Ensaio sobre o maldizer
Por Gisele Leite.
A
máxima de Jean-Paul Sartre era: “o inferno são os outros!” que nos aponta para
o cotidiano drama social[1]. Afinal somos animais
sociais e, vivemos em grupos, somos gregários e de infância extensa e
maturidade improvável. Como mamíferos encontramos a própria realização em
bandos, mas, igualmente a sua destruição em bandos.
Do
casal à família, da família à sociedade e, da sociedade à humanidade, somos
singulares, mas precisar viver e vivenciar o plural.
Até
existem os solitários e eremitas, mas são raros, na grande e frenética onda da
sociabilidade. Por quê? Somos todos diferentes uns dos outros. E, conviver com
as diferenças implica na comunicação que é sempre um concreto desafio.
Já
afirmava Francis Bacon que “conhecimento é poder”. Conhecer o outro, sobre os
outros, garante tanto a defesa como a aliança. Precisamos identificar quem
oferece risco, quais os defeitos de quem está próximo a mim?
Com
quem devo agrupar? Tudo pode ser resolvido com o hábito da detração[2]. E tal belo vocábulo:
detração. Mas, há outros piores como: fofoca, fuxico, maledicência, maldizer,
difamação, mexerico, boato, intriga e, tudo decorre de uma mente ardiloso, um
coração ressentido e uma língua particularmente ferina. Eis o tripé basilar da
detração.
Houaiss
informou que a palavra “fofoca” vem provavelmente do banto (língua africana).
Já a palavra “detração” é de raiz latina e, em ambos vocábulos há o falar mal
de alguém.
Há o
uso de adjetivos pejorativos. É verdade que lei disciplina com rigor no
capítulo dos crimes contra a honra, a distinção entre a injúria, calúnia e
difamação. Que não são os mesmos delitos.
A
diferença entre cada um desses crimes contra a honra está no conceito de honra
que sofre a ofensa. A calúnia ofende a honra enquanto cidadão. Já a difamação
ataca a honra objetiva que é a reputação; enquanto a injúria ofende a honra
subjetiva, que trata das qualidades do sujeito.
Na
língua inglesa existe uma distorção entre pride gossips que seria
fofocas elogiosas, das blame gossips que significa maledicência.
Enfim,
há uma triste realidade, pois todos falam mal de todos. É claro que sempre nos
excetuamos, mas até quando alegamos não tolerar as maledicências, escorrego e
acabo por falar mal de alguém... Não tem escapatória.
Afinal,
seria a detração ima forma de aliança? Ao falar dos outros, desejo estabelecer
vínculos de defesa e ataque. É uma maneira catártica de me excluir da maldade,
alegando sempre que está no outro e não em minha pessoa. Seria uma defesa do
mal que habita em mim?
Constituiria
uma forma de psicanálise primitiva, na qual falo indiretamente de mim ao
fofocar, exorcizando os mesmos fantasmas nos outros? Talvez, como diria Pollyanna[3] uma forma de interesse com
vetor invertido?
Fofoqueiros
seriam pessoas sem ter o que fazer? Falar mal, em essência, estaria associado
feminino ou ao masculino? Então quem são
os mais proativos fofoqueiros: mulheres ou crianças? Ou adolescentes?
Por
que a vida alheia seduz tanto? A minha biografia estaria monótona ou linear em
demasia? Falo mal porque meu vazio interior é tão insuportável que prefiro o
ataque a terceiros, a pensar e refletir na minha miséria?
Tantas
perguntas, questionamentos e dúvidas...
A
análise ciosa daquele momento em que baixamos o tom de voz, chamamos alguém
para o canto e, com voz cúmplice e visível prazer, descrevemos o borrão que
exista na biografia alheia.
Enfim,
é uma análise de nossa natureza detratora, percorrendo os quatro fechados da
alma humana. É um spot de luz sobre o escuro de nossa tradição tribal.
Apesar
dos inúmeros sinônimos há sempre o mesmo sentido: pois a expressão maledicente
que busca diminuir os méritos de alguém, ou até inventar uma forma negativa.
A
detração não é necessariamente, uma mentira. Pode ser verdadeira ou falsa. O
que marca a detração é a intenção de atacar, de diminuir, de jogar na lama, o
alvo de meu veneno.
Depreciar,
como já insinuamos, significa elevar a minha posição. Essa é a chave de sucesso
do detrator. A infâmia anunciada pelo narrado pode nascer tanto de fato real e
comprovado. E, pode também ser uma pura invenção.
O
objetivo primaz é arranhar ou quebrar o telhado vítreo alheio. O importante é
puxar bem para baixo, desnudar histórias e atacar. Por definição a expressão
“pesar para baixo” implica em reconhecer que estou abaixo de quem fala mal de
mim. Esse é um dos problemas do falar mal; ele reconhece que me sinto inferior,
ou ao menos, que desejo estar por cima ao falar mal.
Reza o
velho adágio popular que em razão de nossa anatomia usual, quando apontamos um
dedo para o outro, isto significa que há quatro outros dedos voltados para mim.
Seja
pelo silêncio ou por oposição, o fofoqueiro fala sempre de si também. Nossas
maldades seria a melhor forma de perseguir o ideal socrático “conhece a ti
mesmo”.
É bom
lembrar que todos nós somos capazes de atos de bondade e abnegação. Hitler, por
exemplo, amava profundamente os seus cachorros e defendia a dieta vegetariana. Hitler,
o mesmo que sentenciou milhões de pessoas a morte.
Mesmo
a mais infame criativa, há ternura, que fala de nós e nossos valores. Nada é mais evidente sobre
minha personalidade do que o tipo de comentário que faço especialmente, o
maldoso.
Observemos
o discurso da formatura, cogitamos das pessoas, da turma, da instituição.
Agradecemos por nossos excelentes professores, homenageamos nossos pais e
indicamos as qualidades excelsas daquela turma de formandos.
Gostamos
de ouvir isso. Achamos indelicado se alguém for crítico naquela hora de
consagração. Porém, é visível e notório, a maioria está entediada.
Os
elogios até emocionam e comovem, mas são entediantes. As virtudes, sejam reais
ou retóricas, não prendem muito mais a atenção.
Mas,
se o mesmo orador ao invés de desfiar os clichês edificantes de praxe em sua
fala, se pusesse a destacar as coisas erras nas pessoas presentes ou não, ou
então na referida instituição.
Se,
com ironia ou humor, confessasse quem se deitou com quem, ao longo daquele
curso. E, ainda comentasse como e quem colava nas provas ou não? E, se
indicasse quais professores eram picaretas, ou as falcatruas institucionais.
Mesmo em ambiente tenso, prestaria a atenção ao narrador.
Falar
ou ouvir o mal alheio é uma delícia, desde que não sejamos o alvo. Sim, é essa
espécie à qual pertencemos.
Recentemente,
se registrou um tremendo esforço para controlar a publicação de suas
biografias, afinal queriam estabelecer certa narrativa que naturalmente
contasse coisas boas, virtudes que são tão agradáveis que a vida e todos,
incluindo-se as celebridades, as possuem.
Por
certo que os fatos escabrosos, as fofocas, as calúnias ou verdades dolorosas
seriam caladas e silenciadas. Não se pode condená-los. Pois, todos nós
gostariam de controlar as narrativas sobre nós.
A
fofoca é anárquica e cresce em progressão geométrica (PG), hoje existe a
presencial e a virtual, através das redes sociais. A fofoca escapa a qualquer
controle.
É natural
que temeremos tudo que escapa ao nosso controle e supervisão. A calúnia é
comparada a um travesseiro de penas aberto em torre alta. E uma vez iniciada a
calúnia, segue em modo aleatório.
A
maledicência é arte. Há regras que jamais podem ser ignorados. Analisemos: 1.
Precisa demonstrar que não falo por maldade, mas por vontade, mas por vontade
ajudar.
Revelo
a coisa a você para que esteja precavido contra aquela pessoa. Insinuo que
gosto da pessoa sobre a qual eu falo, no entanto... Destaco até os pontos
positivos.
Tipo:
Ela é tão pontual, pena que... Ele é muito esforçado, pena que... Olha, eu até
gosto dela, mas acontece que...
Um
elogio a meia voz é o prólogo de uma fofoca. O detrator não pode destilar
maldade sem manifestar que é uma ótima pessoa e que ressalva aquilo para
ajudar;
2.Quem
escuta não pode sentir-se parte do mal. Não posso rir da gordura alheia, se meu
interlocutor está acima do peso. Nunca jogaria pedra tendo como testemunha
alguém que tenha como telhado idêntico ao que ataco.
A
fofoca tem que estabelecer uma alteridade, uma diferença algo distintivo. Devo
focar em algo que eu e você abominamos (em comum).
3. A
maledicência deve ser crível, não pode fugir do plausível, mesmo que seja
mentira. O bom fofoqueiro(a) sabe que há limites;
4. A
melhor detração insinua mais do que afirma. Veneno diluído é mais bem aceito. É
o floral de Bach do ácido e homeopatia do cáustico.
Há o
risco de ser menos entendido, porém é o recurso mais interessante. Ataque pelas
bordas, calúnia indireta; é uma arte sutil a detração de outro ser humano.
Ele é
um homem tão sensível tão ligado à moda, sempre sai com as amigas e não gosta
de futebol, ele é quase feminino.
Assim
dizendo, sem afirmar, elogiando quando se condena, dizendo limpar enquanto
enlameia, o detrator terá garantido sucesso.
Essas
são as regras gerais. Pois cada fofoqueiro sempre foi livre para escolher sua
técnica. O interesse pela vida alheie e a detração subsequente apresentam
infinitas variedades e possibilidades.
O
domínio da fofoca tem muitas subdivisões até chegar o gênero e à espécie. As
tentativas de generalização são aproximativas.
No fundo, ao maldizer estamos nos revelando explicitamente e, expondo nossas mazelas e defeitos. Evite a maledicência... se não há algo de bom a ser dito, é melhor guardar o silêncio.
Referências
KARNAL,
Leandro. A detração. Breve ensaio sobre o maldizer. Porto Alegre:
Unisinos, 2016.
Notas:
[1]
A assertiva anuncia as dificuldades de ser existencialista, pois é preciso ter
consciência de que somos responsáveis pelas consequências de nossas ações, e
não apenas buscar culpados pelo nosso sofrimento. Pondera que o outro é
fundamental para o conhecimento de si mesmo. Isto é, o ser humano necessita
relacionar-se com o outro para construir a sua identidade, processo nem sempre
tranquilo e harmonioso. A sentença mais pesada de Sartre foi: Estamos
condenados a ser livres. O filósofo e escritor francês, ao lado do argelino
Albert Camus, foi um dos maiores representantes do existencialismo que tanto
reflete sobre a existência do ser humano.
[2] Detração (do latim detractione=: cortar, suprimir). Ato ou efeito de detrair. Tentativa de tornar (alguém) passível de descrédito, calúnia, difamação e maledicência. Também é um conceito do Direito Penal que simboliza o abatimento, na pena privativa de liberdade ou na medida de segurança, do tempo de prisão provisória, de prisão administrativa ou de internação provisória. Esse "desconto" se dá na pena definitiva aplicada.
[3]
O adjetivo pollyanna descreve pessoa irritantemente otimista, que está sempre
feliz e acha que algo de bom acontecerá em qualquer situação. Poliana é a
versão em português de Pollyanna que é originário pela união dos nomes Polly e
Anna. Polly é uma variante medieval de Molly, diminutivo de Mary, versão
inglesa de Maria. Apesar de ser um nome de origem incerta pois é possível que o
nome tenha surgido a partir do hebraico Myriam, que significa senhora soberana
e vidente. O livro intitulado Pollyanna de 1914 é de autoria de Eleanor H.
Porter que descrevia uma garota que fez o jogo de felicidade (gladness game)
procurando encontrar algo de que se alegrar em todas as situações. O referido
romance foi adaptado várias vezes no cinema e televisão. O uso do nome Pollyanna na literatura sobre
psicologia foi em 1959 por Boucher e Osgood, que descreveram uma hipótese de
Pollyanna como tendência humana universal para usar palavras positivas com
maior frequência e de forma diversa do que palavras negativas na comunicação.