Entre o ser e o nada

Sartre foi quem melhor descreveu a essência dos dramas da liberdade. Sua teoria definiu que a primeira condição da ação é a liberdade. O que está na base da existência humana é a livre escolha que cada homem faz de si mesmo e de sua maneira de ser. A liberdade provém do nada que obriga o homem a fazer-se, em lugar de apenas ser. Afinal, o homem é inteiramente responsável por aquilo que é, não tem sentido as pessoas quererem atribuir suas falhas aos fatores externos, como a hereditariedade ou a ação do meio ambiente ou a influência de outras pessoas. O valor da vida é, enfim, o sentido que cada homem escolhe para si mesmo.

Fonte: Gisele Leite

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Jean-Paul Sartre integra a grande tradição francesa de escritores que tem vasta qualificação acadêmica, pois foi romancista teatrólogo, jornalista, biógrafo, crítico literário e também filósofo.


Sua obra intitulada “O ser e o nada” apresenta teoria sofisticada sobre a natureza humana, tratando sobre o seu lugar no mundo e do entendimento sobre si mesmo e do outro.


Aliás, toda vez que cogito sobre o outro, socorre-me a memória o poema de Manuel de Sá-Carneiro, intitulado “O outro”[1].


Embora Sartre já fosse conhecido em França como escritor, sobretudo, por seu clássico romance filosófico. “A náusea”[2] foi tratada e obteve popularização de seus temas principais expostos em romances e peças de teatro a partir da metade de 1940 e o que projetaram particularmente a vida intelectual francesa, onde permaneceu até a sua morte em 1980[3].


O termo “existencialismo”[4] fora inventado alguns anos depois da publicação do livro para resumir sua filosofia, mas o próprio Sartre veio a obscurecer o termo ao estendê-lo aos vários de seus heróis, apesar das fundamentais controvérsias destas com a filosofia, isso menciona também as principais controvérsias dos próprios heróis entre si. O que parece ter facilitado a extensão subsequente a todo tipo de escritores, artistas, teatrólogos e diretores de cinema cujos trabalhos eram parcialmente relacionados com a filosofia de Sartre.


A obra em si, é mesmo estilisticamente esquizofrênica[5]. Apesar de que em muitas passagens há uma espécie de lucidez, o que se deve às afiadas habilidades descritivas de Sartre como teatrólogo e romancista de sucesso.


Em geral, tais passagens são calcadas na marca registrada de suas explicações sobre o comportamento cômico, porém, muito familiar de várias personagens, suas fraquezas e reações, tanto quanto suas ações deliberadas.


Há também passagens mais densas e difíceis e, por essa razão, precisam ser decifradas. E, estão relacionadas com a ambiciosa tentativa de formular e expressar e, ainda, defender uma visão metafísica em diálogo com alguns predecessores mais remotos.


O que notabilizou Sartre, é o fato de ser rápido e vago em suas discussões com outros filósofos, apesar de dedicar pouco tempo ao estudo cuidadoso desses filósofos, o que levou seus críticos a se apressarem a considerar seu trabalho como carente do rigor acadêmico indispensável à Filosofia.


Mas, tais objeções são, provavelmente muito apressadas. Há de se reconhecer o forte impacto que a obra de Sartre teve na cultura intelectual do século XX, principalmente, por ser perspicaz a ideia densa, aguda e, mesmo, desconcertantes em relação ao nosso cotidiano envolvimento com o mundo e com os outros e, tais ideias merecem toda nossa atenção.


“O ser e o nada” tem seu fundamento metafísico calcado na relação do ser e o seu oposto (que é a ausência de ser), o que ele chamou de “não-ser” ou nada. O termo “ser” é gramaticalmente pesado, mas seu princípio basilar é que as coisas podem ter ser, ou seja, uma coisa pode ser, de duas maneiras.


Mesas, cadeiras, oceanos, árvores, seixos, planetas e todas essas coisas são feitas de um substância que possui ser-em-si.


As pessoas percebem seu ambiente circundante, mas que é crucial, é que percebem a si próprias e, possuem objetivos que desejam atingir e projetos a serem seguidos.


Enquanto uma pessoa pode ser um estudante hoje e, almejar ser um profissional, um carvalho é de certa forma, preso pois não pode almejar ser um baobá, ou ainda, outra coisa. O que diferencia dos objetos materiais é, basicamente, o interesse com o nosso lugar no mundo.


Porém, o mundo em que vivemos não é apenas feito por esses dois tipos de seres. Pois, o mundo também contém o nada. Apesar de que isso seja estranho, o exemplo dado por Sartre para dar suporte a esta ideia é perfeitamente mundano.


Quando experimento o nada, há a ausência, em vez de simplesmente ser algo que posso pensar baseado nas coisas que experimento. Sartre insiste no fato de que essa ausência é experimentada. Não é que eu olhe em volta do lugar, note todas as coisas que lá estão e, depois conclua por meio de processo do pensamento que percebe sua ausência.


A ausência não é como a de Napoleão ou a Sócrates, mas me arrebata da mesma maneira que a presença arrebataria. E, nas palavras de Sartre a minha expectativa fez com que a ausência acontecesse tal como um evento real.


Aquilo que Sartre chamou de pequenas porções de não-ser e que percebemos na vida cotidiana. Também dá outros exemplos que vão desde a descoberta de que, mais uma vez, não tenho dinheiro em minha carteira, até a saudade que sinto da pessoa amada que já morreu ou está longe. Não são os únicos exemplos de nada no mundo.


Justamente o nada que encontramos ao lado dos seres com os quais nos deparamos há o nada que perpassa todos os seres. Esse tipo de nada é aquele através do qual o mundo recebe seus contornos como um mundo.


Quando encontramos um objeto como uma coisa individual, encontramo-lo como um outro que não é o seu ambiente circundante a cadeira se desloca como sendo à mesma que a mesa ou o chão. A individuação dos objetos, ora experimentada, portanto, envolve o nada.


Nessa experiência do mundo é também perpassada por valores instrumentais, morais e éticos: a cadeira é experimentada como algo para se sentar, a violência é experimentada como algo repugnante, a arte é experimentada como bela. E, a técnica como algo prático e imediatamente eficaz.


Tais aspectos avaliativos de nossa experiência refletem nossos propósitos no mundo, elas não são apenas coisas que existem independentes de nós e de nossos propósitos neste mundo, neste mundo no qual me engajo, meus atos fazem com que os valores se multipliquem como perdizes.


Visto que esses valores não possuem ser em si mesmos, eles são o nada. Liberdade é construída na relação entre a mente e o mundo e Sartre também elabora suas teorias da má-fé[6] e do olhar.


As ações feitas por uma pessoa são motivadas pelo modo como o mundo parece para ela, mas, isso já depende de seus propósitos no mundo, não podemos dizer que os indivíduos respondem ao modo como o ser em si é organizado.


Isto não quer dizer que nossas ações dependam do tipo de vida que levamos, e nem pode ser motivada somente pela natureza de nosso ambiente natural.


Antes o ambiente reflete as escolhas[7] que temos feito sobre como redigir à condição de sermos seres materiais em um mundo material.


Essa parte de “O ser e o nada”[8] é mais que obscura, mas sua ideia básica parece ser que cada um sustenta o objetivo de identificação com certo tipo de pessoa, quer seja um estudioso intelectual, um gênio torturado, um perdedor resignado ou qualquer outra coisa e, esse projeto impõe limites aos outros tipos de projetos.


Sartre foi sutil ao enfatizar que tais projetos não determinam nossos comportamentos de certas maneiras, mas somente causa em nós a propensão de nos comportarmos de certas formas.


Podemos, acreditava Sartre, resistir a tais inclinações, comportarmos de modo contrário a estas, e dessa forma, nos libertarmo-nos dos projetos de que outra forma seguiríamos.


Nossos projetos não foram apenas escolhidos em um passado vago ou momentos distantes, estes são constantemente reafirmados conforme seguimos nossas vidas, a menos que acabemos com eles em benefício de novos projetos.


A teoria da liberdade está encapsulada na fórmula aparentemente contraditória e, é conhecida como o paradoxo de Sartre, onde um ser-em-si, é um ser que é o que não é, e, que não o que é.


Logo após sua publicação, em 1943, da obra "O Ser e o Nada" de Sartre foi alvo de críticas que apontavam seu caráter idealista e enfatizava a incompatibilidade entre a afirmação de Sartre de uma liberdade absoluta do homem e as condições históricas que acabariam por determiná-lo.


O paradoxo da liberdade absoluta é aquele que não há situação a não ser pela liberdade, assim como não há liberdade a não ser em situação. Não precedência do lugar em que eu nasci, da classe social a que pertenço, do meu passado sobre a ação de minha subjetividade. Facticidade e transcendência se dão a um só tempo, não há precedência cronológica de uma em relação à outra.


Donde o paradoxo da liberdade sartriana: “aquele de que só há liberdade em situação e de que não há situação a não ser pela liberdade”.


Eis um verdadeiro problema, pois como afirmar a liberdade, se antes, parece que sou constrangido pela situação que não escolhi, mas que me constitui desde meu nascimento?


O homem é o ser que escapa a todas as determinações, isto é, um ser que não se explica por um procedimento formal ou analítico que, por um jogo de causa e efeito, explicaria ou determinaria a razão suficiente e necessária de suas atitudes.


A tentativa de Sartre legitimar algo como uma razão dialética, mesmo que isso só tenha ocorrido no final da década de cinquenta, é inteiramente compatível com esse espírito ou convicção de que só a liberdade pode dar conta de explicar um homem em sua singularidade.


O homem é aquilo que ele mesmo faz de si, é a isto que chamamos de subjetividade. Porém, se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro passo do existencialismo é de pôr todo o homem na posse do que ele é de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência.


Assim para Sartre, o ponto é que você é o que não é no seguinte sentido: para que você possa ser definido de modo que possamos entender seu comportamento, precisamos da definição para nos referirmos aos projetos que você persegue e, por isso, o tipo de pessoa com a qual você deseja se identificar ou se tornar, que é algo que você não é, ou ainda não é.


Dizer que você não é o que é, equivale a dizer que até mesmo quando tivermos dado essa definição, seu comportamento não será determinado por todos os fatos a que ela se refere: você pode resistir as inclinações enraizadas em seus projetos e comportar-se de formas novas e inteiramente imprevisíveis.


Temos certa consciência dessa liberdade segundo Sartre, mas preferimos escondê-la por debaixo do tapete. Sartre está interessado nessa compreensão de que você poderia fazer algo mesmo que não tenha razão para isso. A essa compreensão se dá o nome da angústia em face do infinito ou do futuro.


Também existe a angústia em face do passado, simbolizada pela pessoa que decidiu nunca mais jogar e se sente assolada pelo pensamento de visitas um cassino.


Portanto, por mais sinceras que sejam nossas resoluções, estas devem ser refeitas a cada momento, se as quisermos mantê-las. Nossas ações não são plenamente determinadas por nossas resoluções metas ou projetos.


Ao chamarmos a consciência da liberdade de angústia, Sartre está se referindo à nossa consciência do terrível senso de responsabilidade que surge com ela.


Se minhas ações estão de fato sob o meu controle, desta forma e nesta medida, então, não existe absolutamente nada que eu possa culpar por alguma ação que porventura seria melhor não ter feito.


Nem a hereditariedade e nem a educação, muito menos eventos traumáticos do passado determinam meu comportamento atual. Não temos desculpas.


Vige certa essência liberalista em boa parte da obra “O ser e o nada”, embora Sartre insista em afirmar que a obra não possuía nenhum pronunciamento ético ou político.


Mas, esse viés, é talvez o mais pronunciado quando trata de má-fé. Tentamos evitar a angústia e, negar a liberdade[9] e sua concomitante responsabilidade, usando diversas estratégias.


"A existência precede a essência". Eis a frase fundamental do existencialismo. Para melhor compreender o significado dela, é preciso rever o que quer dizer essência.


A essência é o que faz com que uma coisa seja o que é, e não outra coisa. Por exemplo, a essência de uma mesa é o ser mesmo da mesa, aquilo que faz com que ela seja mesa e não cadeira. Não importa que seja de madeira, fórmica ou vidro, que seja grande ou pequena; importa que tenha as características que nos permitam usá-la como mesa.


O exemplo mais conhecido de Sartre é sua caricatura de um garçom parisiense, cujo movimento é um pouco preciso demais, um pouco rápido demais, alguém que tenta imitar a dureza inflexível de autômato e carrega sua bandeja com a temeridade de quem caminha na corda bamba, colocando em equilíbrio perpetuamente instável, perpetuamente desigual que se restabelece por um suave movimento do braço e da mão.


O garçom está tentando convencer a si mesmo e aos clientes que é um garçom. Está tentando negar a sua liberdade e, portanto, responsabilidade por suas ações agindo como tivesse uma natureza fixa que determina todo seu comportamento, da mesma forma que um ser-em-si[10] possui uma natureza fixa.


O garçom, no exemplo, é apenas um representante e, Sartre dá outros exemplos, e sugere ainda que a maioria das pessoas encara a vida dessa forma.


Sartre dá exemplo de um garçom em um café. O garçom movimenta-se de forma bem estilizada, como se fosse um tipo de marionete. Todos os seus traços sugerem que ele se vê como alguém totalmente definido pelo papel de garçom, como se não tivesse escolha sobre nada.


Sartre diz que esse sujeito age de 'má-fé'. Má-fé é fugir da liberdade, um tipo de mentira que contamos para nós mesmos e na qual quase acreditamos: a mentira de que não somos livres para escolher o que fazemos com nossas vidas, quando na verdade, segundo Sartre, quer gostemos ou não, nós somos”.[11]


Sartre parece de fato pensar que podemos escapar dessa máxima e assumir, ao contrário, uma atitude de autenticidade, onde afirmamos a verdadeira natureza do ser[12].


Os outros


Não é somente nosso ser que encaramos dessa maneira. Também, entendemos mal uns aos outros, exatamente da mesma forma. Talvez movido pela inveja ou curiosidade, você pode olhar pelo buraco da fechadura para ver o que acontece do outro lado, e de súbito, é tomado pela vergonha.


Essa sensação cria a falsa crença de que o outro o classifique de maneira indesejada, talvez como um voyeur ou mero bisbilhoteiro. Você considera o outro o vê como se tivesse uma propriedade que determina seu comportamento da maneira pela qual as propriedades dos objetos materiais determinam o comportamento deles, e essa propriedade é indesejada. Sartre chama isso de “olhar”.


Conforme seu pensamento foi progredindo ao longo das décadas seguintes à publicação “O ser e o nada”, Sartre tornou-se o maior interessado no impacto que a educação e o status social que tem sobre os projetos que seguimos, e seus escritos abordam mais ideias de Freud, Marx e seus seguidores.


E alguns entenderam que tal atitude seria um afastamento da ideia central do existencialismo[13]. Mas, Sartre afirmou ao final de sua vida, que ele nunca abandonou o existencialismo e que a obra investiga de forma mais detalhada as informações que devemos ter para escolher livremente o projeto de vida[14].


Referências:


BELO, Renato dos Santos. O Paradoxo da Liberdade: Psicanálise e História em Sartre. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-28012008-123948/publico/TESE_RENATO_SANTOS_BELO.pdf Acesso em 16.9.2021.


CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo, Paz e Terra, 1982.


CROWE, Jonathan. A solidão do juiz. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-solidao-do-juiz/  Acesso em 16.9.2021.


HEGEL. Fenomenologia do espírito. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1999.


FREUD, S. Cincos lições de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1997.


SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. 8ª edição. Petrópolis: Vozes, 2000.


____________. A Imaginação. São Paulo: Ática, 1996.


____________. O Existencialismo é um humanismo. In: Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.


SARTRE. Coleção Os Pensadores. Consultoria de Marilena Chauí. São Paulo: Editora Abril, 1987.


Sá-Carneiro, Mário. Poesia Completa. Edição Ricardo Vasconcelos. Lisboa: Tinta da China, 1969.


ZAIDEN FILHO, Iussef.  O Ser e O Nada. Disponível em: http://izfcoaching.com.br/o-ser-e-o-nada-de-jean-paul-sartre/  Acesso em 16.9.2021.


WARBURTON, Nigel. Uma breve história da Filosofia. 3.ed. São Paulo: J&PM, 2008.


Notas:


[1] Eu não sou eu nem sou o outro,


Sou qualquer coisa de intermédio:


Pilar da ponte de tédio


Que vai de mim para o Outro.


Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'


[2] O livro foi escrito por Sartre durante 5 ou 6 anos, sendo publicado um ano antes do início da Segunda Guerra Mundial, ou seja, em 1938. Esse contexto histórico-social tem influência em A Náusea, assim como em toda a obra de Sartre, que foi um filósofo francês existencialista (e um dos fundadores do partido comunista em Paris). Aliás, ele próprio participou da guerra como meteorologista. O livro traz como protagonista o historiador Antoine Roquentin de cerca de 30 anos. Bastante viajado, está vivendo na pequena cidade de Bouville (fictícia) para onde se mudou para estudar a vida do marquês de Rollebon, uma figura pitoresca da França que vivera no século XVIII. Então, o historiador está escrevendo uma biografia sobre o tal marquês quando começa a perceber algumas “sensações”, alguns “estranhamentos” — a que chama de náusea. Nesses momentos, somos levados a sentir e a perceber tudo o que cerca e o que se passa internamente com Antoine com a descrição dos objetos, por exemplo, ou pessoas que estão à sua volta. É muito interessante como ele consegue desenhar esse cenário externo e interno. Fui completamente levada a Bouville a cada página folheada. Roquentin e sua náusea trazem a criticidade acerca do estilo de vida daquela época, dos burgueses e do proletariado, enfim, das pessoas que causam esse sentimento de repulsa à humanidade no protagonista.


[3] A Náusea e O Muro (coletânea de contos, lançados no mesmo ano) seriam recebidos com aclamação crítica, transformando Sartre na mais promissora figura literária da Rive Gauche. Em 1939 publica O esboço de uma teoria das emoções, que aumenta seu prestígio intelectual, embora não tenha sido recebida com tanto entusiasmo.


[4] O existencialismo foi uma doutrina filosófica e um movimento intelectual surgido na Europa, no final do século XIX, mas ganhou notoriedade no século XX, a partir do desenvolvimento do existencialismo francês. Está pautado na existência metafísica, donde a liberdade é seu maior mote, refletida nas condições de existência do ser.


[5] A angústia de Sartre nada tem a ver com a agonia decorrente do medo, do desespero ou da ansiedade, pois a angústia e medo não podem ser confundidos, dado que aquela diz respeito tão somente a mim, porque aquilo que realizo que realizo depende exclusivamente de mim, já o medo diz respeito ao que pode ocorrer comigo, ou seja, a algo exterior. A angústia em questão deve ser compreendida a partir da relação entre o que seu eu em determinado momento, o que fui anteriormente e o que serei em um tempo futuro. A angústia consiste então na experiência da descoberta da liberdade, em outras palavras, ela é a consciência da liberdade. No entanto, é preciso esclarecer o seguinte: a angústia mencionada por Sartre só se dá no plano estritamente reflexivo – dimensão da consciência reflexiva. Afinal, enquanto o indivíduo permanece no plano da ação, da urgência do mundo, não se apreenderá como livre em relação àquilo que foi ou ao que será.


[6] A atitude de má-fé aparece sob o fundamento de aniquilação da liberdade, pois rouba a possibilidade de ser sua escolha. Sobre isto, n’O Existencialismo é um Humanismo, declara Sartre: “...se eu nasço covarde, posso viver em perfeita paz, nada posso fazer, serei covarde a vida inteira, o que quer que eu faça; se eu nasço herói, também viverei inteiramente tranquilo, serei herói durante a vida toda, beberei como um herói, comerei como um herói”. Dessa forma, o ser herói ou covarde gruda no ser nadificado, corrompendo com esta nadificação e impossibilitando o homem de ser qualquer coisa a não ser herói ou covarde.


[7] Conceitos do existencialismo: 1. A espécie humana tem livre arbítrio; 2. A vida é uma série de escolhas, criando stress; 3. Poucas decisões não têm nenhuma consequência negativa; 4. Algumas coisas são absurdas ou irracionais, sem explicação; 5. Se você toma uma decisão, deve levá-la até o fim.


[8] É uma análise do ser em sua mais pura essência. Tão pura que só existe para a própria consciência do ser mesmo. Nada escapa à consciência.  Como, por exemplo, para Sartre, você só sabe, se “sabe que sabe", ou seja, se tem consciência daquele saber. Pode parecer uma prisão, pelo contrário, aí é que está o cerne da liberdade. Só que Sartre mostra a liberdade como um fardo, por isso diz que o homem está, então, condenado a ser livre.


[9] Sartre conceitua a liberdade como uma condição intransponível do homem, da qual, ele não pode, definitivamente, esquivar-se, isto é, o ser- humano está condenado a ser livre e é a partir desta condenação à liberdade que o homem se forma. Não existe nada que obrigue o ser humano agir desse ou daquele modo.


[10] Do ser-em-si somente se pode dizer que ele “é aquilo que é”. Isso significa que o “ser-em-si é opaco para si mesmo”, nem ativo nem passivo, sem qualquer relação fora de si, não derivado de nada, nem de outro ser: o ser-em-si simplesmente é. Daí o caráter de absurdo que o ser-em-si carrega como sua determinação fundamental. A densidade opaca, o absurdo do ser-em-si provocaria no homem o mal-estar, que Sartre denomina náusea.


[11] Para Sartre, a consciência humana é um ‘nada’ – é a única que não pode ser apontada como uma coisa no mundo, diferente de mesas, cadeiras, minhas mãos e pernas. A consciência é consciência de si mesma. É por esta razão que o fenômeno da má-fé se mostra um dilema: se a consciência deve estar sempre consciente de si mesma, então como pode acontecer com as pessoas o tipo de dissonância que Sartre chama de ‘má fé’? Quando uma pessoa mente para outra, a mentira é possibilitada pelo fato de que a consciência do mentiroso é escondida da pessoa que está sendo enganada. Mas como uma pessoa pode realizar o tipo de autoengano necessário para estar em má-fé – para negar, em suma, que a consciência é o que, não é?


[12] Para ajudar a ilustrar o conceito de má-fé, Sartre usa o exemplo de um jovem que tem um emprego como garçom. Um garçom, ao contrário de uma mesa ou uma cadeira, não existe além do abstrato. Certamente, há um conjunto de ações que associamos com ser um garçom, mas não há nada no que é ser um garçom como o que há em ser uma cadeira (que tem quatro pernas e é construída por seres humanos para se sentarem). ‘Um garçom’ não existe e, portanto, não pode ser; mas o jovem faz ‘ser um garçom’ como ‘ser uma cadeira’, e ao fazê-lo trata de experimentar a si mesmo como um objeto. Ao fazer isso, ele nega que a consciência é o que não é, ou seja, que não pode ser qualquer coisa. O jovem molda si mesmo como um garçom, que ele se torna para uma espécie de objeto, e ao fazer isso pratica má fé.


[13] O existencialismo e Sartre se tornaram então, produto francês, tipo exportação. Ambos alcançaram fama em toda a parte. Mas Sartre não se vendeu aos conceitos burgueses de fama e sucesso. Fazia questão de ser imprevisível. Escrevia, escrevia e escrevia, chegando a apelar para a "vida química", que lhe proporcionava a comodidade de manter-se ligado, e desligar-se quando não houvesse mais forças. (Sartre precedeu a Aldous Huxley no uso da mescalina). Nesse caso Simone o levava de férias, ao tempo que Sartre entretinha alguma jovenzinha deslumbrada por seu intelecto. Seu pensamento continua em evolução. Entende que a liberdade do indivíduo, embora seja uma atitude sustentável em termos de filosofia, dificilmente seria plausível em termos sociais. Em O existencialismo é um humanismo, a compreensão sartriana da liberdade individual se estabelece em termos de responsabilidade social, de engajamento. Isso somado à sua natural antipatia pela burguesia, o aproximou do socialismo, embora ele não de admitisse marxista. Porém em 1952, Sartre torna-se marxista, afirmando que "o marxismo reabsorveu o homem na ideia, e o existencialismo o procura por toda parte onde ele esteja - no trabalho, em casa, na rua". Não ingressou em nenhum partido, pois seu individualismo não o permitiria.


[14] O Ser e o Nada subintitula-se ensaio de ontologia fenomenológica, o que desde o início define a perspectiva metodológica adotada pelo autora A abordagem proposta pretende não confundir o objetivo do livro com as metafísicas tradicionais. Estas sempre contrastaram ser a aparência, essências subjacentes à realidade e fenômenos, o que estaria atrás das coisas e as próprias coisas como suas manifestações. A ontologia fenomenológica superaria essa dual idade pela descrição do ser como aquilo que se dá imediatamente, ou seja, não propondo explicar a experiência humana por referência a uma realidade extrafenomenal. Nesse sentido, a ontologia fenomenológica seria idêntica a outras espécies de descrições fenomenológicas, como as que o próprio Sartre realizou com relação às emoções e ao imaginário.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Liberdade Existência Existencialismo Filosofia Responsabilidade Ser-em-si

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