A Cidade de Deus de Santo Agostinho

A obra de Santo Agostinho ao descrever um mundo dividido entre o terreno e o espiritual, revela os paradoxos mais clássicos da História e traz assuntos complexos e torturantes como a origem e a subtancialidade do bem e do mal e também do direito.

Fonte: Gisele Leite

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A obra em seu título original é "Dei Civitate Dei" traduzindo literalmente é "A Cidade de Deus" é obra de Santo Agostinho onde descreve o mundo dividido entre o dos homens, ou seja, o mundo terreno e o dos céus, isto é, o mundo espiritual. Parece que era a obra preferida do Imperador Carlos Magno.

A obra situa-se na filosofia ou mesmo na teologia da História e aborda os mais variados e complexos temas que sempre apaixonaram o espírito humano que é destrinchar a origem e a substancialidade do bem e do mal, do pecado, da culpa, da morte e do direito, da lei e das penas, do tempo, do espaço, da contingência da História. 

Enfim, do ser, do conhecer e do agir do homem, de Deus, da natureza e do espírito. Navegando entre a temporalidade e o eterno, observando os ciclos cósmicos e apontando para o mistério apologético que continua intacto apesar de tanta evolução da Ciência humana.

A tese de Agostinho apresenta a história do mundo como a guerra universal entre Deus e o Mal. Tal embate metafísico não se limita ao tempo, mas apenas pela geografia na Terra.

Nesta guerra, Deus move por intervenção divina, ou seja, Providência, seja nos governos, nos movimentos políticos e ideológicos e forças militares alinhados com a Igreja Católica (a Cidade de Deus) a fim de se opor por todos os meios, o que inclui os militares, governos e movimentos políticos alinhados com o Diabo (a Cidade do Diabo).

Há estudiosos católicos que consideram a obra Discours sur l'histoire universelle, de Jacques-Bénigne Bossuet de 1681 como sendo uma sendo uma segunda edição ou continuação de "A Cidade de Deus". A obra promove atualização da história universal, conforme a tese de Agostinho da guerra universal entre os humanos que seguem Deus e aqueles que seguem o Diabo.

Tal conceito da história do mundo[1] ser guiada pela divina providência, em uma guerra universal entre Deus e o Mal, integra a doutrina oficial da Igreja Católica tal como fora afirmada no documento Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II.

Na obra, o peregrino pertence tanto a cidade de Deus quanto a cidade terrena. Porém, incessantemente a paz, entretanto, vive as contradições e conflitos do mundo. Se a cidade de Deus é o horizonte último do cristão em sua jornada no tempo, todavia, ainda não é plenamente.

A cidade terrena o envolve e, ainda, o desafia e o provoca. O peregrino dirige suas esperanças à cidade de Deus, mas, porque igualmente pertence à cidade terrestre, é responsável pelo acontecimento da concórdia na família e na comunidade política.

Na comunidade política, no entanto, a paz é resultado da justiça. Mas o questionamento é como conseguir paz e justiça na cidade terrena? Mas, a paz conforme segundo os estoicos, seria a imperturbabilidade conquistada pela supressão de paixões?

A paz resulta então da posse de bens almejados pelos quais empenhamos energias e tempo? Que bens serão esses e como encontrá-los? A paz seria simplesmente a inexistência de guerras? Onde reina a tranquilidade pública significa que reina a paz?

Apelando para etimologia, in litteris:

Paz, de Pax, Pacis (In: F. R. SARAIVA, Novíssimo Dicionário Latino Português, Garnier, Rio de Janeiro 1993, 10ª ed., p. 856) significa tranquilidade, concórdia, sossego, repouso, disposição pacífica.

Segundo Saraiva, pax indicaria: o gozo tranquilo da liberdade (Pax est tranquilla libertas), a paz da alma conquistada pelo exercício da temperança. Ou seja, pax sinalizaria para duas dimensões da vida humana: a paz social e a paz da alma.

Santo Agostinho também viveu num período de transição denominado romanidade tardia[2], tendo testemunhado o ocaso de uma civilização e a alvorada de um novo mundo.

Herdeiro da tradição clássica e assíduo leitor das Escrituras, ligado a um mundo que desaparecia e aberto à novidade radical do Evangelho, conseguiu ver para além das contradições daquele período, venceu os medos e inseguranças intensamente presentes num período de aceleradas transformações e, porque forneceu razões ao existir humano, plantou sementes de esperança nos corações e mentes dos homens de todas as épocas.

Perseguindo as raízes antropológicas da paz, conclui-se que a paz supõe a reconciliação, de cada um consigo mesmo, seja entre os membros da família, entre os homens na sociedade.

E, a pacificação interior é condição para pacificação da família e da sociedade. E, nessas três dimensões da existência humana, na fragmentação cognitiva e existência, a paz reside no autoconhecimento e na centralidade da vida.

Referências:

HINRICHSEN, Luís Evandro. Agostinho e a Cidade: De Deus ou Dos Homens? Sobre a Inquieta Dinâmica da Paz. Disponível em: http://193.137.34.194/index.php/civaug/article/view/22/39 Acesso em 13.11.2020.

AGOSTINHO de Hipona, Cidade de Deus, São Paulo: Editor: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.

____________________, A cidade de deus.  Disponível em: https://archive.org/details/city_of_god_ds_librivox  Acesso em 13.11.2020.

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus (Contra os pagãos). Trad. Oscar Paes Leme. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003. 2v. (Coleção Pensamento Humano).

Notas:

[1]  De acordo com Santo Agostinho podemos afirmar que cumpre à esperança completar as virtudes cardeais. A esperança quando acrescentada à fortaleza pela qual suportamos as adversidades, à temperança com a qual controlamos as paixões, à prudência, regra do correto discernimento, à justiça, fundamento da convivência em sociedade, o que permite gozar antecipadamente do sumo bem prometido: a vida eterna em Deus.

[2] Quando o saque de Roma pelos visigodos em 410 desencadeou uma atmosfera pessimista sobre o mundo mediterrâneo, Agostinho sacou sua pena afiada para defender a Igreja dos que a acusavam pela degeneração do Império. Após 13 anos de trabalho, vinha à luz sua obra prima.  Muito além de uma apologia contra os pagãos, a Cidade de Deus se abre a uma especulação sobre a História Universal sem precedentes no mundo clássico e sem descendentes no medieval, possivelmente só igualada em fôlego e amplitude pelas epopeias metafísicas modernas de filósofos como Vico, Hegel, Comte ou Marx. Em sua visão, toda existência humana, individual ou social, está, do princípio ao fim, tensionada, quando não dilacerada, entre dois amores – dois amores que fundaram duas Cidades.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Filosofia Teologia da História A Cidade de Deus A Cidade do Diabo Direito

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