Dor de cabeça: juiz de garantias

A existência e implementação do juiz de garantia é, em si, uma garantia relacionada ao princípio do juiz natural e da imparcialidade, mas só se concretizará realmente se o julgador que exercer as respectivas funções tiver condições cabais para fazê-lo, sem que fique sujeito às transferências arbitrárias, ou mesmo designações fundadas em interesses privados ou espúrios. Merece toda atenção o julgamento sobre o juiz das garantias  e de como será estabelecido pelas normas de organização judiciária no Brasil. Por essa razão, é muito relevante o julgamento pelo STF ainda em andamento.

Fonte: Gisele Leite

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Em 14.06.2023 iniciou-se o julgamento perante a Suprema Corte brasileira das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 que requerem a inconstitucionalidade[2] que instituíram o Juiz das Garantias[3] no direito processual penal brasileiro,  devido a arguida invasão de competência dos tribunais para editar regras de organização judiciária, ora por não apontar a fonte de recursos orçamentários que seriam indispensáveis para a devida implementação do juiz de garantias.

Como autores das ADIs existem várias entidades, especialmente, representações da advocacia brasileira que ingressaram com as retromencionadas ações na condição de amicus curiae, cujo interesse na matéria se tem com base no artigo133 da Constituição Federal Brasileira de 1988 c.c. com o artigo 44, I da Lei8.906/1994 (Estatuto da OAB) com o fito de defender que inexiste inconstitucionalidade nos dispositivos nos artigos 3-A e 3-F do Código deProcesso Penal acrescidos pela Lei 13.964/2019[4].

Não parece ser simples a questão levada à julgamento da Corte Suprema brasileira mas  é de inegável utilidade do juiz de garantias como meio de fortalecer a nossa justiça criminal.

A priori, trata-se de estabelecer que o comando processual implica no reconhecimento de impedimento pela prevenção decorrente da decisão  exarada ainda na fase investigatória de jurisdição, de tal maneira que o outro juiz era conduzir o processo criminal em juízo e, então, sentenciar o feito, reforçando os padrões de imparcialidade[5] que deve ter todas as decisões judiciais válidas.

Quanto a criação legal do juiz de garantias, refere-se a tarefa das normas de organização judiciária brasileiras, conforme o artigo 3º-E do CPP ao tempo de fixar relevantes funções a serem cumpridas pelo julgador que atuar na fase de investigação criminal, bem como demonstrar que tal competência para decidir sobre a liberdade, a busca domiciliar, interceptações telefônicas e de dados, quebras de sigilo bancário e fiscal, não está, absolutamente, afeta as regras organizacionais, mas, sem dúvida, é matéria  de competência exclusiva da União, por meio de lei federal, conforme a vontade do povo, manifestada através de seus representantes no Congresso Nacional.

É possível implantar a sensível evolução para o processo penal brasileiro, porém, não sem afetar o orçamento, restando aos tribunais garantir que o juiz que se manifestar no inquérito policial, proferindo decisão que acarrete o julgamento de mérito sobre os envolvidos, não será o mesmo que irá, ao final, sentenciar o acusado. O que apenas aparentemente é simples em face dos processos digitalizados e digitais já existentes no país. Ressalte-se que ainda existem processos não digitalizados no país.

O STF já pacificou que o sistema acusatório é o que norteia a persecução penal no Brasil. De sorte que o acusador não poderá julgar, vigendo nítida separação entre a acusação e a magistratura para que seja mantida a imparcialidade.

O juiz atuante na fase da inquérito policial deferindo os pedidos como o de prisão preventiva[6], prisão temporária, por já ter realizado juízo íntimo de valor e, prosseguindo adiante em todo o  processo criminal, já decidira por sentença absolutória ou condenatória.

A gestão da prova pelo juiz é regida pela vedação da iniciativa acusatória do juiz das garantias e da iniciativa probatória do juiz da instrução e julgamento. O sistema acusatório[7] é de fato explicitamente adotado pelo texto constitucional brasileiro vigente e que atribui à pessoa diversa da autoridade judiciária a titularidade da ação penal pública, cogita-se de um modelo democrático de gestão da prova, vinculado ao princípio dispositivo que orientará a atividade judicial imparcial.

Ensina o ilustre doutrinador Renato Brasileiro de Lima, in litteris:

       "Não basta, pois, pensar o sistema acusatório  baseado exclusivamente na separação inicial das atividades de acusar e julgar. Afinal, como  observa Aury Lopes Jr., de nada adianta uma separação inicial, com o oferecimento de uma  denúncia pelo Ministério Público, se, na sequência, ao longo de toda a marcha procedimental,  ao juiz for outorgado um papel ativo de protagonismo na busca pela prova ou até mesmo na  prática de atos típicos da acusação."

Recorde-se que o art. 5º da Constituição Federal brasileira vigente não estabeleceu expressamente a imparcialidade do juiz[8] como necessidade intrínseca à função de julgar, embora vários de seus incisos tornem implícita (e também real) essa exigência (XXXVII, LIII, LIV e LV). 

Ademais o art. 144, II, do vigente Código de Processo Civil brasileiro[9](CPP), veda o exercício da judicatura quando o juiz conheceu do processo e proferiu decisão em outro grau de jurisdição. 

Normalmente, a jurisdição penal brasileira de primeira instância se desenvolve em das fases distintas, a da investigação criminal e a do processo criminal.

Há de se reconhecer que o juiz de primeiro grau, na investigação policial, ainda sem ser dotado de plenas garantias processuais tal como o contraditório[10] e a ampla defesa[11] a que faz jus o acusado no trâmite do processo criminal, vindo a ultrapassar as proteções constitucionais à intimidade e privacidade e, ainda, a necessária produção de prova para firmar a justa causa de futura ação penal, por fazer juízos positivos quanto à possível existência de fatos típicos (crimes) e seus eventuais autores, a indicar, de plano, seu convencimento ou juízo de valor, não sendo relevante, se de forma parcial ou preliminar[12].

Há, de fato, uma prática reiterada e perniciosa de submeter aos tribunais superiores, particularmente o STF, todos os temas em que os partidos enxerguem suas ambições políticas contrariadas pela vontade da maioria, e segundo a democracia vigente que rege as disputas presentes nas casas legislativas brasileiras, o que acarreta o reconhecimento de falhas no processo legislativo que vem sendo firmemente repetidas, gerando muitas inconveniências, mas, particularmente, porque neutraliza o exercício democrático do parlamento e, ainda impõe aos tribunais superiores a árdua tarefa de fiscalizar a higidez do processo legislativo no país.

Parece que a melhor solução, sem custos ou grandes mobilizações, é apenas fazer a distribuição cruzada, já sugerida pelo próprio CNJ(Conselho Nacional de Justiça)[13], que pode ser implementada em curto espaço de tempo. Não haveria questionamentos orçamentários e nem se criaria dois tipos de juízes no primeiro grau, permitindo que todos atuem nas duas fases do procedimento, desde que não seja nos mesmos autos. 

O tão propalado instituto é adotado por diversos países[14], tanto os mais desenvolvidos como também os menos, entre os primeiros situam-se a Alemanha, Itália, França[15] e, entre os segundos, Chile e Colômbia. Apesar de exibirem nomenclaturas diferentes, como é o caso francês que é denominado como “Juiz das Liberdades e da Detenção”.

Na América Latina, apenas Cuba e Brasil ainda não tinham adotado o modelo de juiz de garantias. Na Argentina, a adoção do juiz de garantias deu-se desde 1991, mas ainda existem alguns problemas estruturais e, em alguns lugares ainda não foi colocado em prática[16].

O chamado "juez de las garantías" começou a ser implantando em 1991 na Argentina, mas ainda segue um caminho gradual pois não foi concluído ainda. Nos lugares em que já existe essa figura, o magistrado recebe os pedidos dos promotores do Ministério Público, os chamados "fiscales". São pedidos de prisões provisórias, buscas e apreensões e quebras de sigilo de comunicações e de dados bancários e fiscais. O juiz pode autorizar ou negar.

De fato, os motivos favoráveis e contrários são diversos. E, ainda, existem fartos argumentos a favor, pois procura evitar a concentração do poder decisório num só juiz, uma vez que no país, alguns juízes gozam de protagonismo processual, o que vem a comprometer a imparcialidade nas decisões judiciais finais.

Os principais críticos argumentam que há número insuficiente de magistrados, a geração de despesas com as quais os judiciários estaduais brasileiros e, mesmo o federal não poderiam arcar. Além da intransponível dificuldade em face do exíguo prazo para a referida implementação. O que acarretou a suspensão de sua aplicação pelo Ministro do STF Luiz Fux, na época o relator e o Presidente do STF[17].

Segundo Marcelo Oliveira da Silva, a principal barreira para se admitir o juiz de garantia é que o direito nega ao inimigo do Estado a sua condição de pessoa. A negação jurídica da condição de pessoa ao inimigo é uma característica do tratamento penal que lhe é conferido no sistema de justiça criminal próprio do regime inquisitorial e autoritário.

Reitera o aludido doutrinador que o devido processo legal substancial[18] e o princípio acusatório devem se prestar a impor limites à atuação do Estado-juiz[19], iluminando e direcionando as regras do processo penal. Em busca de um suposto bem maior, qual seja, o resguardo da segurança pública, a busca da "verdade real", de forma indiscriminada e ilimitada, com ofensas aos direitos individuais da liberdade, privacidade e  da intimidade da vida privada.

Quanto aos argumentos contrários, há motivos de ordem orçamentária e financeira, gerando sensível gasto para a máquina judiciária atuante e vigente. Um gravame indelével é a existência das diferenças das realidades regionais entre Estados[20] e até mesmo entre cidades de uma mesma unidade da Federação brasileira, o que dificulta a implementação do juiz de garantias. Atualmente, há um déficit de 4,4 mil magistrados em todas as áreas da Justiça[21].

Os desembargadores de tribunais regionais e juízes de tribunais estaduais enfatizam que a adoção da medida implicará em custos, com aumento de pessoal, de instalações físicas e de uso da tecnologia. É certo que o instituto fortalece as garantias processuais e a imparcialidade do magistrado, diante dos desafios gerados por novas formas de investigação e meios de provas desenvolvidos pelas evoluções tecnológicas.

Há o Projeto de Lei 3479/21 obriga o Poder Judiciário a implementar o juiz das garantias no prazo de cinco anos, após a realização das alterações legais necessárias e provisões orçamentárias. O texto tramita na Câmara dos Deputados.

De qualquer forma, reitera-se que o juiz de garantias é a nova cefaleia do momento, mobilizando o Judiciário, o Legislativo e a cidadania brasileira[22].

Referências:

ARAS, Vladimir. Os prós e contras do juiz de garantias. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-pros-e-contras-do-juiz-de-garantias-14022020 Acesso em 18.8.2023.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS MAGISTRADOS.  Ao grupo de Trabalho, do Conselho Nacional de Justiça, destinados a analisar os impactos da Lei nº 13.964/2019. Brasília, 2020.

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy.  Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969.

DA SILVA, Marcelo Oliveira. Por que temer o Juiz das Garantias? Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista_v23_n2/revista_v23_n2_86.pdf Acesso em 18.8.2023.

DA SILVEIRA, Marco Aurelio Nunes. A adoção do instituto do Juiz das Garantias no Processo Penal brasileiro como possibilidade para a jurisdição imparcial. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/71238/Maisa%20Almeida%20Leite.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 19.6.2023

DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal. 8ª edição. Salvador: JusPodivm, 2020.

GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2016.

LOPES, Aury Júnior e Ritter, Ruiz. A Imprescindibilidade Do Juiz Das Garantias Para Uma Jurisdição Penal Imparcial: Reflexões A Partir Da Teoria Da Dissonância Cognitiva. 2017.

LIMA, Walter Alves. A figura do juiz das garantias no contexto internacional e nacional. Brasil, 2022.

MAYA, André Machado. Imparcialidade e Processo Penal: Da Prevenção da Competência ao Juiz de Garantias. 2ª ed. Grupo Gen. 2014.

MEDEIROS, Flávio Meirelles. Artigo 3º-B CPP - Funções do juiz das garantias. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/artigo-3-b-cpp-funcoes-do-juiz-das-garantias/1114276162 Acesso em 18.6.2023.

ROSA, Alexandre Morais; Junior, Aury Lopes. Entenda o impacto do Juiz das Garantias no Processo Penal. CONJUR, 2019.

RUIZ FILHO, Antonio. Em julgamento, o juiz das garantias. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/388254/em-julgamento-o-juiz-das-garantias Acesso em 18.6.2023.

Supremo Tribunal Federal (STF). Juiz das garantias [recurso eletrônico] : bibliografia, legislação e  jurisprudência temática / Supremo Tribunal Federal. – 2. ed. -- Brasília : STF,  Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2021.  eBook (123 p.) Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaBibliografia/anexo/JuizDasGarantias_2ed.pdf Acesso em 18.6.2023.

STRECK, Lenio Luiz. Juiz das garantias: do neoconstitucionalismo ao neoinconstitucionalismo. Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-02/senso-incomum-juiz-garantias-chegamos-neoinconstitucionalismo Acesso em 19.6.2023.

VERRENICZ, Marina. Quem é (e o que faz) o juiz de garantias, mudança que o STF analisa nesta quarta-feira. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/justica/quem-e-e-o-que-faz-o-juiz-de-garantias-mudanca-que-o-stf-analisa-nesta-quarta-feira/   Acesso em 18.6.2023.

Notas:


[1] O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda  dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário.  Consiste, pois, na outorga exclusiva, a um determinado órgão jurisdicional, da competência para o exercício da função de garantidor dos direitos fundamentais na fase investigatória da persecução penal,  o qual ficará, na sequência, impedido de funcionar no processo judicial desse mesmo caso penal. In: DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Direito Processual Penal. 8.ed. Salvador: Jus Podivm, 2020, p.114.

[2] A respeito das inconstitucionalidades arguidas, a formal e material dos juiz das garantias. Há a inconstitucionalidade formal em face de vício de iniciativa relativo à competência legislativa do Judiciário para alterar a organização e a divisão judiciária. Há quem entenda que o Pacote Anticrime estaria contaminado por uma inconstitucionalidade formal por ofensa à competência dos Tribunais para a criação de órgãos do Judiciário (artigo 96, I, d e II, b e d, e artigo 110), bem como à competência dos Estados para organizarem sua própria justiça e à competência dos Tribunais de Justiça para iniciarem a lei de sua organização judiciária. Cogita-se sobre a inconstitucionalidade material em razão de violação à regra de autonomia financeira e administrativa do Judiciário, ex vi o artigo 99, caput da CF/1988, em razão da ausência de prévia dotação orçamentária para a implementação das alterações organizacionais acarretadas pela Lei (artigo 169, §1ºCF/1988) e em razão da violação do novo regime fiscal da União instituído pela Emenda Constitucional 95 (ADCT, arts. 104 e 113).

[3] O juiz de garantias não é juiz investigador nem juiz defensor do investigado ou acusado. Aliás, esse nomen iuris é inadequado e não foi uma boa escolha pois dá margem a uma equivocada compreensão de que o juiz irá se limitar a proteger os direitos do acusado.  O juiz de garantias não apenas avalia se o requerimento feito pela autoridade investigadora não viola a legislação como também autoriza medidas invasivas e impõe cautelares, entre as quais a prisão provisória. Ao autorizar medidas invasivas e determinar a prisão, não está se limitando a observar regras de garantia, mas também normas de segurança pública garantistas da coletividade.

[4] A Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, conhecida como Pacote Anticrime, alterou 17 (dezessete) leis - dentre as quais o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execuções Penais – com profundos reflexos no sistema de justiça criminal brasileiro. O Pacote Anticrime é o nome dado à Lei 13.964/19. Ela surgiu com o propósito de combater a criminalidade no país, principalmente com relação aos crimes de natureza grave e que vêm crescendo no nosso país há décadas. Como o tráfico de drogas, crime organizado, homicídios e outros delitos que causam repulsa social.

O Pacote Anticrime inovou ao trazer a figura do juiz das garantias, responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal. Inicialmente, o Projeto de Lei vedava o emprego de videoconferência para a realização da audiência de custódia.

[5]  In: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. p. 83. Em sentido semelhante, Marco Antônio de Barros adverte que “a imparcialidade do juiz não exclui seu poder-dever de buscar a  verdade, sobretudo porque imparcialidade não se confunde com inércia e nem está limitada ao sabor de uma  contrariedade ativa da partes, mas das garantias processuais de defesa. É perfeitamente possível compatibilizar a  imparcialidade com a busca da verdade, bastando apenas que a função jurisdicional seja exercida com equilíbrio  e em consonância com os ditames legais” (A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos  Tribunais, 2002. p. 122).

[6] As novas regras da prisão preventiva são o tema mais frequente na jurisprudência do STJ em torno da Lei Anticrime. Em uma série de julgados, as turmas penais vêm consolidando o entendimento de que a Lei 13.964/2019 – nos termos da redação conferida ao artigo 315 do CPP – exige expressamente que a imposição de preventiva ou de qualquer outra cautelar deve estar fundamentada em motivação concreta relacionada a fatos novos ou contemporâneos e na demonstração da imprescindibilidade da medida restritiva. O princípio da contemporaneidade foi aplicado pela Sexta Turma para conceder, por unanimidade, habeas corpus (HC 553.310) relatado pela ministra Laurita Vaz a uma então vereadora de Bertioga (SP), denunciada pela suposta prática do crime de concussão no seu gabinete parlamentar. Segundo o Ministério Público de São Paulo, entre 2013 e 2014, ela teria exigido de dois assessores parte de sua remuneração mensal, totalizando cerca de R$ 42 mil. Em razão da denúncia, a ex-vereadora foi afastada do cargo pelo juízo de primeiro grau.

[7] O sistema acusatório caracteriza-se pela presença de partes distintas,  contrapondo-se acusação e defesa em igualdade de condições, e a ambas se sobrepondo um juiz,  de maneira equidistante e imparcial. Historicamente, tem como suas características a oralidade  e a publicidade, nele se aplicando o princípio da presunção de inocência. Logo, a regra era que o  acusado permanecesse solto durante o processo. Não obstante, em várias fases do Direito Romano,  o sistema acusatório foi escrito e sigiloso. São características do sistema acusatório a separação rígida entre o juiz e  acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento. Lado  outro, são tipicamente próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz em campo probatório,  a disparidade de poderes entre acusação e defesa e o caráter escrito e secreto da instrução.

[8] “A imparcialidade requer do magistrado, portanto, uma postura de equidistância em relação  às partes, a exigir que assuma uma posição para além dos interesses delas, o que, em tese, permitirá uma atuação jurisdicional objetiva, desapaixonada, na qual não deverá favorecer, seja por  interesse ou simpatia, seja por ódio ou antipatia, a nenhuma das partes. Em outras palavras, é o  desinteresse subjetivo no resultado do processo o que caracteriza o ser imparcial. Ser imparcial,  nas palavras de Giacomolli, “não significa ignorar as pretensões das partes, suas perspectivas e  expectativas, mas outorgar confiança e segurança de um julgamento na qualidade de terceiro e  não de parte, bem como evitar que seja proferido um julgamento com dúvida razoável acerca da  parcialidade do julgador”. In: DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Direito Processual Penal, 8ª edição, Salvador: JusPodivm, 2020, p.120.

[9] No entanto, há causas em que o juiz, por sua condição pessoal, por motivações internas ou em decorrência de sua própria atuação dentro do processo coloca em risco a neutralidade ou imparcialidade esperada para o exercício de sua função. Nesse casos, então, incidem o que se chamam de causa de suspeição ou impedimento do juiz. Reguladas do art. 144 ao art. 148 do CPC/2015, as hipóteses de impedimento e suspeição sofreram alterações em relação ao CPC/1973. Entre elas, está a forma de alegação das partes interessadas. Isto porque, anteriormente, a alegação se dava através de exceção de impedimento, enquanto, atualmente, ocorre através de incidente de suspeição e impedimento.

[10]  O núcleo fundamental do contraditório estaria ligado  à discussão dialética dos fatos da causa, devendo se assegurar a ambas as partes, e não somente  à defesa, a oportunidade de fiscalização recíproca dos atos praticados no curso do processo. Eis  o motivo pelo qual se vale a doutrina da expressão “audiência bilateral”, consubstanciada pela  expressão em latim audiatur et altera pars (seja ouvida também a parte adversa). Seriam dois,  portanto, os elementos do contraditório: a) direito à informação; b) direito de participação. O  contraditório seria, assim, a necessária informação às partes e a possível reação aos atos desfavoráveis.

[11] O direito de defesa está ligado diretamente ao princípio do contraditório. A defesa garante o contraditório e por ele se manifesta. Enfim, o exercício da ampla defesa só é possível em virtude  de um dos elementos que compõem o contraditório – o direito à informação.  Além disso, a ampla  defesa se exprime por meio de seu segundo elemento: a reação. Apesar da influência recíproca  entre o direito de defesa e o contraditório, os dois não se confundem. Realmente, por força do  princípio do devido processo legal, o processo penal exige partes em posições antagônicas, uma  delas obrigatoriamente em posição de defesa (ampla defesa), havendo a necessidade de que cada  uma tenha o direito de se contrapor aos atos e termos da parte contrária (contraditório). Constata-se que a defesa e o contraditório são manifestações simultâneas, intimamente ligadas pelo processo,  sem que daí se possa concluir que uma derive da outra.

[12]  Entre as novidades, a Lei Anticrime elevou de 30 para 40 anos o tempo máximo da pena de reclusão, ampliou o rol de crimes considerados hediondos – foram incluídos delitos como genocídio, roubo com restrição de liberdade da vítima e furto com uso de explosivo – e limitou as hipóteses de progressão de regime e de livramento condicional. Somente duas regras ainda não entraram em vigor. Uma delas é a criação do juiz das garantias, com o acréscimo dos artigos 3ª-A a 3º-F no CPP. A outra é a exigência de realização de audiências de custódia no prazo máximo de 24 horas após a prisão em flagrante, conforme nova redação dada ao artigo 310 do CPP. Ambas as normas estão suspensas por liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, relator das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.

[13] O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) atualizou a versão do Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU) com as mudanças que impactam a execução penal pela Lei nº 13.964/2019, o chamado Pacote Anticrime. Doravante,  os magistrados, servidores e demais atores do sistema de Justiça com atuação nos 29 tribunais estaduais e federais que já aderiram ao SEEU podem utilizar as adequações na calculadora de execução penal, a execução da pena multa e outras novidades trazidas pelo Pacote Anticrime, como os acordos de não persecução penal.

[14] Em Portugal, a figura do juiz de garantias foi criada em 1987. A lei portuguesa diz que as medidas mais invasivas da investigação — prisões provisórias, busca e apreensão, quebras de sigilo de comunicações e de dados bancários e fiscais — só serão autorizadas se houver "graves indícios" de prática de crime cometido intencionalmente.

[15] A partir do século XIII, o sistema inquisitorial passa a  sofrer alterações com a modificação napoleônica, que instituiu o denominado sistema processual  misto. Trata-se de um modelo novo, funcionando como uma fusão dos dois modelos anteriores,  que surge com o Code d’Instruction Criminelle francês, de 1808. Por isso, também é denominado  de sistema francês. É chamado de sistema misto porquanto abrange duas fases processuais distintas: a primeira  fase é tipicamente inquisitorial, destituída de publicidade e ampla defesa, com instrução escrita e  secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Sob o comando do juiz, são realizadas uma  investigação preliminar e uma instrução preparatória, objetivando-se apurar a materialidade e a  autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a  acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade, a oralidade,  a isonomia processual e o direito de manifestar-se a defesa depois da acusação.

[16] O juiz das garantias representa sua domesticação. Traduz uma relação processual penal civilizada. O Código de Processo Penal brasileiro, embora date de 1941, foi, no curso dos anos, sendo modificado, adaptando-se aos novos tempos e novas realidades. Seu aprimoramento tem sido constante. Não é um texto desatualizado, muito embora ainda necessite de algumas alterações, especialmente na parte recursal  , e de revogação expressa de alguns dispositivos que já se encontram tacitamente revogados. O juiz das garantias ingressou no trem de refinamento da norma processual. Com nomenclaturas diversas, já se encontra em prática em diversos países, entre os quais, Itália, Portugal, França, Alemanha, México, Chile, Paraguai e Colômbia. Não é, por conseguinte, inovação nacional.

[17] Na condição de Relator das ADIs 6928, 6299, 6300 e 6305 (j. 22.01.2020) todas ajuizadas em face do Pacote Anticrime, o Ministro Luiz Fux suspendeu sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, da implantação do juiz das garantias e de seus consectários (CPP, artigos 3-a, 3-B, 3-C, 3-D, 3-E e 3-F), afirmando, ademais, que a concessão dessa medida cautelar não teria o condão de interferir nem suspender os inquéritos e processos então em andamento, nos termos do artigo 10, §2º da Lei 9.868/95.

[18]  Cumpre observar que a imparcialidade se divide em subjetiva e objetiva. A primeira é examinada no íntimo da convicção do julgador e, visa evitar que o processo seja conduzido por quem já tenha formado convicção pessoal prévia acerca do objeto do julgamento, isto é, pode ser traduzida na impossibilidade de o julgador aderir às razões de uma das partes antes do momento processual estabelecido. Já a segunda é mensurada a partir da postura do julgador, que não deverá abrir espaço de dúvida de que conduz o processo sem preterir uma parte à ou outra, isto é,  não basta ser imparcial, sendo indispensável e essencial que o julgador aparente a referida imparcialidade. É o que chamamos de teoria da aparência fulcrada no ditado britânico justice must not only be done; it must also be seen to be done. Há de assegurar uma aparência de imparcialidade à atividade jurisdicional, já que a sua própria legitimidade depende, da confiança das partes e da sociedade na imparcialidade do magistrado.

[19] Caberá julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia: ao introduzir  a figura do juiz das garantias no Pacote Anticrime, estendendo sua competência até o recebimento  da denúncia, e não mais até o seu oferecimento, como estava previsto no projeto do novo Código  de Processo Penal (Projeto de Lei do Senado n. 156/2009, art. 15, caput, e §§1º e 2º), o legislador  deveria, então, ter alterado a redação do presente inciso no mesmo sentido, ou seja, para dizer  que a competência do juiz das garantias para o processo e julgamento de eventual habeas corpus  estende-se até o recebimento da denúncia, e não até o oferecimento, como equivocadamente acabou  constando da redação final do inciso XII.

[20] Afirma-se que o sistema não poderia ser implantado nas comarcas onde só há um juiz. Em verdade, a possibilidade de faltar juiz se dá também nas comarcas que tenham dois juízes, já que um deles pode estar gozando férias. O parágrafo único do artigo 3º-D, ao prescrever que nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, regulando organização judiciária, é inconstitucional. Nas comarcas em que houver apenas dois juízes, a função de juiz das garantias terá de ser realizada por juiz de outra comarca ou por uma central de juízes das garantias.

[21] Em tempo, esclareça-se que o juiz de garantias não é novo tipo de magistrado, mas somente nova função desempenhada por juiz que pertence ao mesmo judiciário. A criação de nova causa de impedimento e repartição de competência entre os magistrados para as fases de investigação e instrução processual penal se inserem no âmbito da competência legislativa privativa da União, por dispor sobre direito processual.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Juiz de Garantias[1] Pacote Anticrime Imparcialidade Juiz de Instrução e Julgamento Processo Penal

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