º, da Lei nº 12.850/2013.
Comecemos por examinar este último. O apontado enunciado, contido na Lei de
Controle do Crime Organizado, alude que o Ministério Público poderá deixar de
oferecer denúncia se a proposta de acordo de colaboração referir-se à infração
de cuja existência não tenha prévio conhecimento e o colaborador: (1) não for o
líder da organização criminosa; e (2)
tiver sido o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos do art. 4º, da Lei nº 12.850/2013.
[13]
Os direitos humanos do acusado,
previstos na Constituição Federal estão sendo afetados pelas leis 11.719/08 e 1
1.689/08 as quais, em conjunto, promoveram uma ampla reforma do Código de
Processo Penal. A primeira alterou a forma de processamento dos crimes comuns
ea segunda a forma de processamento dos crimes dolosos contra a vida. A reforma processual penal ocorrida em 2008 no
Brasil foi orientada pelo Código Processual Penal Modelo para Iberoamérica, e
elaborada a partir dos preceitos da Convenção Europeia de Proteção aos Direitos
do Homem e das Liberdades Individuais e da Convenção Americana de Direitos
Humanos, ou seja, a partir dos entendimentos europeus e não brasileiros do
significado da categoria direitos humanos.
[14]
A distinção entre a verdade
material e formal vem sendo
sistematicamente diluída. A reconstrução dos fatos pelas partes do
processo civil deve ser tão rigorosa
quanto aquela que é buscada dentro do processo penal, haja vista que a jurisdição tem como escopo
pacificar a sociedade entregando aos
litigantes a verdadeira justiça. Dizer que a decisão do Juiz é calcada
em verdade aparente é negar as partes à
dignidade e o respeito. Como é possível imaginar que o Judiciário possa motivar suas decisões
baseando-se em provas dúbias.
[15]
De acordo com as novas regras, o
juiz das garantias deverá atuar apenas na fase do inquérito policial e será
responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela
salvaguarda dos direitos individuais dos investigados. Para o colegiado, as
regras, introduzidas pelo Pacote Anticrime (Lei 13964/2019), são uma opção
legítima do Congresso Nacional visando assegurar a imparcialidade no sistema de
persecução penal. O entendimento foi de que, como a norma é de processo penal,
não há violação do poder de auto-organização dos tribunais, pois apenas a União
tem competência para propor leis sobre o tema. Em (19/12/2023), o acórdão da
decisão que reconheceu a constitucionalidade do Juiz das Garantias. Trata-se de
mais uma vitória da OAB Nacional, uma vez que as ações diretas de
inconstitucionalidade (ADI) 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 teve a entidade como amicus
curiae.
[16] O direito fundamental de acesso à justiça significa
proporcionar à popularização da Justiça não só na garantia de meios informais e
baratos, mas também de garantir que discussões complexas referentes aos
direitos constitucionalmente eleitos e outros direitos fundamentais sejam pauta
do processo judicial estruturado, recebendo a mesma atenção das autoridades
judiciais que temas já consolidados. Não há como negar que o tempo é elemento
essencial do processo, como tem sido reconhecido pela doutrina processual desde
seus tempos mais remotos. E por este motivo, também desde os tempos mais
remotos, a preocupação com a demora excessiva do pronunciamento da autoridade
sobre a solução de uma lide tem sido um dos principais motores propulsores da
modernização das vias processuais;
[17]
Supremo Tribunal Federal (STF)
decidiu em (23.08.2023) validar o mecanismo do juiz das garantias e determinou
prazo de doze meses, prorrogável por mais doze, para implantação obrigatória
pelo Judiciário de todo o país. O modelo está previsto no Pacote Anticrime,
aprovado pelo Congresso Nacional, em 2019, e prevê que o magistrado responsável
pela sentença não é o mesmo que participa da fase de inquérito.
A adoção do juiz das garantias estava prevista para
entrar em vigor no dia 23 de janeiro de 2020, no entanto, foi suspensa por
liminar do ministro Luiz Fux, relator do caso. Agora, o Supremo julgou o caso
definitivamente. A aprovação ocorreu após a divulgação de ilegalidades que
teriam sido cometidas durante as investigações da Operação Lava Jato.
[18]
Para Vladimir Aras (2011, p.428,
apud LIMA, 2017) existe quatro espécies de colaboração premiada, sendo
assim especificadas: a) delação premiada
(chamamento do corréu): além de confessar seu envolvimento na prática
delituosa, o colaborador expõem as outras pessoas implicadas na infração penal,
razão pela qual é denominado de agente revelador; b) colaboração para
libertação: o colaborador indica o lugar onde está mantida a vítima
sequestrada, facilitando sua libertação; c) colaboração para localização e
recuperação de ativos: o colaborador fornece dados para a localização do
produto ou proveito do delito e de bens eventualmente submetidos a esquemas de
lavem de capitais; d) colaboração preventiva: o colaborador presta informações
relevantes aos órgãos estatais responsáveis pela persecução penal de modo a
evitar um crime, ou impedir a continuidade ou permanência de uma conduta
ilícita.
[19]
Dentre os instrumentos de
direito internacional que influenciam ou deveriam influenciar o ordenamento
jurídico interno, destacam-se o soft law e o hard law. Nesse
contexto, o Soft Law é definido como um instituto do direito
internacional que corresponde ao processo de criação de um instrumento
normativo, mas sem força de lei – porquanto não gera sanção –, capaz, no
entanto, de produzir efeitos. O Professor Dr. Miguel Santos Neves conceitua o soft
law como “um processo de produção de standards normativos, que têm como
vocação a regulação de comportamentos sociais, sem caráter vinculativo e cujo
incumprimento não estão associados a sanções jurídicas”.
Desta forma, entende-se por soft law normas que
são consideradas como recomendações, cujo teor levam a preceitos que incentivam
determinadas condutas, sem, no entanto, estabelecerem uma obrigatoriedade ou
sanção pelo seu descumprimento. Entretanto, faz-se imperioso destacar que não
há um conceito único para o termo “soft law” e que para os fins do
presente estudo, abordaremos apenas as características fundamentais do
instituto. Para Shelton, o termo soft law se refere a qualquer instrumento
internacional, além dos tratados, que contenham princípios, normas, padrões ou
outras declarações de comportamento esperado. Sob esse ponto de vista,
orientações internacionais, sem a força vinculativa de tratados, possuem o
condão de influenciar nas instituições de direito interno.
[20] Os Princípios de Bangalore para a Conduta Judicial emergiram dessa reunião. Os principais valores reconhecidos nesse documento são: independência, imparcialidade, integridade, propriedade, igualdade, competência e diligência. Os Princípios de Bangalore para a Conduta Judicial emergiram dessa reunião. Os principais valores reconhecidos nesse documento são: independência, imparcialidade, integridade, propriedade, igualdade, competência e diligência. Esses valores são seguidos pelos princípios relevantes e pelas declarações mais detalhadas relativas à sua aplicação.
[21]
O caráter cogente das cláusulas
insertas nas Convenções é denominado como hard law, posto que escritas e
juridicamente impositivas aos Estados que as ratificam, enquanto as que ainda
não tem uma conformação jurídica e cuja aceitação paira discussão, podem ser
denominadas de soft law, desprovidas de sanção aos Estados. O jus cogens
são normas que não podem sofrer derrogação por parte dos Estados, o soft law
são instrumentos de importante influência, porém desprovidos de eficácia
normativa, e o hard law são instrumentos normativos com força cogente. A
diferença entre "hard law" (instrumentos normativos com força
cogente, que vinculam os Estados parte) e "soft law"
(instrumentos desprovidos desta eficácia), o que não se confunde com a
enumeração das fontes materiais ou formais do direito internacional público
(tais como doutrina, costumes, jurisprudência), nem com qualquer teoria sobre a
rigidez ou flexibilidade na interpretação das respectivas normas, nem com o
conceito de "jus cogens" (normas que não podem sofrer qualquer tipo
de derrogação por parte dos Estados, dado seu significado fundamental para a
comunidade internacional).
[22] A declaração de princípios que se
segue, e que se baseia em seis valores fundamentais e universais, juntamente
com as declarações sobre a aplicação de cada princípio, destinam-se a fornecer
orientação aos juízes e a proporcionar ao judiciário uma estrutura para
orientar a conduta judicial, seja por
meio de um código de conduta nacional ou outro mecanismo. As declarações sobre a aplicação de cada
princípio não foram elaboradas para terem uma tão natureza genérica a ponto de serem de pouca
orientação, nem tão específica que as torne
irrelevantes para as numerosas e variadas questões que um juiz enfrenta
em sua vida diária. Eles podem, no
entanto, precisar ser adaptados para se adequar às circunstâncias de cada jurisdição.
Nem toda a transgressão justifica uma atuação disciplinar.
[23]
Questiona-se sobre quais seriam
os limites da iniciativa postulatória do juiz na atividade substitutiva da
atuação do Ministério Público, a partir da vigência da Carta Política
brasileira de 1988, no que tange à definição de funções investigatórias e
acusatórias e da distribuição dos ônus processuais às partes, mais próximo de
um sistema acusatório do que da prevalência inquisitorial. Precisamos encontrar
o equilíbrio entre a sociedade de riscos e conseguir compensar o garantismo
processual, e de outro viés, atender às exigibilidades transitórias dos
momentos emergenciais. Álvaro Mayrink da Costa apontou que o ponto de
equilíbrio está no princípio da proporcionalidade, pois a primacial missão do
Direito Penal é uma só, a tutela de bens jurídicos e, que o fim da pena
privativa de liberdade só tem dois endereços, a saber: a tutela de bens
jurídicos e o controle social.
[24] Um princípio que mantém praticamente
o conteúdo, inobstante todo avançar dos demais, é o da verdade formal ou do
dispositivo probatório. Ainda hoje, sua melhor expressão é o brocardo latino quod
non est in actis non est in mundo (“o que não está nos autos não está no
mundo”), tendo a intenção de estabelecer os limites da prova utilizável pelo
julgador para proferir sua decisão, ou seja, a prova constante dos autos. Ele
indica que, apesar de tantas fontes de dados disponíveis, ainda mais depois do
advento da internet, mensagens SMS, TVs online, a cabo e até
digital, deve o magistrado, quando for decidir, ater-se às provas contidas,
ainda que implicitamente, nos autos. Ele é sempre associado, em reverso, ao
princípio da verdade real, mas entendê-los como contrários não corresponde à
melhor técnica. O princípio da verdade real, apesar dessa denominação, não
guarda tanta sincronia com “a real verdade”, a verdade fática, objetiva ou que
realmente ocorreu. Preferimos a denominação que de imediato dá sua noção:
princípio da livre iniciativa probatória. Através dele, o magistrado não está
obrigado a se satisfazer apenas com as provas trazidas ou solicitadas pelas
partes, podendo assumir uma postura ativa na sua produção. Ele possui liberdade
para determinar a vinda aos autos de documento que sabe existir ou presume a
existência, de ouvir testemunha sequer apontada pelas partes, a realização de
perícias não requisitadas etc., desde que pertinentes ao fato.
[25]
Os sistemas processuais penais
referem-se ao método pelo qual as diversas sociedades solucionam juridicamente
as questões que envolvam a aplicação do Direito Penal. Nessa toada, os
diferentes tipos de sistema processual penal, de acordo com seu grau de
flexibilidade e de garantias, são adotados pelos Estados a depender de seu
momento social e político. Doutrinariamente são apontados 03 (três) sistemas
processuais penais, quais sejam: inquisitivo, acusatório e misto.
[26]
A Lei Federal n.º 12.850/2013,
conhecida como Lei da Delação Premiada, foi criada com o intuito de aprimorar a
investigação criminal no direito processual penal; é por meio dela é que se
consegue atualmente, extrair maiores informações dos crimes cometidos por
organizações criminosas, tendo como meio de prova a colaboração premiada do
acusado. Destaca-se que até o ano de 2013, o conteúdo probatório era assentado,
quase que, exclusivamente, na prova testemunhal, ainda que o Código de Processo
Penal disponibilize as partes do processo um rol de meios de prova. Entretanto,
como já sabido na cátedra jurídica, percebe-se uma precariedade no conteúdo da
prova testemunhal, por diversas razões e fatores. Assim, a partir desse
contexto, de muita inquietação acusatória, no que diz respeito à obtenção de
material probatório para instrução do processo criminal, surge o propalado
instituto da colaboração premiada, mediante a aprovação, no Congresso Nacional,
no ano de 2013, da Lei Federal n.º 12.850/2013, que viabiliza a obtenção de
provas de crimes cometidos por organizações criminosas, que, devido ao alto
grau de organização e complexidade, impossibilitavam o descobrimento da verdade
real de muitos desses fatos típicos cometidos sob tais parâmetros fáticos,
situação que se altera após o surgimento no universo legislativo desse
importante e pouco conhecido instituto probatório no processo penal brasileiro.
[27] Da forma como está, fica claro que o
sistema brasileiro permanece preso às
amarras do inquisitorialismo, como afirmam Coutinho e Kant de Lima, que chegam a conclusões semelhantes a
partir de pressupostos teóricos
inteiramente distintos. Como refere Lopes Jr., “o processo não pode
mais ser visto como um simples
instrumento a serviço do poder punitivo (direito penal), senão que desempenha o papel de
limitador do poder e garantidor do
indivíduo a ele submetido” (Lopes Jr., 2008). Afinal, o sistema penal
em um Estado Democrático de Direito deve
ser um sistema de garantias, onde a
resposta penal somente deve surgir a partir da aplicação de um modelo
que exclua a arbitrariedade tanto no
momento de elaboração da norma quanto no
de sua aplicação.
[28] De acordo com o artigo 4º da Lei
12.850/2013, norma que unificou a legislação sobre a colaboração premiada, para
que o colaborador receba os benefícios expressos na lei é necessário que as
informações fornecidas tragam um dos seguintes resultados: identificação de
outros criminosos; revelação de estrutura e tarefas da organização criminosa;
prevenção de ocorrência de outros crimes; recuperação de valores; localização
de eventuais vítimas. O mesmo artigo, em
seu §8º, diz que o magistrado pode recusar a homologação da proposta que não
atender aos requisitos legais, ou pode adequá-la ao caso. O juiz, ao proferir a
sentença, deverá apreciar os termos do acordo homologado e se o mesmo teve
eficácia, conforme registra o §11º do artigo 4º.
[29]
Organização criminosa está
definida como a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e
caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de
obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a
prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos,
ou que sejam de caráter transnacional. São,
portanto, elementos constitutivos de uma organização criminosa: 1) associação
de quatro ou mais pessoas; 2) estrutura ordenada; 3) divisão de tarefas, mesmo
que informalmente; 4) objetivo de obtenção de vantagem de qualquer natureza; 5)
prática de infrações penais com penas máximas superiores a quatro anos ou de
caráter transnacional.
[30]
O artigo 2º, a, desse tratado
(Convenção de Palermo), dispõe que organizações criminosas são grupos de
pessoas, existentes há algum tempo e atuando com o propósito de cometer uma ou
mais infrações graves e com objetivo de obter benefício econômico ou material
de qualquer forma. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação
criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o
procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940
(Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras
providências. Assim, para além de tipificar o crime de organização criminosa,
apesar de o Brasil já internalizar a Convenção de Palermo há mais de uma década,
o diploma legal tratou dos meios de obtenção de prova especiais a serem
utilizados no enfrentamento da criminalidade organizada, entre eles o da
colaboração premiada.
[31]
O atual ministro da Justiça,
Ricardo Lewandowski, anunciou em (19.3.2024) que o acordo de delação premiada
do ex-policial militar Ronnie Lessa foi homologada pelo Supremo Tribunal
Federal, após uma audiência do policial com o ministro responsável pelo caso,
Alexandre de Moraes. Delação premiada do ex-policial Ronnie Lessa foi
homologada pelo STF, diz Lewandowski.
[32] Em exame da colaboração premiada em
confronto com o que seja prova, outra verificação não será possível senão a de
considerá-la de valor inferior aos elementos de informação do inquérito
policial, seja pelos dispositivos legais que delimitam seu baixo valor, seja
pelo texto constitucional que preconiza garantias fundamentais
indeclináveis incompatíveis com o
instituto, seja ainda porque a colaboração é, como regra, obtida
clandestinamente, sem a presença do imputado, considerado o ponto de vista do
delatado que, somente dela fica sabendo, depois de oferecida a denúncia ou após
sentir a violência estatal por medida cautelar patrimonial ou prisional.
[33]
Perdão judicial é prerrogativa
do juiz que mesmo reconhecendo a prática do crime deixa de aplicar a pena,
desde que, preenchidas as circunstâncias da lei e quando as consequências do
delito atinjam o agente, de tal forma que o seu sofrimento por si só, já seja
punição suficiente. A pena é a sanção característica da transgressão considerada
crime, no dizer de Maggiore. Com efeito, é da essência do perdão judicial e
não-aplicação da pena, como se dessume dos dispositivos pertinentes do Código
Penal. Lei 12.850/13, Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes,
conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa
de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha
colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo
criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes
resultados: (…)Lei 9.613/98 Art. 1º, § 5º
A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime
aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou
substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor,
coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando
esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação
dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou
valores objeto do crime. (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012).
[34]
Em Direito Penal, é um adjetivo
que qualifica o crime que, por sua natureza, causa repulsa. O crime hediondo é
inafiançável e insuscetível de graça, indulto ou anistia, fiança e liberdade
provisória. São considerados hediondos: tortura; tráfico de drogas; terrorismo;
homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda
que cometido por um só agente; homicídio qualificado; latrocínio; extorsão
qualificada pela morte; extorsão mediante sequestro e na forma qualificada;
estupro; atentado violento ao pudor; epidemia com resultado morte; genocídio;
falsificação; corrupção ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos
ou medicinais. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos
artigos 1°, 2° e 3° da Lei n° 2.889/56, tentado ou consumado (Veja Código Penal
- Decreto-Lei n° 2.848/40).
[35] Assim dispõe o art. 1º, I e II, da
Lei 8.137/1990: “Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir
tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes
condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades
fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos
inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro
exigido pela lei fiscal”. Posto isso, cabe ressaltar que uma denúncia deve ser
recebida se atendido seu aspecto formal (artigo 41 c/c 395, I, do CPP),
identificada a presença tanto dos pressupostos de existência e validade da
relação processual, quanto das condições para o exercício da ação penal (artigo
395, II, do CPP), e a peça vier acompanhada de lastro probatório mínimo a
amparar a acusação (art. 395, III, do CPP).
[36] A denominação de lavagem de dinheiro
surgiu, pois o dinheiro adquirido de forma ilícita é sujo, e necessita ter uma
aparência de legalidade; ou seja, precisa ser lavado para parecer limpo.
Um exemplo desse tipo de crime é a compra, com dinheiro
ilícito, de obras de arte ou produtos de luxos para revendê-los em seguida,
para dar a aparência de uma operação comercial legal. A pena prevista é de 3 até 10 anos de
reclusão e multa. A Lei prevê penas maiores para os casos nos quais o crime
ocorra de forma reiterada ou por intermédio de organização criminosa. Se o
acusado colaborar espontaneamente, prestando esclarecimentos que conduzam à
apuração das infrações penais, à identificação de outros participantes, ou à
localização dos bens ou valores, poderá ser beneficiado com redução de até 2/3
da pena, regime prisional mais brando, não aplicação da pena, ou substituição
por penas alternativas.