O criado-mudo e as pessoas-placa
Por Paulo Schwartzman.
Olá leitores, tudo bem? Todos
sabemos da importância das palavras na vida cotidiana, devendo estarmos atentos
para não ofendermos ninguém em sua dignidade por meio do uso de palavras que
possam machucar. É dentro desse contexto que, no bojo do movimento negro, houve
uma ação no sentido de extirpar do uso palavras e expressões que possam ser
consideradas racistas.
Um dos termos que é muito
discutido é o “criado-mudo”. Há aqueles que sustentam que não há fagulha de racismo
na expressão, afirmando que a terminologia derivaria da expressão inglesa dumbwaiter
(literalmente “garçom mudo) e se referiria a um aparato como o da foto abaixo:
Créditos
da imagem Comtesse d'Autodidactica[1]
Outra versão para a origem da
expressão seria a de que o criado-mudo seria a função de um escravo que
serviria como mobília, ficando ao lado da cama do seu senhor, literalmente com
a função de segurar seus pertences. O nome seria criado-mudo uma vez que este
teria que ficar em silêncio por diversas horas, podendo ser punido, inclusive,
com o corte de sua língua caso não assim fizesse.
Por fim, há uma outra teoria
de que a expressão seria advinda do móvel hoje em dia conhecido como mesa de cabeceira,
e que o nome mudo seria pelo fato de ter substituído aquele escravo que teria a
função de ficar ao lado da cama do senhor. Nesse sentido o “criado-mudo” seria
o sucessor do “criado-falante”.
Seja como for, para os fins
desse texto adotaremos as duas últimas definições, uma vez que estas denotam o
fenômeno da “coisificação” do homem. Ora, toda vez que o ser humano é utilizado
como meio e não como fim este passa a ser realmente uma coisa.
Desde Pico della Mirandola e
passando por Kant é visível a importância do respeito à dignidade da pessoa
humana. Não por outra razão esta é um dos fundamentos da República (ou seria
República ao considerarmos o caminho nefasto dos acontecimentos recentes?)
Brasileira, estando mesmo insculpida no art. 1º, III, da Constituição da
República.
A questão que deve estar
pairando pelas suas cabeças é: tá, mas e o que tudo isso tem a ver com o texto
de hoje se já não há mais a figura do escravo que fica ao lado da cama dos
senhores, sendo que pelo menos esse tipo de escravidão terminou? A resposta é:
hoje temos a nossa própria forma de pessoa-coisa, mais adaptada à realidade
brasileira do século XXI.
Nesse diapasão que quero falar
um pouco sobre as pessoas-placa. Por pessoas-placa refiro-me àqueles seres
humanos que servem para a única finalidade de segurar setas ou cartazes,
geralmente de algum lançamento imobiliário ou campanha eleitoral.
Nesse sentido, e por já haver
um estudo jurídico prévio curto e acurado de Flávio Tartuce sobre o assunto,
deixo o link aqui[2] a fim
de que todos possam ter acesso a um panorama mais jurídico, porém menos
interdisciplinar, sobre a questão. Ainda reconhecendo os trabalhos que
antecedem essa singela coluna, vale a leitura e a visualização do
vídeo-documentário formado com apoio popular por vaquinha eletrônica
“Pessoa-coisa, cidade-torre”, que pode ser assistido aqui[3] e lido
aqui[4], faço
o alerta todavia que esse documentário aborda apenas o uso das pessoas como
coisas pelo ramo imobiliário, deixando de fora o uso eleitoral.
O que eu queria acrescentar à
discussão acerca das pessoas-placa é uma questão de autorrenferencialidade
jurídica e ausência de lógica-macro, ou como os sábios diriam, uma situação em
que “o rabo corre atrás do cachorro”. Com efeito, a presença de tais pessoas
ocorre pelo fato de que existe uma proibição em lei e regulamento urbanísticos
na afixação de cartazes e setas em vias públicas. Logo, para os fins de
viabilizar a existência do cartaz na via, os empresários (nos casos das
imobiliárias) e os políticos (no caso das campanhas eleitorais) acharam e acham
melhor manter seres humanos sob sol ou chuva sem o mínimo de dignidade a ver
seus belos cartazes serem arrancados por motivo de irregularidade.
Estranho pensar que há todo um
contorcionismo mental para viabilizar a presença de uma seta ou um cartaz, mas
que ao mesmo tempo não há um pingo de piedade e empatia, uma vez que, pelo
menos nessa situação, há mais proteção jurídica ao cartaz (que não pode ser
arrancado por estar atrelado a uma pessoa) do que a um ser humano (que serve
como mero objeto de exposição de cartaz). Além disso surgem importantes
questões acerca da (des)umanidade das construtoras e dos políticos que fazem
uso dessa tática deletéria, mas isso seria pedir demais de sujeitos que se
importam ou só com dinheiro, ou só com voto, para que depois possam conseguir
dinheiro.
Sei que virá alguém dizendo:
mas Paulo, se a pessoa quer se sujeitar a isso ela que se esfole, é assim que
as cosias são. Para esse tipo de pessoa, cujo pensamento acaba sendo fatalista,
digo que a permissividade da violação da dignidade de um só ser humano deveria
ser intolerável para toda a espécie humana, sendo que ninguém deveria, nem em
tese, poder ser submetido a tamanho flagelo. O problema é que no Brasil de hoje
aparentemente essa violação nem é das maiores que acontecem, pelo menos é o que
os noticiários mostram, com a fome já assolando parcela significativa da
população.
Enquanto nada for feito
continuaremos a ter pessoas que são verdadeiros criados-mudos de placa.
Notas:
[1]
Conteúdo disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Dumbwaiter_at_Biltmore_House,_Asheville,_North_Carolina.jpg>. Acessado em: 27/06/2022
[2]
Conteúdo disponível em: <https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/136657277/as-pessoas-seta-e-a-dignidade-humana>. Acesso em 29/06/2022.
[3]
Conteúdo disponível em: <https://vimeo.com/157523397>. Acesso em 29/06/2022.
[4]
Conteúdo disponível em: <https://medium.com/@cidadetorre/pessoa-coisa-cidade-torre-98828b716ce4#.uwul51spi>.
Acessado em 29/06/2022.