Condenação de Daniel Alves

O julgamento do jogador brasileiro Daniel Alves chegou ao fim em audiência realizada em 22.2.2024 pelo Tribunal Superior de Justiça da Catalunha e, sob a responsabilidade da juíza Isabel Delgado, quando foi considerado culpado e condenado a cumprir uma pena de quatro anos e seis meses de prisão na Espanha. O crime foi de agressão sexual que é equivalente ao estupro na legislação brasileira. E, o brasileiro ainda deverá cumprir pena de cinco anos de liberdade supervisionada após o integral cumprimento do tempo de encarceramento previsto em sentença. Cabe recurso. Também fora condenado a pagar indenização à vítima por danos físicos e morais decorrentes do crime cometido e, arcar com os custos processuais. O referido julgamento nos faz refletir nas diferentes legislações (brasileira e espanhola) e o endurecimento da repressão espanhola em razão de caso famoso de estupro coletivo. O caso atraiu muita atenção não apenas por ser o réu famoso, mas porque agressão sexual é tema político dominante na Espanha

Fonte: Gisele Leite

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O crime de violação sexual é positivado no artigo 179 do Código Penal espanhol[1] que prevê a pena de quatro a doze anos, e a recente condenação do jogador de futebol brasileiro Daniel Alves a quatro anos e seis meses de prisão e a multa de oito mil euros, a título de reparação à vítima estabeleceu-se cento e cinquenta mil euros e também outras penas acessórias.

O referido julgamento é o mais relevante depois da publicação da Lei Solo sí es sí. E, desde 2022 com a Lei de Liberdade Sexual na Espanha (só o sim é sim), em resposta ao estupro coletivo conhecido como La Manada em que cinco homens violentaram uma jovem de dezoito anos com sexo oral, anal e vaginal e, filmaram todo o ato, mas não foram condenados por agressão sexual, diante da ausência de prova de violência física ou intimidade.

A “Só sim é sim” aboliu a diferença entre "abuso" e "agressão sexual" na legislação espanhola. Antes, considerava-se crime de "abuso sexual" a prática que atentasse contra "liberdade sexual de uma pessoa, sem o consentimento da vítima e sem uso de violência, força ou intimidação".

Já a agressão sexual ou estupro era considerado o acesso ao corpo de outra pessoa para "atividade explicitamente sexual, sem consentimento e com violência". Sua forma mais grave é com penetração, mas não é a única.

Um caso de estupro coletivo[2] que ocorreu em 2016 e ficou famoso na Espanha pode ter desdobramentos com essa nova lei. O episódio em que cinco homens foram condenados por terem estuprado uma vítima de dezoito anos durante o festival de San Fermín, em Pamplona. O grupo ficou conhecido por “La Manada”.

A reforma do Código Penal espanhol levou o debate público naquele país a altos níveis de intensidade neste ano, sobretudo em relação às mudanças em tipificações nos títulos de crimes sexuais e de crimes econômicos.

"Hoje a Espanha tem o crime de agressão sexual, que é toda relação sem consentimento. Existe uma versão de menor gravidade, que é o abuso sexual, no qual há uma relação de intimidação, mas sem uso da força. E, voltou-se a uma situação anterior em relação ao estupro que doravante não é um tipo penal autônomo, mas uma forma mais grave do tipo 'agressão sexual'. Então, antes havia três crimes e agora há dois, com o estupro como forma agravada da agressão sexual".

Ressalte-se que a defesa de Daniel Alves apresentou duas teses, a saber: a relação sexual fora consentida e, o réu estava embriagado. Por isso, pleiteava-se sua absolvição ou até a redução da pena.

A acusação na Espanha havia solicitado pena de nove anos e, a advogada da vítima, uma pena de doze anos, além de liberdade vigiada e reparação de dano.

Rechaçou-se a alegação de relação sexual consentido não apenas pelo depoimento da vítima como também pela apresentação do vídeo da casa noturna e ainda depoimentos de testemunhas.

E, tais elementos probatórios foram coletados logo após o fato, devido ao Protocolo No Callem[3] e levados à juíza de instrução responsável pela investigação e a decretação da prisão preventiva. É a fase chamada de Juízo Oral, onde a audiência ocorre perante três julgadores da vigésima-primeira Audiência Provincial e foram também ouvidas dezenas de testemunhas e, peritos.

Cumpre lembrar, a propósito, da Lei Mariana Ferrer[4], a Lei 14.242/21 que prevê que na audiência de instrução e julgamento, especialmente, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual ordena que todas as partes bem como os demais sujeitos processuais presentes no ato, zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa.

Cabendo ao julgador ainda garantir o cumprimento do mandamento, sendo vedadas: I– a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Percebe-se, portanto que na Espanha que mais do que mero não é não, há o "só sim é sim" e qualquer ato sexual sem expresso consentimento já é considerado violência. Vide o artigo 178 CPE

Restou comprovado o estupro apesar de haver laudo médico negativo, o que representou uma clara mensagem de que o estupro não é prova de inocência.

A perícia negativa em crimes sexuais é a regra e não a exceção. E, como os vestígios físicos tendem a desaparecer celeremente, em até vinte e quatro horas para boca, pela e ânus e setenta e duas horas para o órgão genital feminino.

E, mesmo quando a perícia é feita dentro o prazo, na maioria dos casos de violência sexual, ocorrem os laudos negativos para ferimentos íntimos, e, mesmo assim, tal resultado não exclui a tipificação de estupro.

No processo espanhol, os médicos que atenderam a vítima, inclusive, afirmaram que em 70 % dos casos de estupro não há vestígios do crime.

A tese de embriaguez, que poderia levar à redução da pena em razão da legislação, também foi rechaçada.

Ad comparandum, no nosso país, quando ocorrer a embriaguez seja voluntária ou culposa não exclui a responsabilidade, na Espanha poderá ocorrer a isenção de pena, conforme, o artigo 20, 2ª do CPE, ou ainda, a atenuação prevista no artigo 21 CPE.

São cientificamente reconhecidas três fases da embriaguez, a saber:

1.ª fase: Eufórica: as funções intelectuais mostram-se excitadas e o indivíduo particularmente eufórico. A vontade e a autocrítica afiguram-se rebaixadas. A capacidade de julgamento se compromete. Há certo grau de erotismo. O ébrio fala acima do normal, apresenta desinibição e comporta-se de forma cômica e indecorosa. É conhecida como 'fase do macaco'.

2.ª fase: Agitada: caracteriza-se por perturbações psicossensoriais profundas. Alteram-se as funções intelectuais, o juízo crítico, a atenção e a memória. Os propósitos são desordenados ou absurdos. Há abolição da crítica. Os delitos normalmente são praticados com agressões ou contra a liberdade sexual, o que não impede crimes de outras espécies. Há perda do equilíbrio e a pessoa marcha de forma desordenada, ou se desequilibra. Ocorrem perturbações visuais. O sujeito fica agitado e agressivo, razão pela qual é chamada de 'fase do leão'.

Nessas duas fases (eufórica e agitada), é possível a prática de crimes comissivos e omissivos.

3.ª fase: Comatosa ('do coma'): inicialmente há sono e o coma se instala progressivamente. Daí ser chamada de 'fase do porco'. O estado comatoso pode até se tornar irreversível, com a morte do ébrio, o que pode ser facilitado com a exposição ao frio.

Nessa terceira fase (comatosa) o ébrio somente pode praticar crimes omissivos, próprios ou impróprios (comissivos por omissão). (In:  MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal. 8. ed. 5.ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2000.)

Embora a exclusão da pena seja mais rara, aplicada pelos Tribunais a casos muito específicos como os crimes omissivos próprios, há julgados da Comunidade Autônoma da Catalunha reconhecendo a atenuação da pena, pela redução da capacidade de entendimento e determinação.

Tipifica o CP brasileiro[5], mais precisamente no art. 65, III, “b”, que a pena deve ser atenuada quando o agente, arrependido, espontaneamente (sem interferência externa), procurar evitar ou minorar as consequências do crime, ou, antes do julgamento, repara integralmente o dano.

Tratando-se de atenuante de pena, o quantum da redução tem sido ordinariamente fixado em 1/6 pela nossa jurisprudência. Também de acordo com as reiteradas decisões de nossos tribunais, a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal (Súmula 231 do STJ)[6].

Foi rechaçada a atenuante da embriaguez[7], a presença de uma única atenuante levaria à fixação da pena entre quatro e oito anos (art. 66, 1º, CPE) e a opção por uma pena muito próxima ao mínimo gerou grande indignação.

Muitos meios de comunicação questionam o fato de que por ter influência, poder econômico e condições de reparar o dano Daniel Alves recebeu uma pena menor. São inúmeras as manifestações.

As partes podem apelar da sentença, no prazo de dez dias, para o Tribunal Superior de Justiça da Catalunha, equivalente ao Tribunal de Justiça no Brasil.

Ao contrário do nosso sistema, não há vários regimes de pena, mas apenas a possibilidade de liberdade condicional, ante o cumprimento de ¾ da pena, o que equivale a 75% da prisão (art. 90).

 Seria possível, após o trânsito em julgado, a concessão de permissões de saída por motivos específicos, o que não deve acontecer ante o receio de que Daniel Alves volte ao Brasil e não possa ser extraditado.

In litteris:  Sólo se entenderá que hay consentimiento cuando se haya manifestado libremente mediante actos que, en atención a las circunstancias del caso, expresen de manera clara la voluntad de la person”.

Os índices de laudos positivos são maiores quando há a apreensão de roupas e objetos relacionados ao estupro, como aconteceu no caso em julgamento, já que o vestígio da vítima foi apreendido.

Nesse sentido, estudo realizado em Coimbra e referido por Sara Joana Jorge Faria: “A grande percentagem de vestígios com significado foi recolhida não do corpo, mas sim das roupas pessoais ou de outros objetos pertencentes à cena do crime” (In: FARIA, Sara Joana Jorge. Abuso sexual de menores: achados clínicos e implicações médico-legais).

 “Son circunstancias atenuantes[8]: 5.ª La de haber procedido el culpable a reparar el daño ocasionado a la víctima, o disminuir sus efectos, en cualquier momento del procedimiento y con anterioridad a la celebración del acto del juicio oral”.

 O Código Penal Espanhol prevê que uma atenuante[9] leva à redução da pena em sua metade inferior (art. Art 66, 2º).

Uma das razões de a sentença ser pequena foi que foi aplicada a primeira versão da lei "Solo Sí Es Sí", ou só o sim e sim, anterior à reforma que aumentou para seis anos o tempo mínimo de prisão em casos de agressão sexual em que haja violência ou intimidação.

Daniel Alves foi condenado por um estupro cometido em dezembro de 2022, justamente entre a aprovação da lei (setembro de 2022) e a reforma (abril de 2023).

No Brasil[10], prevê a Lei 13718/2018 que todos os crimes contra a liberdade sexual passarão a ser denunciados por ação penal pública incondicionada. Isso significa, na prática, que a ação contra crimes como estupro e assédio sexual não dependerão mais da vontade da vítima para ocorrer.

Até a implementação dessa lei, sancionada em 24/0/2018 pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministro Dias Toffoli, que exercia a presidência da República na data, a denúncia contra crimes desse tipo era realizada por meio de ação penal pública condicionada.

Esse entendimento passou a ser vigente no ordenamento jurídico brasileiro a partir de 2009[11], com a mudança proposta pela Lei de Crimes Sexuais.

Antes disso, a lei dispunha que ações de crimes contra a liberdade sexual só podiam ser feitas mediante queixa-crimes – quando a vítima entra com uma ação privada contra o agressor – por serem apenas contra os “costumes”.

A mudança garantida pela nova lei está sendo duramente criticada por advogados. Eles apontam que houve uma rapidez desnecessária em todo o processo legislativo somente com o intuito de agradar a opinião pública.

A ação penal deve ser incondicionada em todos os crimes que dizem respeito à liberdade sexual: “O ônus tem de sair do ombro da mulher e passar para o poder público, de competência exclusiva do Ministério Público.

Quando há violação à dignidade sexual, a questão passa a ser de ordem e segurança pública”, afirma. Silvia Chakian, também promotora de Justiça no MPSP, aponta que a Lei Maria da Penha segue raciocínio semelhante, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça (STJ)[12] decidiu, no ano passado, que a denúncia contra crimes de lesão corporal no âmbito doméstico também deveria ser feita mediante ação penal pública incondicionada.

No Código Penal italiano, por exemplo, os crimes contra a liberdade sexual (art. 519 a 526) são denunciados mediante ação penal pública condicionada à representação da vítima, assim como na Argentina (CP, art. 132).

Já em Portugal, os crimes sexuais, em regra, são perseguidos mediante queixa por ação privada do ofendido (CP, artigo 718.1), como também ocorre nos Estados Unidos, após construção jurisprudencial sobre o tema.

O Código Penal espanhol, por sua vez, afirma que os crimes de agressões sexuais (art. 178 a 180) e abusos sexuais (art. 183 a 183 ter) são perseguidos mediante denúncia da pessoa ofendida ou representação do Ministério Público. Se a vítima for menor de idade, ou pessoa incapaz, bastará a denúncia do MP (CP, art. 191).

A lei espanhola prevê ainda pena de um a cinco anos à divulgação, por qualquer meio, de vídeo e foto de cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima, além da divulgação de cenas de estupro.

A pena será aumentada em até dois terços se o crime for praticado por pessoa que mantém ou tenha mantido relação íntima afetiva com a vítima.

Na Espanha, estamos diante do delito de agressão sexual, tratando-se de um conceito amplo no código de justiça espanhol. Em síntese, agressão sexual se refere a todos os atos "que atentem contra a liberdade sexual de outra pessoa sem o seu consentimento". A depender do nível de gravidade, as penas variam de um a quinze anos de prisão.

Já o cenário no Brasil, conforme apontam os fatos, Daniel Alves teria cometido o que está previsto no Código Penal, no art. 215-A, do CP, consistindo no crime de importunação sexual, pois, em tese, teria colocado a mão por baixo da roupa intima da mulher numa boate em Barcelona[13].

Com os elementos complementares envolvendo ameaças e violência em tese praticadas pelo investigado, a situação passou a englobar o delito de estupro.

No Brasil, esse delito encontra previsão legal no art. 213, do CP[14], caput, cuja pena é de dois a dez anos de reclusão, em se tratando de vítima não vulnerável.

Caso, em outra vertente, após os devidos trâmites, a vítima fosse considerada, no Brasil, vulnerável, o jogador responderia pelo delito do art. 217-A, §1º, do CP, cuja reprimenda seria de oito a quinze anos.

Lembremos que no Brasil não há o crime de agressão sexual. Já na Espanha tal delito é positivado no artigo 178 CPE.  Não temos agressão sexual, mas temos uma infração correlata, que é o estupro, previsto no artigo 213, do Código Penal: “Constranger alguém, mediante violência[15] ou grave ameaça[16], a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.” Trata-se de crime hediondo, conforme prevê o artigo 1º, V, da Lei 8072/90.

A imprensa transcreveu trecho da sentença, afirmando que ficou provado que: “o acusado agarrou bruscamente a denunciante, derrubou-a no chão e, impedindo-a de se mover, penetrou-a vaginalmente, apesar de a denunciante dizer que não, que queria ir embora”. E, entende que “com isso se configura a ausência de consentimento, com o uso de violência e com acesso carnal”.

É importante observar que, como Daniel Alves permaneceu preso durante todo o processo, o que durou cerca de um ano, deveríamos aplicar a detração, abatendo do total de pena imposta o tempo que ele ficou recolhido ao cárcere, conforme artigo 42, do CP.

Desta forma, em terras brasilis, ele teria que cumprir apenas três anos e 6 meses de reprimenda. Do ponto de vista processual é que em crimes desta natureza contra a liberdade sexual que normalmente são praticados às ocultas, a palavra da vítima assume especial relevo como meio de prova, conforme reiteradamente decidido pelos tribunais brasileiros:

A jurisprudência pátria é assente no sentido de que, nos delitos contra a liberdade sexual, por frequentemente não deixarem vestígios, a palavra da vítima tem valor probante diferenciado. (AgRg no AREsp 2429619/SP).[17]

Conclui-se que a Espanha endureceu sua legislação penal para reprimir a violência sexual, impondo a obrigação de consentimento explícito, uma medida minoritária na Europa que o governo de esquerda de Pedro Sánchez defendeu após haver o estupro coletivo.

Em junho de 2019, o Supremo Tribunal espanhol corrigiu a sentença no caso La Manada e, considerou que houve estupro e, ainda majorou a penas dos acusados para quinze anos de prisão.

Sublinhe-se que o Brasil e a Espanha são signatários de convenções sobre Direitos Humanos que tratam especificamente da proteção dos direitos das mulheres contra a violência de gênero, a Convenção de Belém do Pará e o Pacto de São José da Costa Rica[18].

E, assim, por essa razão, recentemente a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou a Bolívia por estabelecer hierarquia entre os delitos contra a liberdade sexual e, ainda, por não considerar o consentimento como elemento principal do tipo de estupro.

A total relevância do consentimento protagoniza ser o eixo principal dos delitos contra a liberdade sexual e de se retirar as elementares como violência e grave ameaça do tipo de estupro. 

Na Espanha, por exemplo, a redação de que “apenas se entenderá que há consentimento quando este tiver sido manifestado livremente por meio de atos que, em face das circunstâncias do caso, expressem de maneira clara a vontade da pessoa” vem enfrentando duras críticas doutrinárias, especialmente sob o ponto de vista da presunção constitucional de inocência.

 Conforme nos ensinou Albrecht (2000), as leis penais não servem somente para fins instrumentais da efetiva persecução penal, mas devem fortalecer os valores e normas sociais. Atendem também aos interesses abstratos do próprio Estado.

O doutrinador espanhol Pérez Cepeda (2007) salienta que se vive na sociedade de risco uma autêntica "cultura preventiva", na qual a prevenção acompanha o risco tal como uma sombra, desde os âmbitos mais cotidianos até os de maior escala, cujo exemplo maior são as guerras preventivas. Este adiantamento da intervenção do Direito Penal ao estágio prévio à lesão do bem jurídico é um dos mais marcantes traços da nova doxa punitiva.

Desta forma, revitalizamos a noção de Direito Penal enquanto força conformadora de costumes, isto é, passa-se a ver no Direito Penal um mecanismo de orientação social de comportamentos.

Outro aspecto que admite certo paralelo com a realidade brasileiro e o contexto espanhol analisado por Quintero Olivares (2019) refere-se à revalorização do componente aflitivo da pena, rechaçado, durante maior parte do século XX, porque considerado anacrônico em um sistema penal alicerçado pelos ditames da Constituição Federal brasileira de 1988.

A pena deixa de levar em conta qualquer possibilidade de reabilitação/ressocialização do delinquente, o que conduz a uma revalorização do componente aflitivo da pena, ensejando “una serie de modificaciones sustanciales en el sistema de penas y su ejecución que, en buena parte, se inspira simplemente en el deseo de hacer más gravosas para el delincuente las consecuencias de la comisión de un delito” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007, p.  85), o que resta evidente a partir do aumento do tempo de prisão cominado para determinados crimes, do endurecimento do regime penitenciário, do estabelecimento de condições mais estritas para a progressão de regime, da criação de regimes disciplinares diferenciados de  cumprimento de pena, etc.

O enrijecimento do regime penitenciário – que será aprofundado no tópico subsequente –, destaca-se, no Brasil, a alteração promovida pela Lei nº 13.964/2019 no art. 75 do Código Penal, aumentando o limite máximo de pena privativa de liberdade que pode ser cumprida no país: na redação anterior do dispositivo o teto era de trinta anos; hoje, esse limite foi aumentado para quarenta anos.

Registra-se que diversas figuras típicas do Código Penal e da legislação penal extravagante foram incluídas, pelo Pacote Anticrime, ao rol dos crimes hediondos da Lei nº 8.072/1990, o que certamente impactará o sistema carcerário brasileiro que está reconhecidamente imerso em um “estado inconstitucional de coisas” (ADPF nº 347).

 Foram incluídos na referida lei: a) o crime de roubo quando circunstanciado pela restrição de liberdade da vítima (art. 157, § 2º, inciso V), assim como quando circunstanciado pelo emprego de arma de fogo (art. 157, § 2º-A, inciso I) ou pelo emprego de arma de fogo de uso proibido ou restrito (art. 157, § 2º-B); b) a extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima, ocorrência de lesão corporal ou morte (art.  158, § 3º); c) o furto qualificado pelo emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause  perigo comum (art. 155, § 4º-A); d) o crime de comércio ilegal de armas de fogo, previsto no art. 17 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; e) o crime de tráfico internacional de arma  de fogo, acessório ou munição, previsto no art. 18 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;  f) o crime de organização criminosa, quando direcionado à prática de crime hediondo ou  equiparado.

Durante a maior parte do século XX parecia produzir-se uma mudança fundamental no sistema de penas, contra o encarceramento e em favor das penalidades monetárias e outras formas de penas supervisionadas pela comunidade.

Busca-se legitimar um modelo de política criminal que “naturaliza” a existência de cidadãos de primeira, segunda e, não raro, terceira classe – a exemplo do que se tem observado em relação à implementação do Direito Penal como coadjuvante das políticas (xenofóbicas) de controle de fluxos migratórios por alguns países da União Europeia e à seletividade étnico-racial que marca indelevelmente o sistema penal brasileiro desde os primórdios de sua história.

Salientado por Quintero Olivares (2019), as tendências que têm sido observadas como características do fenômeno contemporâneo do expansionismo penal, tanto na Espanha quanto no Brasil, se encontram em posição diametralmente oposta às diretrizes punitivas que são próprias do exercício do jus puniendi em um Estado Democrático de Direito. 

Enfim, desse triste episódio, assistimos boquiabertos o fim da carreira do excelente e promissor atleta brasileiro no exterior e, as consequências danosas para toda sua família.

Referências

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Notas:

[1] Artigo 179. Quando a agressão sexual consistir em conjunção carnal por via vaginal, anal ou oral, ou introdução de membros do corpo ou objetos por uma das duas primeiras vias, o autor será punido como culpado de estupro com uma pena de prisão de quatro a doze anos."

[2] O estupro coletivo como categoria jurídica fora incluído no arsenal do direito penal brasileiro pela Lei 13.716, de 2018. E, na Espanha houve um estupro coletivo conhecido como o Caso da La Manada, de intensa repercussão e que impulsionou a apresentação do Projeto de Lei Orgânica de Garantia Integral da Liberdade Sexual, em 2021, para eliminar a distinção entre abuso e agressão sexual e colocar o foco no consentimento e não no modo de execução.

[3] Conforme o protocolo, em casos de estupro e agressão sexual, uma das principais evidências são amostras de DNA. Por isso, os funcionários orientam as vítimas a não se lavar, tomar banho ou trocar de roupa. Quem sofreu a agressão, caso queira, é encaminhado ao hospital.

[4] A Lei Mariana Ferrer é reação legislativa à divulgação de uma audiência de instrução e julgamento de uma suposta violência sexual que foi amplamente divulgada na mídia, em que a comunicante foi seriamente interpelada e até mesmo humilhada pelos atores da persecução penal. Por fim, vale alertar que embora a lei nada mencione, é evidente que as regras de conduta processual nela veiculadas são aplicáveis a toda a persecução penal, devendo a autoridade policial zelar pela dignidade da vítima e das testemunhas desde a fase investigatória. A despeito de a lei não ter previsto as referidas regras de conduta para a fase pré processual, até por uma questão de respeito à dignidade, deve a autoridade policial, desde o início, adotar as cautelas previstas para a fase processual, obviamente, com as devidas adequações.

[5] Historicamente, desde a legislação hebraica conforme Magalhães Noronha (1978), citado por Scarance e Duek aplicava-se a pena de morte ao homem que violasse mulher desposada, isto é, prometida em casamento. E, se tratando de mulher virgem, porém, não desposada, deve ele pagar cinquenta ciclos de prata ao pai da vítima e casar com ela, não a podendo despedir em todos os seus dias, porquanto a humilhou. Quanto ao conceito de estupro, segundo Nelson Hungria citado por Scarance e Duek, estupro (vial, Notzucht, violenza carnale, violación) é a obtenção da posse sexual da mulher por meio de legislação penal".' Quanto ao conceito, na definição de Nelson Hungria, "estupro é a obtenção da posse sexual da mulher por meio de violência física ou moral, ou, para nos afeiçoarmos ao texto legal, o constrangimento de mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça".'  violência física ou moral, ou, para nos afeiçoarmos ao texto legal, o constrangimento de mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça". Por conjunção carnal, em fase do Código Penal em vigor, entende-se a união sexual, a cópula vagínica, ou seja, a cópula secundum naturam, pois só a mulher pode se sujeito passivo deste crime. O Projeto Alcântara inicialmente imitava o modelo.  Por conjunção carnal, em fase do Código em vigor, entende-se a união sexual, a cópula vagínica, ou seja, a cópula secundum naturam, pois só a mulher pode ser sujeito passivo deste crime. O Projeto Alcântara inicialmente imitava o modelo italiano ("ter conjunção carnal com alguém") admitindo outras formas de coito na configuração do estrupo. Mas, como concluiu Nelson Hungria, "aderindo ao ponto de vista da Comissão Revisora, explicitamente declarada que só a mulher podia ser sujeito passivo de tal crime (art. 268). Assim, o próprio elemento histórico está a indicar a justeza da interpretação que acima se defende. Rigorosa a posição de Nelson Hungria que cogita em "inequívoca resistência"; em “uma vontade decidida e militantemente contrária) uma oposição que só a 'violência física ou moral consiga vencer"; é "preciso que a vítima não adira, libenter, em momento algum, à lascívia do sujeito ativo.),

[6] SÚMULA N. 231: A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal. Precedente (5ª T, 07.10.1997 – DJ 10.11.1997) Terceira Seção, em 22.09.1999 DJ 15.10.1999, p. 76.

[7] A embriaguez alcoólica, na definição de Eduardo Rodrigues, é a 'perturbação psicológica mais ou menos intensa, provocada pela ingestão de álcool, que leva a total ou parcial incapacidade de entendimento e volição'.47 O Código Penal fez menção, ainda, a outra substância de efeitos análogos. Nesta última parte, podemos visualizar as substâncias tóxicas e entorpecentes, tais como a cocaína, o ópio, etc. Da mesma forma que o caput do art. 26, o § 1º do inciso II do art. 28 do Código Penal brasileiro afirma ser isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

[8] No direito penal espanhol há três causas de responsabilidade penal que podem ser mitigadas no âmbito da imputabilidade; a alienação e o transtorno mental transitório, a menoridade penal e, a alteração na percepção. Boa parte da doutrina e jurisprudência considera necessária base patológica no indivíduo para detectar a eximente de transtorno mental transitório. No Brasil, o STF excluiu do transtorno mental transitório os estados passionais e a embriaguez.

[9] No Direito Brasileiro, o termo atenuante é um conceito utilizado enquanto redutor da pena por um crime cometido, previsto no Código Penal (CP). As circunstâncias atenuantes e causas da diminuição da pena foram estabelecidas pelo artigo 65 do Código Penal Brasileiro, e são as seguintes: O réu for menor de 21 anos quando cometeu o crime ou delito. Conhecido como atenuante da menoridade. O réu ser maior de 70 anos na data da sentença. Alegar desconhecimento da lei. Ter cometido o crime por motivação de valor social ou moral. Ter tentado espontaneamente evitar ou diminuir as consequências do crime logo após ter cometido. Ou ter reparado o dano antes do julgamento. Agiu sob coação ou em cumprimento de ordens de uma autoridade superior. Atenuante da Confissão: Se confessou de forma espontânea a autoria, perante autoridades. O crime foi cometido influenciado por uma multidão em tumulto, desde que não tenha causado o mesmo. E ainda existem as circunstâncias atenuantes genéricas ou atenuantes inominadas, das quais falam o artigo 66 do Código Penal. São situações não definidas em lei, mas que constituem casos excepcionais a serem considerados pelo juiz ao determinar a sentença, como, por exemplo, o arrependimento do réu.

[10]   Os §§ 1º e 2º, do art. 213, do Código Penal, elencam as formas qualificadas do estupro, alterando o mínimo e o máximo das penas previstas em abstrato. São três as qualificadoras (circunstâncias específicas), a saber: (a) Estupro qualificado pela lesão corporal de natureza grave; Estupro qualificado pela idade da vítima (§ 1º, última parte); Estupro qualificado pela morte (§ 2º).

[11] Com o advento da Lei 12.015/2009, por equívoco do legislador, passaram a existir dois Capítulos com mesma denominação “Disposições Gerais” no Título dos crimes contra a dignidade sexual. São os Capítulos IV e VII que contém causas de aumento de pena aplicáveis ao estupro e aos demais crimes de natureza sexual, respectivamente nos arts. 226 e 234-A, do Código Penal. Antes da Lei 12.015/2009, o crime de estupro era bipróprio, exigindo condição especial dos sujeitos ativo e passivo. Assim, somente o homem poderia ser sujeito ativo e somente a mulher como sujeito passivo. Com essa lei, o atual crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal, representa a junção dos antigos delitos de estupro (art. 213) e atentado violento ao pudor (art. 214). Assim, o crime de estupro passou a ser bicomum, ou seja, qualquer pessoa pode figurar tanto como sujeito ativo quanto como sujeito passivo.

[12] Firmou-se jurisprudencialmente que os menores de quatorze anos não têm capacidade de consentir para o ato sexual e, não possuem assim, liberdade sexual. O que, infelizmente, não impediu, contudo, haver diversos tribunais brasileiros que desclassificassem o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A CP) para o de importunação sexual (artigo 215-A CP), levando a que o STJ julgando recursos repetitivos e representativos de controvérsia, fixasse a tese, in litteris: "Presente o dolo específico de satisfazer à lascívia própria ou de terceiros, a prática de ato libidinoso com menor de quatorze anos configura o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para delito de importunação sexual (artigo 215-A CP).

[13] As feministas, a partir da década de 1980, se esforçaram, primeiro, no reconhecimento do estupro conjugal, argumentando com a exclusão da “necessidade do uso da força na definição do crime e da demonstração da resistência como ausência de consentimento”. Depois, buscando proteger as mulheres da revitimização, quando denunciam um estupro. Nos anos 1990 e 2000, o debate passou a se centrar no estupro entre conhecidos, situação em que a existência ou não do consentimento ganha especial relevo.

[14] O núcleo do tipo penal está representado pelo verbo constranger (compelir, coagir, obrigar, forçar), tendo como objeto material qualquer pessoa (alguém), e as seguintes finalidades: ter conjunção carnal; praticar outro ato libidinoso; permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Na prática de atos libidinosos a vítima pode desempenhar, simultaneamente, papéis ativo e passivo. É o que ocorre, por exemplo, na conjunção entre a felação e o cunnilingus, onde a mulher simultaneamente realiza sexo oral no homem e dele suporta em seu corpo ato de igual natureza. Não há estupro, em razão da ausência de tipicidade, o fato de o agente constranger alguém a presenciar ou assistir a uma conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Nesse caso, se a vítima tem idade igual ou superior a 14 anos, o crime é de constrangimento ilegal (CP, art. 146). Tratando-se de vítima menor de 14 anos, o crime poderá ser o de satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (CP, art. 218-A).

[15] Violência é o emprego de força física (vis absoluta) capaz de dificultar, paralisar ou impossibilitar a real ou suposta capacidade de resistência da vítima, resultando em vias de fato ou lesão corporal. Pode ser direta ou imediata quando empregada contra o titular do bem jurídico tutelado, ou indireta ou mediata quando empregada a terceiros ligados à vítima por relações de amizade e parentesco.

[16] Também denominada de violência moral (vis compulsiva) é a promessa da prática de um mal a alguém, de acordo com a vontade do agente, consistente na ação ou omissão, capaz de perturbar a liberdade psíquica e a tranquilidade da vítima. O mal grave (material, moral, econômico, profissional, familiar etc.) prometido na ameaça deve ser certo (não vago), verossímil (passível de ocorrer), iminente (que está para ocorrer e não previsto para um futuro longínquo) e inevitável (que o ameaçado não possa evitar). A ameaça também pode ser direta ou imediata quando dirigida contra a vítima, titular do bem jurídico tutelado, ou indireta ou mediata quando dirigida a terceiros ligados à vítima por relações de amizade e parentesco.

[17] Aliás, muitas outras mudanças trataram apenas de adequar a redação legislativa aos tempos contemporâneos, como foi através da retirada do termo "mulher honesta" do Código Penal brasileiro, termo que é muito preconceituoso. A mudança de costumes, de moral e pensamento da sociedade atual não pode mais tirar à mercê de um Código que foi elaborado durante a ditadura de Getúlio Vargas, do Estado Novo, de 1937 a 1945.

[18] Até mesmo os fiéis seguidores do Direito Penal mínimo que é contra as punições excessivas, em se tratando de crimes contra a mulher, não cabe abrandar o sistema penal. Lembremos que a Súmula 593 do STJ prevê a presunção de violência contra os costumes cometidos contra menores de quatorze anos, prevista na antiga redação do artigo 224, alínea a, do Código Penal brasileiro, possui caráter absoluto e, constitui critério objetivo para se verificar a ausência de condições de anuir com o ato sexual. Ainda há a previsão do artigo 217 do ECA que prevê o tipo de estupro contra vulnerável, descrito no artigo 217-A, criado pela Lei 12.015/2009.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Direito Penal Estupro Agressão Sexual Julgamento Direito Processual Penal Crimes Dignidade Sexual

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