Condenação de Daniel Alves
O julgamento do jogador brasileiro Daniel Alves chegou ao fim em audiência realizada em 22.2.2024 pelo Tribunal Superior de Justiça da Catalunha e, sob a responsabilidade da juíza Isabel Delgado, quando foi considerado culpado e condenado a cumprir uma pena de quatro anos e seis meses de prisão na Espanha. O crime foi de agressão sexual que é equivalente ao estupro na legislação brasileira. E, o brasileiro ainda deverá cumprir pena de cinco anos de liberdade supervisionada após o integral cumprimento do tempo de encarceramento previsto em sentença. Cabe recurso. Também fora condenado a pagar indenização à vítima por danos físicos e morais decorrentes do crime cometido e, arcar com os custos processuais. O referido julgamento nos faz refletir nas diferentes legislações (brasileira e espanhola) e o endurecimento da repressão espanhola em razão de caso famoso de estupro coletivo. O caso atraiu muita atenção não apenas por ser o réu famoso, mas porque agressão sexual é tema político dominante na Espanha
O crime de violação sexual é
positivado no artigo 179 do Código Penal espanhol[1] que prevê a pena de quatro
a doze anos, e a recente condenação do jogador de futebol brasileiro Daniel Alves
a quatro anos e seis meses de prisão e a multa de oito mil euros, a título de
reparação à vítima estabeleceu-se cento e cinquenta mil euros e também outras
penas acessórias.
O referido julgamento é o mais
relevante depois da publicação da Lei Solo sí es sí. E, desde 2022 com a
Lei de Liberdade Sexual na Espanha (só o sim é sim), em resposta ao estupro
coletivo conhecido como La Manada em que cinco homens violentaram uma
jovem de dezoito anos com sexo oral, anal e vaginal e, filmaram todo o ato, mas
não foram condenados por agressão sexual, diante da ausência de prova de
violência física ou intimidade.
A “Só sim é sim” aboliu a
diferença entre "abuso" e "agressão sexual" na legislação
espanhola. Antes, considerava-se crime de "abuso sexual" a prática
que atentasse contra "liberdade sexual de uma pessoa, sem o consentimento
da vítima e sem uso de violência, força ou intimidação".
Já a agressão sexual ou
estupro era considerado o acesso ao corpo de outra pessoa para "atividade
explicitamente sexual, sem consentimento e com violência". Sua forma mais
grave é com penetração, mas não é a única.
Um caso de estupro coletivo[2] que ocorreu em 2016 e
ficou famoso na Espanha pode ter desdobramentos com essa nova lei. O episódio
em que cinco homens foram condenados por terem estuprado uma vítima de dezoito
anos durante o festival de San Fermín, em Pamplona. O grupo ficou
conhecido por “La Manada”.
A reforma do Código Penal
espanhol levou o debate público naquele país a altos níveis de intensidade
neste ano, sobretudo em relação às mudanças em tipificações nos títulos de
crimes sexuais e de crimes econômicos.
"Hoje a Espanha tem o
crime de agressão sexual, que é toda relação sem consentimento. Existe uma
versão de menor gravidade, que é o abuso sexual, no qual há uma relação de
intimidação, mas sem uso da força. E, voltou-se a uma situação anterior em
relação ao estupro que doravante não é um tipo penal autônomo, mas uma forma
mais grave do tipo 'agressão sexual'. Então, antes havia três crimes e agora há
dois, com o estupro como forma agravada da agressão sexual".
Ressalte-se que a defesa de
Daniel Alves apresentou duas teses, a saber: a relação sexual fora consentida
e, o réu estava embriagado. Por isso, pleiteava-se sua absolvição ou até a
redução da pena.
A acusação na Espanha havia
solicitado pena de nove anos e, a advogada da vítima, uma pena de doze anos,
além de liberdade vigiada e reparação de dano.
Rechaçou-se a alegação de
relação sexual consentido não apenas pelo depoimento da vítima como também pela
apresentação do vídeo da casa noturna e ainda depoimentos de testemunhas.
E, tais elementos probatórios
foram coletados logo após o fato, devido ao Protocolo No Callem[3]
e levados à juíza de instrução responsável pela investigação e a decretação da
prisão preventiva. É a fase chamada de Juízo Oral, onde a audiência ocorre
perante três julgadores da vigésima-primeira Audiência Provincial e foram
também ouvidas dezenas de testemunhas e, peritos.
Cumpre lembrar, a propósito,
da Lei Mariana Ferrer[4], a Lei 14.242/21 que prevê
que na audiência de instrução e julgamento, especialmente, nas que apurem
crimes contra a dignidade sexual ordena que todas as partes bem como os demais
sujeitos processuais presentes no ato, zelar pela integridade física e
psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e
administrativa.
Cabendo ao julgador ainda
garantir o cumprimento do mandamento, sendo vedadas: I– a manifestação sobre
circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; II
– a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a
dignidade da vítima ou de testemunhas.
Percebe-se, portanto que na
Espanha que mais do que mero não é não, há o "só sim é sim" e
qualquer ato sexual sem expresso consentimento já é considerado violência. Vide
o artigo 178 CPE
Restou comprovado o estupro
apesar de haver laudo médico negativo, o que representou uma clara mensagem de
que o estupro não é prova de inocência.
A perícia negativa em crimes
sexuais é a regra e não a exceção. E, como os vestígios físicos tendem a
desaparecer celeremente, em até vinte e quatro horas para boca, pela e ânus e
setenta e duas horas para o órgão genital feminino.
E, mesmo quando a perícia é
feita dentro o prazo, na maioria dos casos de violência sexual, ocorrem os
laudos negativos para ferimentos íntimos, e, mesmo assim, tal resultado não
exclui a tipificação de estupro.
No processo espanhol, os
médicos que atenderam a vítima, inclusive, afirmaram que em 70 % dos casos de
estupro não há vestígios do crime.
A tese de embriaguez, que
poderia levar à redução da pena em razão da legislação, também foi rechaçada.
Ad comparandum, no
nosso país, quando ocorrer a embriaguez seja voluntária ou culposa não exclui a
responsabilidade, na Espanha poderá ocorrer a isenção de pena, conforme, o
artigo 20, 2ª do CPE, ou ainda, a atenuação prevista no artigo 21 CPE.
São cientificamente reconhecidas
três fases da embriaguez, a saber:
1.ª fase: Eufórica: as funções
intelectuais mostram-se excitadas e o indivíduo particularmente eufórico. A
vontade e a autocrítica afiguram-se rebaixadas. A capacidade de julgamento se
compromete. Há certo grau de erotismo. O ébrio fala acima do normal, apresenta
desinibição e comporta-se de forma cômica e indecorosa. É conhecida como 'fase
do macaco'.
2.ª fase: Agitada:
caracteriza-se por perturbações psicossensoriais profundas. Alteram-se as
funções intelectuais, o juízo crítico, a atenção e a memória. Os propósitos são
desordenados ou absurdos. Há abolição da crítica. Os delitos normalmente são
praticados com agressões ou contra a liberdade sexual, o que não impede crimes
de outras espécies. Há perda do equilíbrio e a pessoa marcha de forma
desordenada, ou se desequilibra. Ocorrem perturbações visuais. O sujeito fica
agitado e agressivo, razão pela qual é chamada de 'fase do leão'.
Nessas duas fases (eufórica e
agitada), é possível a prática de crimes comissivos e omissivos.
3.ª fase: Comatosa ('do
coma'): inicialmente há sono e o coma se instala progressivamente. Daí ser
chamada de 'fase do porco'. O estado comatoso pode até se tornar irreversível,
com a morte do ébrio, o que pode ser facilitado com a exposição ao frio.
Nessa terceira fase (comatosa)
o ébrio somente pode praticar crimes omissivos, próprios ou impróprios
(comissivos por omissão). (In:
MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal. 8. ed. 5.ª
tiragem. São Paulo: Malheiros, 2000.)
Embora a exclusão da pena seja
mais rara, aplicada pelos Tribunais a casos muito específicos como os crimes
omissivos próprios, há julgados da Comunidade Autônoma da Catalunha
reconhecendo a atenuação da pena, pela redução da capacidade de entendimento e
determinação.
Tipifica o CP brasileiro[5], mais precisamente no art.
65, III, “b”, que a pena deve ser atenuada quando o agente, arrependido,
espontaneamente (sem interferência externa), procurar evitar ou minorar as
consequências do crime, ou, antes do julgamento, repara integralmente o dano.
Tratando-se de atenuante de
pena, o quantum da redução tem sido ordinariamente fixado em 1/6 pela nossa
jurisprudência. Também de acordo com as reiteradas decisões de nossos
tribunais, a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução
da pena abaixo do mínimo legal (Súmula 231 do STJ)[6].
Foi rechaçada a atenuante da
embriaguez[7], a presença de uma única
atenuante levaria à fixação da pena entre quatro e oito anos (art. 66, 1º, CPE)
e a opção por uma pena muito próxima ao mínimo gerou grande indignação.
Muitos meios de comunicação
questionam o fato de que por ter influência, poder econômico e condições de
reparar o dano Daniel Alves recebeu uma pena menor. São inúmeras as
manifestações.
As partes podem apelar da sentença,
no prazo de dez dias, para o Tribunal Superior de Justiça da Catalunha,
equivalente ao Tribunal de Justiça no Brasil.
Ao contrário do nosso sistema,
não há vários regimes de pena, mas apenas a possibilidade de liberdade
condicional, ante o cumprimento de ¾ da pena, o que equivale a 75% da prisão
(art. 90).
Seria possível, após o trânsito em julgado, a
concessão de permissões de saída por motivos específicos, o que não deve
acontecer ante o receio de que Daniel Alves volte ao Brasil e não possa ser extraditado.
In litteris: Sólo se entenderá que hay consentimiento
cuando se haya manifestado libremente mediante actos que, en atención a las
circunstancias del caso, expresen de manera clara la voluntad de la person”.
Os índices de laudos positivos
são maiores quando há a apreensão de roupas e objetos relacionados ao estupro,
como aconteceu no caso em julgamento, já que o vestígio da vítima foi
apreendido.
Nesse sentido, estudo
realizado em Coimbra e referido por Sara Joana Jorge Faria: “A grande
percentagem de vestígios com significado foi recolhida não do corpo, mas sim
das roupas pessoais ou de outros objetos pertencentes à cena do crime” (In:
FARIA, Sara Joana Jorge. Abuso sexual de menores: achados clínicos e implicações
médico-legais).
“Son circunstancias atenuantes[8]:
5.ª La de haber procedido el culpable a reparar el daño ocasionado a la
víctima, o disminuir sus efectos, en cualquier momento del procedimiento y con
anterioridad a la celebración del acto del juicio oral”.
O Código Penal Espanhol prevê que uma
atenuante[9] leva à redução da pena em
sua metade inferior (art. Art 66, 2º).
Uma das razões de a sentença
ser pequena foi que foi aplicada a primeira versão da lei "Solo Sí Es
Sí", ou só o sim e sim, anterior à reforma que aumentou para seis anos
o tempo mínimo de prisão em casos de agressão sexual em que haja violência ou
intimidação.
Daniel Alves foi condenado por
um estupro cometido em dezembro de 2022, justamente entre a aprovação da lei
(setembro de 2022) e a reforma (abril de 2023).
No Brasil[10], prevê a Lei 13718/2018
que todos os crimes contra a liberdade sexual passarão a ser denunciados por
ação penal pública incondicionada. Isso significa, na prática, que a ação
contra crimes como estupro e assédio sexual não dependerão mais da vontade da
vítima para ocorrer.
Até a implementação dessa lei,
sancionada em 24/0/2018 pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o
Ministro Dias Toffoli, que exercia a presidência da República na data, a
denúncia contra crimes desse tipo era realizada por meio de ação penal pública
condicionada.
Esse entendimento passou a ser
vigente no ordenamento jurídico brasileiro a partir de 2009[11], com a mudança proposta
pela Lei de Crimes Sexuais.
Antes disso, a lei dispunha
que ações de crimes contra a liberdade sexual só podiam ser feitas mediante
queixa-crimes – quando a vítima entra com uma ação privada contra o agressor –
por serem apenas contra os “costumes”.
A mudança garantida pela nova
lei está sendo duramente criticada por advogados. Eles apontam que houve uma
rapidez desnecessária em todo o processo legislativo somente com o intuito de
agradar a opinião pública.
A ação penal deve ser
incondicionada em todos os crimes que dizem respeito à liberdade sexual: “O
ônus tem de sair do ombro da mulher e passar para o poder público, de
competência exclusiva do Ministério Público.
Quando há violação à dignidade
sexual, a questão passa a ser de ordem e segurança pública”, afirma. Silvia
Chakian, também promotora de Justiça no MPSP, aponta que a Lei Maria da Penha
segue raciocínio semelhante, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça (STJ)[12] decidiu, no ano passado,
que a denúncia contra crimes de lesão corporal no âmbito doméstico também
deveria ser feita mediante ação penal pública incondicionada.
No Código Penal italiano, por
exemplo, os crimes contra a liberdade sexual (art. 519 a 526) são denunciados
mediante ação penal pública condicionada à representação da vítima, assim como
na Argentina (CP, art. 132).
Já em Portugal, os crimes
sexuais, em regra, são perseguidos mediante queixa por ação privada do ofendido
(CP, artigo 718.1), como também ocorre nos Estados Unidos, após construção
jurisprudencial sobre o tema.
O Código Penal espanhol, por
sua vez, afirma que os crimes de agressões sexuais (art. 178 a 180) e abusos
sexuais (art. 183 a 183 ter) são perseguidos mediante denúncia da pessoa
ofendida ou representação do Ministério Público. Se a vítima for menor de
idade, ou pessoa incapaz, bastará a denúncia do MP (CP, art. 191).
A lei espanhola prevê ainda
pena de um a cinco anos à divulgação, por qualquer meio, de vídeo e foto de
cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima, além da
divulgação de cenas de estupro.
A pena será aumentada em até
dois terços se o crime for praticado por pessoa que mantém ou tenha mantido
relação íntima afetiva com a vítima.
Na Espanha, estamos diante do
delito de agressão sexual, tratando-se de um conceito amplo no código de
justiça espanhol. Em síntese, agressão sexual se refere a todos os atos
"que atentem contra a liberdade sexual de outra pessoa sem o seu
consentimento". A depender do nível de gravidade, as penas variam de um a quinze
anos de prisão.
Já o cenário no Brasil,
conforme apontam os fatos, Daniel Alves teria cometido o que está previsto no
Código Penal, no art. 215-A, do CP, consistindo no crime de importunação
sexual, pois, em tese, teria colocado a mão por baixo da roupa intima da mulher
numa boate em Barcelona[13].
Com os elementos
complementares envolvendo ameaças e violência em tese praticadas pelo
investigado, a situação passou a englobar o delito de estupro.
No Brasil, esse delito
encontra previsão legal no art. 213, do CP[14], caput, cuja pena
é de dois a dez anos de reclusão, em se tratando de vítima não vulnerável.
Caso, em outra vertente, após
os devidos trâmites, a vítima fosse considerada, no Brasil, vulnerável, o
jogador responderia pelo delito do art. 217-A, §1º, do CP, cuja reprimenda
seria de oito a quinze anos.
Lembremos que no Brasil não há
o crime de agressão sexual. Já na Espanha tal delito é positivado no artigo 178
CPE. Não temos agressão sexual, mas
temos uma infração correlata, que é o estupro, previsto no artigo 213, do
Código Penal: “Constranger alguém, mediante violência[15] ou grave ameaça[16], a ter conjunção carnal
ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena
reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.” Trata-se de crime hediondo, conforme
prevê o artigo 1º, V, da Lei 8072/90.
A imprensa transcreveu trecho
da sentença, afirmando que ficou provado que: “o acusado agarrou bruscamente a
denunciante, derrubou-a no chão e, impedindo-a de se mover, penetrou-a
vaginalmente, apesar de a denunciante dizer que não, que queria ir embora”. E,
entende que “com isso se configura a ausência de consentimento, com o uso de
violência e com acesso carnal”.
É importante observar que,
como Daniel Alves permaneceu preso durante todo o processo, o que durou cerca
de um ano, deveríamos aplicar a detração, abatendo do total de pena imposta o
tempo que ele ficou recolhido ao cárcere, conforme artigo 42, do CP.
Desta forma, em terras brasilis,
ele teria que cumprir apenas três anos e 6 meses de reprimenda. Do ponto de
vista processual é que em crimes desta natureza contra a liberdade sexual que
normalmente são praticados às ocultas, a palavra da vítima assume especial
relevo como meio de prova, conforme reiteradamente decidido pelos tribunais
brasileiros:
A jurisprudência pátria é
assente no sentido de que, nos delitos contra a liberdade sexual, por
frequentemente não deixarem vestígios, a palavra da vítima tem valor probante
diferenciado. (AgRg no AREsp 2429619/SP).[17]
Conclui-se que a Espanha
endureceu sua legislação penal para reprimir a violência sexual, impondo a obrigação
de consentimento explícito, uma medida minoritária na Europa que o governo de
esquerda de Pedro Sánchez defendeu após haver o estupro coletivo.
Em junho de 2019, o Supremo
Tribunal espanhol corrigiu a sentença no caso La Manada e, considerou
que houve estupro e, ainda majorou a penas dos acusados para quinze anos de
prisão.
Sublinhe-se que o Brasil e a
Espanha são signatários de convenções sobre Direitos Humanos que tratam
especificamente da proteção dos direitos das mulheres contra a violência de
gênero, a Convenção de Belém do Pará e o Pacto de São José da Costa Rica[18].
E, assim, por essa razão,
recentemente a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou a Bolívia por
estabelecer hierarquia entre os delitos contra a liberdade sexual e, ainda, por
não considerar o consentimento como elemento principal do tipo de estupro.
A total relevância do
consentimento protagoniza ser o eixo principal dos delitos contra a liberdade
sexual e de se retirar as elementares como violência e grave ameaça do tipo de
estupro.
Na Espanha, por exemplo, a
redação de que “apenas se entenderá que há consentimento quando este tiver sido
manifestado livremente por meio de atos que, em face das circunstâncias do
caso, expressem de maneira clara a vontade da pessoa” vem enfrentando duras
críticas doutrinárias, especialmente sob o ponto de vista da presunção
constitucional de inocência.
Conforme nos ensinou Albrecht (2000), as leis
penais não servem somente para fins instrumentais da efetiva persecução penal,
mas devem fortalecer os valores e normas sociais. Atendem também aos interesses
abstratos do próprio Estado.
O doutrinador espanhol Pérez
Cepeda (2007) salienta que se vive na sociedade de risco uma autêntica
"cultura preventiva", na qual a prevenção acompanha o risco tal como
uma sombra, desde os âmbitos mais cotidianos até os de maior escala, cujo
exemplo maior são as guerras preventivas. Este adiantamento da intervenção do
Direito Penal ao estágio prévio à lesão do bem jurídico é um dos mais marcantes
traços da nova doxa punitiva.
Desta forma, revitalizamos a
noção de Direito Penal enquanto força conformadora de costumes, isto é,
passa-se a ver no Direito Penal um mecanismo de orientação social de
comportamentos.
Outro aspecto que admite certo
paralelo com a realidade brasileiro e o contexto espanhol analisado por
Quintero Olivares (2019) refere-se à revalorização do componente aflitivo da
pena, rechaçado, durante maior parte do século XX, porque considerado
anacrônico em um sistema penal alicerçado pelos ditames da Constituição Federal
brasileira de 1988.
A pena deixa de levar em conta
qualquer possibilidade de reabilitação/ressocialização do delinquente, o que
conduz a uma revalorização do componente aflitivo da pena, ensejando “una
serie de modificaciones sustanciales en el sistema de penas y su ejecución que,
en buena parte, se inspira simplemente en el deseo de hacer más gravosas para
el delincuente las consecuencias de la comisión de un delito” (DÍEZ
RIPOLLÉS, 2007, p. 85), o que resta evidente
a partir do aumento do tempo de prisão cominado para determinados crimes, do
endurecimento do regime penitenciário, do estabelecimento de condições mais estritas
para a progressão de regime, da criação de regimes disciplinares diferenciados
de cumprimento de pena, etc.
O enrijecimento do regime
penitenciário – que será aprofundado no tópico subsequente –, destaca-se, no
Brasil, a alteração promovida pela Lei nº 13.964/2019 no art. 75 do Código
Penal, aumentando o limite máximo de pena privativa de liberdade que pode ser
cumprida no país: na redação anterior do dispositivo o teto era de trinta anos;
hoje, esse limite foi aumentado para quarenta anos.
Registra-se que diversas
figuras típicas do Código Penal e da legislação penal extravagante foram
incluídas, pelo Pacote Anticrime, ao rol dos crimes hediondos da Lei nº
8.072/1990, o que certamente impactará o sistema carcerário brasileiro que está
reconhecidamente imerso em um “estado inconstitucional de coisas” (ADPF nº
347).
Foram incluídos na referida lei: a) o crime de
roubo quando circunstanciado pela restrição de liberdade da vítima (art. 157, §
2º, inciso V), assim como quando circunstanciado pelo emprego de arma de fogo
(art. 157, § 2º-A, inciso I) ou pelo emprego de arma de fogo de uso proibido ou
restrito (art. 157, § 2º-B); b) a extorsão qualificada pela restrição da
liberdade da vítima, ocorrência de lesão corporal ou morte (art. 158, § 3º); c) o furto qualificado pelo
emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum (art. 155, § 4º-A); d) o crime de
comércio ilegal de armas de fogo, previsto no art. 17 da Lei nº 10.826, de 22
de dezembro de 2003; e) o crime de tráfico internacional de arma de fogo, acessório ou munição, previsto no
art. 18 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; f) o crime de organização criminosa, quando
direcionado à prática de crime hediondo ou equiparado.
Durante a maior parte do
século XX parecia produzir-se uma mudança fundamental no sistema de penas,
contra o encarceramento e em favor das penalidades monetárias e outras formas
de penas supervisionadas pela comunidade.
Busca-se legitimar um modelo
de política criminal que “naturaliza” a existência de cidadãos de primeira,
segunda e, não raro, terceira classe – a exemplo do que se tem observado em
relação à implementação do Direito Penal como coadjuvante das políticas
(xenofóbicas) de controle de fluxos migratórios por alguns países da União
Europeia e à seletividade étnico-racial que marca indelevelmente o sistema
penal brasileiro desde os primórdios de sua história.
Salientado por Quintero
Olivares (2019), as tendências que têm sido observadas como características do
fenômeno contemporâneo do expansionismo penal, tanto na Espanha quanto no
Brasil, se encontram em posição diametralmente oposta às diretrizes punitivas
que são próprias do exercício do jus puniendi em um Estado Democrático
de Direito.
Enfim, desse triste episódio, assistimos boquiabertos o fim da carreira do excelente e promissor atleta brasileiro no exterior e, as consequências danosas para toda sua família.
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Notas:
[1]
Artigo 179. Quando a agressão sexual consistir em conjunção carnal por via
vaginal, anal ou oral, ou introdução de membros do corpo ou objetos por uma das
duas primeiras vias, o autor será punido como culpado de estupro com uma pena
de prisão de quatro a doze anos."
[2]
O estupro coletivo como categoria jurídica fora incluído no arsenal do direito
penal brasileiro pela Lei 13.716, de 2018. E, na Espanha houve um estupro
coletivo conhecido como o Caso da La Manada, de intensa repercussão e que
impulsionou a apresentação do Projeto de Lei Orgânica de Garantia Integral da
Liberdade Sexual, em 2021, para eliminar a distinção entre abuso e agressão
sexual e colocar o foco no consentimento e não no modo de execução.
[3]
Conforme o protocolo, em casos de estupro e agressão sexual, uma das principais
evidências são amostras de DNA. Por isso, os funcionários orientam as vítimas a
não se lavar, tomar banho ou trocar de roupa. Quem sofreu a agressão, caso
queira, é encaminhado ao hospital.
[4]
A Lei Mariana Ferrer é reação legislativa à divulgação de uma audiência de
instrução e julgamento de uma suposta violência sexual que foi amplamente
divulgada na mídia, em que a comunicante foi seriamente interpelada e até mesmo
humilhada pelos atores da persecução penal. Por fim, vale alertar que embora a
lei nada mencione, é evidente que as regras de conduta processual nela
veiculadas são aplicáveis a toda a persecução penal, devendo a autoridade
policial zelar pela dignidade da vítima e das testemunhas desde a fase
investigatória. A despeito de a lei não ter previsto as referidas regras de
conduta para a fase pré processual, até por uma questão de respeito à
dignidade, deve a autoridade policial, desde o início, adotar as cautelas
previstas para a fase processual, obviamente, com as devidas adequações.
[5] Historicamente, desde a legislação hebraica conforme Magalhães Noronha (1978), citado por Scarance e Duek aplicava-se a pena de morte ao homem que violasse mulher desposada, isto é, prometida em casamento. E, se tratando de mulher virgem, porém, não desposada, deve ele pagar cinquenta ciclos de prata ao pai da vítima e casar com ela, não a podendo despedir em todos os seus dias, porquanto a humilhou. Quanto ao conceito de estupro, segundo Nelson Hungria citado por Scarance e Duek, estupro (vial, Notzucht, violenza carnale, violación) é a obtenção da posse sexual da mulher por meio de legislação penal".' Quanto ao conceito, na definição de Nelson Hungria, "estupro é a obtenção da posse sexual da mulher por meio de violência física ou moral, ou, para nos afeiçoarmos ao texto legal, o constrangimento de mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça".' violência física ou moral, ou, para nos afeiçoarmos ao texto legal, o constrangimento de mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça". Por conjunção carnal, em fase do Código Penal em vigor, entende-se a união sexual, a cópula vagínica, ou seja, a cópula secundum naturam, pois só a mulher pode se sujeito passivo deste crime. O Projeto Alcântara inicialmente imitava o modelo. Por conjunção carnal, em fase do Código em vigor, entende-se a união sexual, a cópula vagínica, ou seja, a cópula secundum naturam, pois só a mulher pode ser sujeito passivo deste crime. O Projeto Alcântara inicialmente imitava o modelo italiano ("ter conjunção carnal com alguém") admitindo outras formas de coito na configuração do estrupo. Mas, como concluiu Nelson Hungria, "aderindo ao ponto de vista da Comissão Revisora, explicitamente declarada que só a mulher podia ser sujeito passivo de tal crime (art. 268). Assim, o próprio elemento histórico está a indicar a justeza da interpretação que acima se defende. Rigorosa a posição de Nelson Hungria que cogita em "inequívoca resistência"; em “uma vontade decidida e militantemente contrária) uma oposição que só a 'violência física ou moral consiga vencer"; é "preciso que a vítima não adira, libenter, em momento algum, à lascívia do sujeito ativo.),
[6] SÚMULA N. 231: A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal. Precedente (5ª T, 07.10.1997 – DJ 10.11.1997) Terceira Seção, em 22.09.1999 DJ 15.10.1999, p. 76.
[7]
A embriaguez alcoólica, na definição de Eduardo Rodrigues, é a 'perturbação
psicológica mais ou menos intensa, provocada pela ingestão de álcool, que leva
a total ou parcial incapacidade de entendimento e volição'.47 O Código Penal
fez menção, ainda, a outra substância de efeitos análogos. Nesta última parte,
podemos visualizar as substâncias tóxicas e entorpecentes, tais como a cocaína,
o ópio, etc. Da mesma forma que o caput do art. 26, o § 1º do inciso II do art.
28 do Código Penal brasileiro afirma ser isento de pena o agente que, por
embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo
da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do
fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
[8]
No direito penal espanhol há três causas de responsabilidade penal que podem
ser mitigadas no âmbito da imputabilidade; a alienação e o transtorno mental
transitório, a menoridade penal e, a alteração na percepção. Boa parte da
doutrina e jurisprudência considera necessária base patológica no indivíduo
para detectar a eximente de transtorno mental transitório. No Brasil, o STF
excluiu do transtorno mental transitório os estados passionais e a embriaguez.
[9]
No Direito Brasileiro, o termo atenuante é um conceito utilizado enquanto
redutor da pena por um crime cometido, previsto no Código Penal (CP). As
circunstâncias atenuantes e causas da diminuição da pena foram estabelecidas
pelo artigo 65 do Código Penal Brasileiro, e são as seguintes: O réu for menor
de 21 anos quando cometeu o crime ou delito. Conhecido como atenuante da
menoridade. O réu ser maior de 70 anos na data da sentença. Alegar
desconhecimento da lei. Ter cometido o crime por motivação de valor social ou
moral. Ter tentado espontaneamente evitar ou diminuir as consequências do crime
logo após ter cometido. Ou ter reparado o dano antes do julgamento. Agiu sob
coação ou em cumprimento de ordens de uma autoridade superior. Atenuante da
Confissão: Se confessou de forma espontânea a autoria, perante autoridades. O
crime foi cometido influenciado por uma multidão em tumulto, desde que não
tenha causado o mesmo. E ainda existem as circunstâncias atenuantes genéricas
ou atenuantes inominadas, das quais falam o artigo 66 do Código Penal. São
situações não definidas em lei, mas que constituem casos excepcionais a serem
considerados pelo juiz ao determinar a sentença, como, por exemplo, o
arrependimento do réu.
[10] Os §§ 1º e 2º, do art. 213, do Código Penal, elencam as formas qualificadas do estupro, alterando o mínimo e o máximo das penas previstas em abstrato. São três as qualificadoras (circunstâncias específicas), a saber: (a) Estupro qualificado pela lesão corporal de natureza grave; Estupro qualificado pela idade da vítima (§ 1º, última parte); Estupro qualificado pela morte (§ 2º).
[11]
Com o advento da Lei 12.015/2009, por equívoco do legislador, passaram a
existir dois Capítulos com mesma denominação “Disposições Gerais” no Título dos
crimes contra a dignidade sexual. São os Capítulos IV e VII que contém causas
de aumento de pena aplicáveis ao estupro e aos demais crimes de natureza
sexual, respectivamente nos arts. 226 e 234-A, do Código Penal. Antes da Lei
12.015/2009, o crime de estupro era bipróprio, exigindo condição especial dos
sujeitos ativo e passivo. Assim, somente o homem poderia ser sujeito ativo e
somente a mulher como sujeito passivo. Com essa lei, o atual crime de estupro,
previsto no art. 213 do Código Penal, representa a junção dos antigos delitos
de estupro (art. 213) e atentado violento ao pudor (art. 214). Assim, o crime
de estupro passou a ser bicomum, ou seja, qualquer pessoa pode figurar tanto
como sujeito ativo quanto como sujeito passivo.
[12]
Firmou-se jurisprudencialmente que os menores de quatorze anos não têm
capacidade de consentir para o ato sexual e, não possuem assim, liberdade
sexual. O que, infelizmente, não impediu, contudo, haver diversos tribunais
brasileiros que desclassificassem o crime de estupro de vulnerável (artigo
217-A CP) para o de importunação sexual (artigo 215-A CP), levando a que o STJ
julgando recursos repetitivos e representativos de controvérsia, fixasse a
tese, in litteris: "Presente o dolo específico de satisfazer à lascívia
própria ou de terceiros, a prática de ato libidinoso com menor de quatorze anos
configura o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A CP), independentemente
da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a
desclassificação para delito de importunação sexual (artigo 215-A CP).
[13] As feministas, a partir da década de 1980, se esforçaram, primeiro, no reconhecimento do estupro conjugal, argumentando com a exclusão da “necessidade do uso da força na definição do crime e da demonstração da resistência como ausência de consentimento”. Depois, buscando proteger as mulheres da revitimização, quando denunciam um estupro. Nos anos 1990 e 2000, o debate passou a se centrar no estupro entre conhecidos, situação em que a existência ou não do consentimento ganha especial relevo.
[14]
O núcleo do tipo penal está representado pelo verbo constranger (compelir,
coagir, obrigar, forçar), tendo como objeto material qualquer pessoa (alguém),
e as seguintes finalidades: ter conjunção carnal; praticar outro ato
libidinoso; permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Na prática
de atos libidinosos a vítima pode desempenhar, simultaneamente, papéis ativo e
passivo. É o que ocorre, por exemplo, na conjunção entre a felação e o cunnilingus,
onde a mulher simultaneamente realiza sexo oral no homem e dele suporta em seu
corpo ato de igual natureza. Não há estupro, em razão da ausência de
tipicidade, o fato de o agente constranger alguém a presenciar ou assistir a
uma conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Nesse caso, se a vítima tem idade
igual ou superior a 14 anos, o crime é de constrangimento ilegal (CP, art.
146). Tratando-se de vítima menor de 14 anos, o crime poderá ser o de
satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (CP, art.
218-A).
[15]
Violência é o emprego de força física (vis absoluta) capaz de
dificultar, paralisar ou impossibilitar a real ou suposta capacidade de
resistência da vítima, resultando em vias de fato ou lesão corporal. Pode ser
direta ou imediata quando empregada contra o titular do bem jurídico tutelado,
ou indireta ou mediata quando empregada a terceiros ligados à vítima por
relações de amizade e parentesco.
[16]
Também denominada de violência moral (vis compulsiva) é a promessa da
prática de um mal a alguém, de acordo com a vontade do agente, consistente na
ação ou omissão, capaz de perturbar a liberdade psíquica e a tranquilidade da
vítima. O mal grave (material, moral, econômico, profissional, familiar etc.)
prometido na ameaça deve ser certo (não vago), verossímil (passível de
ocorrer), iminente (que está para ocorrer e não previsto para um futuro
longínquo) e inevitável (que o ameaçado não possa evitar). A ameaça também pode
ser direta ou imediata quando dirigida contra a vítima, titular do bem jurídico
tutelado, ou indireta ou mediata quando dirigida a terceiros ligados à vítima
por relações de amizade e parentesco.
[17]
Aliás, muitas outras mudanças trataram apenas de adequar a redação legislativa
aos tempos contemporâneos, como foi através da retirada do termo "mulher
honesta" do Código Penal brasileiro, termo que é muito preconceituoso. A
mudança de costumes, de moral e pensamento da sociedade atual não pode mais
tirar à mercê de um Código que foi elaborado durante a ditadura de Getúlio
Vargas, do Estado Novo, de 1937 a 1945.
[18]
Até mesmo os fiéis seguidores do Direito Penal mínimo que é contra as punições
excessivas, em se tratando de crimes contra a mulher, não cabe abrandar o
sistema penal. Lembremos que a Súmula 593 do STJ prevê a presunção de violência
contra os costumes cometidos contra menores de quatorze anos, prevista na
antiga redação do artigo 224, alínea a, do Código Penal brasileiro, possui
caráter absoluto e, constitui critério objetivo para se verificar a ausência de
condições de anuir com o ato sexual. Ainda há a previsão do artigo 217 do ECA
que prevê o tipo de estupro contra vulnerável, descrito no artigo 217-A, criado
pela Lei 12.015/2009.