Dor de cabeça: juiz de garantias
A existência e implementação do juiz de garantia é, em si, uma garantia relacionada ao princípio do juiz natural e da imparcialidade, mas só se concretizará realmente se o julgador que exercer as respectivas funções tiver condições cabais para fazê-lo, sem que fique sujeito às transferências arbitrárias, ou mesmo designações fundadas em interesses privados ou espúrios. Merece toda atenção o julgamento sobre o juiz das garantias e de como será estabelecido pelas normas de organização judiciária no Brasil. Por essa razão, é muito relevante o julgamento pelo STF ainda em andamento.
Em
14.06.2023 iniciou-se o julgamento perante a Suprema Corte brasileira das ADIs
6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 que requerem a inconstitucionalidade[2] que instituíram o Juiz das
Garantias[3] no direito processual
penal brasileiro, devido a arguida
invasão de competência dos tribunais para editar regras de organização
judiciária, ora por não apontar a fonte de recursos orçamentários que seriam
indispensáveis para a devida implementação do juiz de garantias.
Como
autores das ADIs existem várias entidades, especialmente, representações da
advocacia brasileira que ingressaram com as retromencionadas ações na condição
de amicus curiae, cujo interesse na matéria se tem com base no artigo133 da Constituição Federal Brasileira de 1988 c.c. com o artigo 44, I da Lei8.906/1994 (Estatuto da OAB) com o fito de defender que inexiste
inconstitucionalidade nos dispositivos nos artigos 3-A e 3-F do Código deProcesso Penal acrescidos pela Lei 13.964/2019[4].
Não
parece ser simples a questão levada à julgamento da Corte Suprema brasileira
mas é de inegável utilidade do juiz de
garantias como meio de fortalecer a nossa justiça criminal.
A
priori, trata-se de estabelecer que o comando processual implica
no reconhecimento de impedimento pela prevenção decorrente da decisão exarada ainda na fase investigatória de
jurisdição, de tal maneira que o outro juiz era conduzir o processo criminal em
juízo e, então, sentenciar o feito, reforçando os padrões de imparcialidade[5] que deve ter todas as
decisões judiciais válidas.
Quanto
a criação legal do juiz de garantias, refere-se a tarefa das normas de
organização judiciária brasileiras, conforme o artigo 3º-E do CPP ao tempo de
fixar relevantes funções a serem cumpridas pelo julgador que atuar na fase de
investigação criminal, bem como demonstrar que tal competência para decidir
sobre a liberdade, a busca domiciliar, interceptações telefônicas e de dados,
quebras de sigilo bancário e fiscal, não está, absolutamente, afeta as regras
organizacionais, mas, sem dúvida, é matéria
de competência exclusiva da União, por meio de lei federal, conforme a
vontade do povo, manifestada através de seus representantes no Congresso
Nacional.
É
possível implantar a sensível evolução para o processo penal brasileiro, porém,
não sem afetar o orçamento, restando aos tribunais garantir que o juiz que se
manifestar no inquérito policial, proferindo decisão que acarrete o julgamento
de mérito sobre os envolvidos, não será o mesmo que irá, ao final, sentenciar o
acusado. O que apenas aparentemente é simples em face dos processos
digitalizados e digitais já existentes no país. Ressalte-se que ainda existem
processos não digitalizados no país.
O STF
já pacificou que o sistema acusatório é o que norteia a persecução penal no
Brasil. De sorte que o acusador não poderá julgar, vigendo nítida separação
entre a acusação e a magistratura para que seja mantida a imparcialidade.
O juiz
atuante na fase da inquérito policial deferindo os pedidos como o de prisão
preventiva[6], prisão temporária, por já
ter realizado juízo íntimo de valor e, prosseguindo adiante em todo o processo criminal, já decidira por sentença
absolutória ou condenatória.
A
gestão da prova pelo juiz é regida pela vedação da iniciativa acusatória do
juiz das garantias e da iniciativa probatória do juiz da instrução e
julgamento. O sistema acusatório[7] é de fato explicitamente
adotado pelo texto constitucional brasileiro vigente e que atribui à pessoa
diversa da autoridade judiciária a titularidade da ação penal pública,
cogita-se de um modelo democrático de gestão da prova, vinculado ao princípio
dispositivo que orientará a atividade judicial imparcial.
Ensina
o ilustre doutrinador Renato Brasileiro de Lima, in litteris:
"Não basta, pois, pensar o sistema
acusatório baseado exclusivamente na
separação inicial das atividades de acusar e julgar. Afinal, como observa Aury Lopes Jr., de nada adianta uma
separação inicial, com o oferecimento de uma denúncia pelo Ministério Público, se, na
sequência, ao longo de toda a marcha procedimental, ao juiz for outorgado um papel ativo de
protagonismo na busca pela prova ou até mesmo na prática de atos típicos da acusação."
Recorde-se
que o art. 5º da Constituição Federal brasileira vigente não estabeleceu
expressamente a imparcialidade do juiz[8] como necessidade
intrínseca à função de julgar, embora vários de seus incisos tornem implícita
(e também real) essa exigência (XXXVII, LIII, LIV e LV).
Ademais
o art. 144, II, do vigente Código de Processo Civil brasileiro[9](CPP), veda o exercício da
judicatura quando o juiz conheceu do processo e proferiu decisão em outro grau
de jurisdição.
Normalmente,
a jurisdição penal brasileira de primeira instância se desenvolve em das fases
distintas, a da investigação criminal e a do processo criminal.
Há de
se reconhecer que o juiz de primeiro grau, na investigação policial, ainda sem
ser dotado de plenas garantias processuais tal como o contraditório[10] e a ampla defesa[11] a que faz jus o acusado
no trâmite do processo criminal, vindo a ultrapassar as proteções
constitucionais à intimidade e privacidade e, ainda, a necessária produção de
prova para firmar a justa causa de futura ação penal, por fazer juízos
positivos quanto à possível existência de fatos típicos (crimes) e seus
eventuais autores, a indicar, de plano, seu convencimento ou juízo de valor,
não sendo relevante, se de forma parcial ou preliminar[12].
Há, de
fato, uma prática reiterada e perniciosa de submeter aos tribunais superiores,
particularmente o STF, todos os temas em que os partidos enxerguem suas
ambições políticas contrariadas pela vontade da maioria, e segundo a democracia
vigente que rege as disputas presentes nas casas legislativas brasileiras, o
que acarreta o reconhecimento de falhas no processo legislativo que vem sendo
firmemente repetidas, gerando muitas inconveniências, mas, particularmente,
porque neutraliza o exercício democrático do parlamento e, ainda impõe aos
tribunais superiores a árdua tarefa de fiscalizar a higidez do processo
legislativo no país.
Parece
que a melhor solução, sem custos ou grandes mobilizações, é apenas fazer a
distribuição cruzada, já sugerida pelo próprio CNJ(Conselho Nacional de
Justiça)[13],
que pode ser implementada em curto espaço de tempo. Não haveria questionamentos
orçamentários e nem se criaria dois tipos de juízes no primeiro grau,
permitindo que todos atuem nas duas fases do procedimento, desde que não seja
nos mesmos autos.
O tão
propalado instituto é adotado por diversos países[14], tanto os mais
desenvolvidos como também os menos, entre os primeiros situam-se a Alemanha,
Itália, França[15]
e, entre os segundos, Chile e Colômbia. Apesar de exibirem nomenclaturas
diferentes, como é o caso francês que é denominado como “Juiz das Liberdades e
da Detenção”.
Na
América Latina, apenas Cuba e Brasil ainda não tinham adotado o modelo de juiz
de garantias. Na Argentina, a adoção do juiz de garantias deu-se desde 1991,
mas ainda existem alguns problemas estruturais e, em alguns lugares ainda não
foi colocado em prática[16].
O
chamado "juez de las garantías" começou a ser implantando em
1991 na Argentina, mas ainda segue um caminho gradual pois não foi concluído
ainda. Nos lugares em que já existe essa figura, o magistrado recebe os pedidos
dos promotores do Ministério Público, os chamados "fiscales".
São pedidos de prisões provisórias, buscas e apreensões e quebras de sigilo de
comunicações e de dados bancários e fiscais. O juiz pode autorizar ou negar.
De
fato, os motivos favoráveis e contrários são diversos. E, ainda, existem fartos
argumentos a favor, pois procura evitar a concentração do poder decisório num
só juiz, uma vez que no país, alguns juízes gozam de protagonismo processual, o
que vem a comprometer a imparcialidade nas decisões judiciais finais.
Os
principais críticos argumentam que há número insuficiente de magistrados, a
geração de despesas com as quais os judiciários estaduais brasileiros e, mesmo
o federal não poderiam arcar. Além da intransponível dificuldade em face do
exíguo prazo para a referida implementação. O que acarretou a suspensão de sua
aplicação pelo Ministro do STF Luiz Fux, na época o relator e o Presidente do
STF[17].
Segundo
Marcelo Oliveira da Silva, a principal barreira para se admitir o juiz de
garantia é que o direito nega ao inimigo do Estado a sua condição de pessoa. A
negação jurídica da condição de pessoa ao inimigo é uma característica do
tratamento penal que lhe é conferido no sistema de justiça criminal próprio do
regime inquisitorial e autoritário.
Reitera
o aludido doutrinador que o devido processo legal substancial[18] e o princípio acusatório
devem se prestar a impor limites à atuação do Estado-juiz[19], iluminando e
direcionando as regras do processo penal. Em busca de um suposto bem maior,
qual seja, o resguardo da segurança pública, a busca da "verdade
real", de forma indiscriminada e ilimitada, com ofensas aos direitos
individuais da liberdade, privacidade e da
intimidade da vida privada.
Quanto
aos argumentos contrários, há motivos de ordem orçamentária e financeira,
gerando sensível gasto para a máquina judiciária atuante e vigente. Um gravame
indelével é a existência das diferenças das realidades regionais entre Estados[20] e até mesmo entre cidades
de uma mesma unidade da Federação brasileira, o que dificulta a implementação
do juiz de garantias. Atualmente, há um déficit de 4,4 mil magistrados em todas
as áreas da Justiça[21].
Os desembargadores
de tribunais regionais e juízes de tribunais estaduais enfatizam que a adoção
da medida implicará em custos, com aumento de pessoal, de instalações físicas e
de uso da tecnologia. É certo que o instituto fortalece as garantias
processuais e a imparcialidade do magistrado, diante dos desafios gerados por
novas formas de investigação e meios de provas desenvolvidos pelas evoluções
tecnológicas.
Há o
Projeto de Lei 3479/21 obriga o Poder Judiciário a implementar o juiz das
garantias no prazo de cinco anos, após a realização das alterações legais
necessárias e provisões orçamentárias. O texto tramita na Câmara dos Deputados.
De qualquer forma, reitera-se que o juiz de garantias é a nova cefaleia do momento, mobilizando o Judiciário, o Legislativo e a cidadania brasileira[22].
Referências:
ARAS,
Vladimir. Os prós e contras do juiz de garantias. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-pros-e-contras-do-juiz-de-garantias-14022020
Acesso em 18.8.2023.
ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DOS MAGISTRADOS. Ao grupo
de Trabalho, do Conselho Nacional de Justiça, destinados a analisar os impactos
da Lei nº 13.964/2019. Brasília, 2020.
BADARÓ,
Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da
prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
Convenção
Americana Sobre Direitos Humanos. Assinada na Conferência
Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em
22 de novembro de 1969.
DA
SILVA, Marcelo Oliveira. Por que temer o Juiz das Garantias? Disponível em:
https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista_v23_n2/revista_v23_n2_86.pdf
Acesso em 18.8.2023.
DA
SILVEIRA, Marco Aurelio Nunes. A adoção do instituto do Juiz das Garantias
no Processo Penal brasileiro como possibilidade para a jurisdição imparcial.
Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/71238/Maisa%20Almeida%20Leite.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso
em 19.6.2023
DE LIMA,
Renato. Manual de Processo Penal. 8ª edição. Salvador: JusPodivm,
2020.
GIACOMOLLI,
Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição
Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª edição. São Paulo: Atlas,
2016.
LOPES,
Aury Júnior e Ritter, Ruiz. A Imprescindibilidade Do Juiz Das Garantias Para
Uma Jurisdição Penal Imparcial: Reflexões A Partir Da Teoria Da Dissonância
Cognitiva. 2017.
LIMA,
Walter Alves. A figura do juiz das garantias no contexto internacional e
nacional. Brasil, 2022.
MAYA,
André Machado. Imparcialidade e Processo Penal: Da Prevenção da Competência
ao Juiz de Garantias. 2ª ed. Grupo Gen. 2014.
MEDEIROS,
Flávio Meirelles. Artigo 3º-B CPP - Funções do juiz das garantias. Disponível
em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/artigo-3-b-cpp-funcoes-do-juiz-das-garantias/1114276162
Acesso em 18.6.2023.
ROSA,
Alexandre Morais; Junior, Aury Lopes. Entenda o impacto do Juiz das
Garantias no Processo Penal. CONJUR, 2019.
RUIZ
FILHO, Antonio. Em julgamento, o juiz das garantias. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/388254/em-julgamento-o-juiz-das-garantias
Acesso em 18.6.2023.
Supremo
Tribunal Federal (STF). Juiz das garantias [recurso eletrônico] :
bibliografia, legislação e
jurisprudência temática / Supremo Tribunal Federal. – 2. ed. --
Brasília : STF, Secretaria de Altos
Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2021. eBook (123 p.) Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaBibliografia/anexo/JuizDasGarantias_2ed.pdf
Acesso em 18.6.2023.
STRECK,
Lenio Luiz. Juiz das garantias: do neoconstitucionalismo ao
neoinconstitucionalismo. Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-02/senso-incomum-juiz-garantias-chegamos-neoinconstitucionalismo
Acesso em 19.6.2023.
VERRENICZ,
Marina. Quem é (e o que faz) o juiz de garantias, mudança que o STF analisa
nesta quarta-feira. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/justica/quem-e-e-o-que-faz-o-juiz-de-garantias-mudanca-que-o-stf-analisa-nesta-quarta-feira/ Acesso
em 18.6.2023.
Notas:
[1]
O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação
criminal e pela salvaguarda dos direitos
individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder
Judiciário. Consiste, pois, na outorga
exclusiva, a um determinado órgão jurisdicional, da competência para o
exercício da função de garantidor dos direitos fundamentais na fase
investigatória da persecução penal, o
qual ficará, na sequência, impedido de funcionar no processo judicial desse
mesmo caso penal. In: DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Direito
Processual Penal. 8.ed. Salvador: Jus Podivm, 2020, p.114.
[2]
A respeito das inconstitucionalidades arguidas, a formal e material dos juiz
das garantias. Há a inconstitucionalidade formal em face de vício de iniciativa
relativo à competência legislativa do Judiciário para alterar a organização e a
divisão judiciária. Há quem entenda que o Pacote Anticrime estaria contaminado
por uma inconstitucionalidade formal por ofensa à competência dos Tribunais
para a criação de órgãos do Judiciário (artigo 96, I, d e II, b e d, e artigo
110), bem como à competência dos Estados para organizarem sua própria justiça e
à competência dos Tribunais de Justiça para iniciarem a lei de sua organização
judiciária. Cogita-se sobre a inconstitucionalidade material em razão de
violação à regra de autonomia financeira e administrativa do Judiciário, ex vi
o artigo 99, caput da CF/1988, em razão da ausência de prévia dotação
orçamentária para a implementação das alterações organizacionais acarretadas
pela Lei (artigo 169, §1ºCF/1988) e em razão da violação do novo regime fiscal
da União instituído pela Emenda Constitucional 95 (ADCT, arts. 104 e 113).
[3]
O juiz de garantias não é juiz investigador nem juiz defensor do investigado ou
acusado. Aliás, esse nomen iuris é inadequado e não foi uma boa escolha pois dá
margem a uma equivocada compreensão de que o juiz irá se limitar a proteger os
direitos do acusado. O juiz de garantias
não apenas avalia se o requerimento feito pela autoridade investigadora não
viola a legislação como também autoriza medidas invasivas e impõe cautelares,
entre as quais a prisão provisória. Ao autorizar medidas invasivas e determinar
a prisão, não está se limitando a observar regras de garantia, mas também
normas de segurança pública garantistas da coletividade.
[4]
A Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, conhecida como Pacote Anticrime,
alterou 17 (dezessete) leis - dentre as quais o Código Penal, o Código de
Processo Penal e a Lei de Execuções Penais – com profundos reflexos no sistema
de justiça criminal brasileiro. O Pacote Anticrime é o nome dado à Lei
13.964/19. Ela surgiu com o propósito de combater a criminalidade no país,
principalmente com relação aos crimes de natureza grave e que vêm crescendo no
nosso país há décadas. Como o tráfico de drogas, crime organizado, homicídios e
outros delitos que causam repulsa social.
O Pacote Anticrime inovou ao trazer a figura do juiz
das garantias, responsável pelo controle da legalidade da investigação
criminal. Inicialmente, o Projeto de Lei vedava o emprego de videoconferência
para a realização da audiência de custódia.
[5] In: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. p. 83. Em sentido semelhante, Marco Antônio de Barros adverte que “a imparcialidade do juiz não exclui seu poder-dever de buscar a verdade, sobretudo porque imparcialidade não se confunde com inércia e nem está limitada ao sabor de uma contrariedade ativa da partes, mas das garantias processuais de defesa. É perfeitamente possível compatibilizar a imparcialidade com a busca da verdade, bastando apenas que a função jurisdicional seja exercida com equilíbrio e em consonância com os ditames legais” (A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 122).
[6]
As novas regras da prisão preventiva são o tema mais frequente na
jurisprudência do STJ em torno da Lei Anticrime. Em uma série de julgados, as
turmas penais vêm consolidando o entendimento de que a Lei 13.964/2019 – nos
termos da redação conferida ao artigo 315 do CPP – exige expressamente que a
imposição de preventiva ou de qualquer outra cautelar deve estar fundamentada
em motivação concreta relacionada a fatos novos ou contemporâneos e na
demonstração da imprescindibilidade da medida restritiva. O princípio da
contemporaneidade foi aplicado pela Sexta Turma para conceder, por unanimidade,
habeas corpus (HC 553.310) relatado pela ministra Laurita Vaz a uma então
vereadora de Bertioga (SP), denunciada pela suposta prática do crime de concussão
no seu gabinete parlamentar. Segundo o Ministério Público de São Paulo, entre
2013 e 2014, ela teria exigido de dois assessores parte de sua remuneração
mensal, totalizando cerca de R$ 42 mil. Em razão da denúncia, a ex-vereadora
foi afastada do cargo pelo juízo de primeiro grau.
[7]
O sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas, contrapondo-se acusação e defesa em igualdade
de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz,
de maneira equidistante e imparcial. Historicamente, tem como suas
características a oralidade e a
publicidade, nele se aplicando o princípio da presunção de inocência. Logo, a
regra era que o acusado permanecesse
solto durante o processo. Não obstante, em várias fases do Direito Romano, o sistema acusatório foi escrito e sigiloso.
São características do sistema acusatório a separação rígida entre o juiz
e acusação, a paridade entre acusação e
defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento. Lado outro, são tipicamente próprios do sistema
inquisitório a iniciativa do juiz em campo probatório, a disparidade de poderes entre acusação e
defesa e o caráter escrito e secreto da instrução.
[8]
“A imparcialidade requer do magistrado, portanto, uma postura de equidistância
em relação às partes, a exigir que
assuma uma posição para além dos interesses delas, o que, em tese, permitirá
uma atuação jurisdicional objetiva, desapaixonada, na qual não deverá
favorecer, seja por interesse ou
simpatia, seja por ódio ou antipatia, a nenhuma das partes. Em outras palavras,
é o desinteresse subjetivo no resultado
do processo o que caracteriza o ser imparcial. Ser imparcial, nas palavras de Giacomolli, “não significa
ignorar as pretensões das partes, suas perspectivas e expectativas, mas outorgar confiança e
segurança de um julgamento na qualidade de terceiro e não de parte, bem como evitar que seja
proferido um julgamento com dúvida razoável acerca da parcialidade do julgador”. In: DE
LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Direito Processual Penal, 8ª edição,
Salvador: JusPodivm, 2020, p.120.
[9]
No entanto, há causas em que o juiz, por sua condição pessoal, por motivações
internas ou em decorrência de sua própria atuação dentro do processo coloca em
risco a neutralidade ou imparcialidade esperada para o exercício de sua função.
Nesse casos, então, incidem o que se chamam de causa de suspeição ou
impedimento do juiz. Reguladas do art. 144 ao art. 148 do CPC/2015, as
hipóteses de impedimento e suspeição sofreram alterações em relação ao
CPC/1973. Entre elas, está a forma de alegação das partes interessadas. Isto
porque, anteriormente, a alegação se dava através de exceção de impedimento,
enquanto, atualmente, ocorre através de incidente de suspeição e impedimento.
[10] O núcleo fundamental do contraditório estaria
ligado à discussão dialética dos fatos
da causa, devendo se assegurar a ambas as partes, e não somente à defesa, a oportunidade de fiscalização
recíproca dos atos praticados no curso do processo. Eis o motivo pelo qual se vale a doutrina da
expressão “audiência bilateral”, consubstanciada pela expressão em latim audiatur et altera pars
(seja ouvida também a parte adversa). Seriam dois, portanto, os elementos do contraditório: a)
direito à informação; b) direito de participação. O contraditório seria, assim, a necessária
informação às partes e a possível reação aos atos desfavoráveis.
[11]
O direito de defesa está ligado diretamente ao princípio do contraditório. A
defesa garante o contraditório e por ele se manifesta. Enfim, o exercício da
ampla defesa só é possível em virtude de
um dos elementos que compõem o contraditório – o direito à informação. Além disso, a ampla defesa se exprime por meio de seu segundo
elemento: a reação. Apesar da influência recíproca entre o direito de defesa e o contraditório,
os dois não se confundem. Realmente, por força do princípio do devido processo legal, o
processo penal exige partes em posições antagônicas, uma delas obrigatoriamente em posição de defesa
(ampla defesa), havendo a necessidade de que cada uma tenha o direito de se contrapor aos atos
e termos da parte contrária (contraditório). Constata-se que a defesa e o
contraditório são manifestações simultâneas, intimamente ligadas pelo
processo, sem que daí se possa concluir
que uma derive da outra.
[12] Entre as novidades, a Lei Anticrime elevou de
30 para 40 anos o tempo máximo da pena de reclusão, ampliou o rol de crimes
considerados hediondos – foram incluídos delitos como genocídio, roubo com
restrição de liberdade da vítima e furto com uso de explosivo – e limitou as
hipóteses de progressão de regime e de livramento condicional. Somente duas
regras ainda não entraram em vigor. Uma delas é a criação do juiz das
garantias, com o acréscimo dos artigos 3ª-A a 3º-F no CPP. A outra é a
exigência de realização de audiências de custódia no prazo máximo de 24 horas após
a prisão em flagrante, conforme nova redação dada ao artigo 310 do CPP. Ambas
as normas estão suspensas por liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal
(STF), Luiz Fux, relator das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs)
6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.
[13]
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) atualizou a versão do Sistema Eletrônico
de Execução Unificado (SEEU) com as mudanças que impactam a execução penal pela
Lei nº 13.964/2019, o chamado Pacote Anticrime. Doravante, os magistrados, servidores e demais atores do
sistema de Justiça com atuação nos 29 tribunais estaduais e federais que já
aderiram ao SEEU podem utilizar as adequações na calculadora de execução penal,
a execução da pena multa e outras novidades trazidas pelo Pacote Anticrime,
como os acordos de não persecução penal.
[14]
Em Portugal, a figura do juiz de garantias foi criada em 1987. A lei portuguesa
diz que as medidas mais invasivas da investigação — prisões provisórias, busca
e apreensão, quebras de sigilo de comunicações e de dados bancários e fiscais —
só serão autorizadas se houver "graves indícios" de prática de crime
cometido intencionalmente.
[15]
A partir do século XIII, o sistema inquisitorial passa a sofrer alterações com a modificação
napoleônica, que instituiu o denominado sistema processual misto. Trata-se de um modelo novo,
funcionando como uma fusão dos dois modelos anteriores, que surge com o Code d’Instruction
Criminelle francês, de 1808. Por isso, também é denominado de sistema francês. É chamado de sistema
misto porquanto abrange duas fases processuais distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitorial, destituída
de publicidade e ampla defesa, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem
contraditório. Sob o comando do juiz, são realizadas uma investigação preliminar e uma instrução
preparatória, objetivando-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de
caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga,
vigorando, em regra, a publicidade, a oralidade, a isonomia processual e o direito de
manifestar-se a defesa depois da acusação.
[16]
O juiz das garantias representa sua domesticação. Traduz uma relação processual
penal civilizada. O Código de Processo Penal brasileiro, embora date de 1941,
foi, no curso dos anos, sendo modificado, adaptando-se aos novos tempos e novas
realidades. Seu aprimoramento tem sido constante. Não é um texto desatualizado,
muito embora ainda necessite de algumas alterações, especialmente na parte
recursal , e de revogação expressa de
alguns dispositivos que já se encontram tacitamente revogados. O juiz das
garantias ingressou no trem de refinamento da norma processual. Com
nomenclaturas diversas, já se encontra em prática em diversos países, entre os
quais, Itália, Portugal, França, Alemanha, México, Chile, Paraguai e Colômbia.
Não é, por conseguinte, inovação nacional.
[17]
Na condição de Relator das ADIs 6928, 6299, 6300 e 6305 (j. 22.01.2020) todas
ajuizadas em face do Pacote Anticrime, o Ministro Luiz Fux suspendeu sine die a
eficácia, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e de
seus consectários (CPP, artigos 3-a, 3-B, 3-C, 3-D, 3-E e 3-F), afirmando,
ademais, que a concessão dessa medida cautelar não teria o condão de interferir
nem suspender os inquéritos e processos então em andamento, nos termos do
artigo 10, §2º da Lei 9.868/95.
[18] Cumpre observar que a imparcialidade se
divide em subjetiva e objetiva. A primeira é examinada no íntimo da convicção do
julgador e, visa evitar que o processo seja conduzido por quem já tenha formado
convicção pessoal prévia acerca do objeto do julgamento, isto é, pode ser
traduzida na impossibilidade de o julgador aderir às razões de uma das partes
antes do momento processual estabelecido. Já a segunda é mensurada a partir da
postura do julgador, que não deverá abrir espaço de dúvida de que conduz o
processo sem preterir uma parte à ou outra, isto é, não basta ser imparcial, sendo indispensável
e essencial que o julgador aparente a referida imparcialidade. É o que chamamos
de teoria da aparência fulcrada no ditado britânico justice must not only be
done; it must also be seen to be done. Há de assegurar uma aparência de
imparcialidade à atividade jurisdicional, já que a sua própria legitimidade
depende, da confiança das partes e da sociedade na imparcialidade do
magistrado.
[19]
Caberá julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia: ao
introduzir a figura do juiz das
garantias no Pacote Anticrime, estendendo sua competência até o
recebimento da denúncia, e não mais até
o seu oferecimento, como estava previsto no projeto do novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei do Senado n.
156/2009, art. 15, caput, e §§1º e 2º), o legislador deveria, então, ter alterado a redação do
presente inciso no mesmo sentido, ou seja, para dizer que a competência do juiz das garantias para
o processo e julgamento de eventual habeas corpus estende-se até o recebimento da denúncia, e
não até o oferecimento, como equivocadamente acabou constando da redação final do inciso XII.
[20]
Afirma-se que o sistema não poderia ser implantado nas comarcas onde só há um
juiz. Em verdade, a possibilidade de faltar juiz se dá também nas comarcas que
tenham dois juízes, já que um deles pode estar gozando férias. O parágrafo
único do artigo 3º-D, ao prescrever que nas comarcas em que funcionar apenas um
juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, regulando
organização judiciária, é inconstitucional. Nas comarcas em que houver apenas
dois juízes, a função de juiz das garantias terá de ser realizada por juiz de
outra comarca ou por uma central de juízes das garantias.
[21]
Em tempo, esclareça-se que o juiz de garantias não é novo tipo de magistrado,
mas somente nova função desempenhada por juiz que pertence ao mesmo judiciário.
A criação de nova causa de impedimento e repartição de competência entre os
magistrados para as fases de investigação e instrução processual penal se
inserem no âmbito da competência legislativa privativa da União, por dispor
sobre direito processual.