Misoginia contemporânea. Pílula vermelha de Vergonha
Por Gisele Leite.
Recentemente, o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública divulgou a pesquisa denominada "Visível e
Invisível" que apontou crescimento de todas as formas de violência contra
a mulher em 2022. Registrou-se o dado que aponta mais de 18,6 milhões de
mulheres de 16 anos ou mais foram agredidas seja verbalmente ou fisicamente.
A mesma pesquisa apontou que
cerca de 33,4% das mulheres brasileiras já foram vitimadas por violência física
ou sexual provocada seja por um companheiro, ex-companheiro, marido, ex-marido,
namorado ou noivo ao longa da vida, resultado muito superior à média mundial
que é estimada 27% segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)[1]. Nas redes sociais,
mulheres famosas ou não são abertamente ameaçadas de morte. Mas, o que é motriz
do crescimento da violência de gênero no país
Há um movimento chamado Red
pill que se refere a uma cena do filme de ficção científica chamado Matrix,
onde o protagonista tinha que escolher em tomar uma pílula azul e continuar
vivendo em pura ilusão, ou então, tomar a pílula vermelha e descobrir a
realidade. O movimento Red pill é o movimento masculinista, a realidade
seria um mundo em que as mulheres são privilegiadas, interesseiras e
aproveitadoras e, os redpills, os homens que se opõem a esse sistema que
favorecia mulheres.
De acordo com a pesquisadora
Michele Prado, autora da obra intitulada “Redpill- radicalização e
extremismo, essa é uma metáfora utilizada pela extrema direta em todo mundo”. Red
pill é mais um dos vários grupos masculinistas tais como o Incel
(celibatário involuntários), MGTOW (homens seguindo seu próprio caminho) e PUAs
(artistas da pegação), que supostamente lutam pelos "direitos dos
homens", outros mencionam direitos dos machos, e para tanto se opõem às
feministas e aos direitos das mulheres.
A Revista Veja em recente
texto de autoria de Duda Monteiro de Barros revela que o Movimento Red Pill
expõe sem pudores sua face cruel e reacionária do machismo nas redes sociais.
Não é algo inédito, afinal, nos idos de 1980, nos EUA, havia Backlash que
questionava se a autonomia das mulheres não teria ido "longe demais”. Com
o Red Pill há os inacreditáveis quarenta e quatro bilhões de
visualizações, cuja inspiração é um filme intitulado "Psicopata
Americano" que é admirado pelos seus integrantes. Ainda de acordo com sua
cartilha bizarra, as mulheres manipulam o tempo todo para dominá-los e sua
palavra vale mais em um planeta tomado pelo feminismo. Há regras estipuladas
que sustentam que a parceira ideal é a obediente e que entende o homem como
chefe da casa, não usa roupas curtas nem sensuais e exala delicadeza
o que expõe a face mais
perversa do conservadorismo contemporâneo. As mulheres integrantes do Red
Pill não podem ter filhos, nem ser divorciais nem tampouco defender ideais
de igualdade e, apregoa que os homens devem se reposicionar. Há quem acredite
que o feminismo é uma das tramas para acabar com o Ocidente e que o movimento
feminista pretende a extinção da masculinidade, conforme explicou o filósofo Aldo
Dinucci, da Universidade de Kent no Reino Unido.
Outro movimento é o Men
Going Their Own Way (tradução: homens seguindo seu próprio caminho) que
aplicam nos relacionamentos, a doutrina machista e, aponta que as mulheres
podem ser entraves para seu sucesso e, um dos integrantes célebres é o
empresário Andrew Tate o que ergue a tese de que as mulheres são propriedade
masculina e, também, já virou assunto de polícia.
Tanto que o famoso se encontra
preso na Romênia, acusado de exploração e escravização sexual. Existe ainda os coaches
de masculinidade que doutrinam aqueles que não sabem lidar com autonomia
feminina nem com respeito a dignidade humana e, enxergam nas transformações
sociais como batalhar campal onde se deve reafirmar sua virilidade. Enfim, Red
Pill é, em verdade, uma amarga e real pílula do retrocesso.
Em reação ao festival de
absurdos defendidos por esses movimentos machistas a bancada feminista do PSOL,
formada por dois mandatos coletivos, uma na Câmara dos Deputados de São Paulo e
outra na Assembleia Legislativa do São Paulo (Alesp) ingresso no dia 08 de
março do corrente ano com um pedido de instauração de inquérito para análise da
disseminação de discursos de ódio contra mulheres no ambiente virtual.
O movimento masculinista entoa
como doutrina discursos de ódio e, estimulava haver a submissão feminina e o
resgate da virilidade masculina, valorizando um ideal de comportamento violento
e predador dos homens que teriam perdido a hegemonia e a posição de topo ou de
líder na cadeia alimentar.
O discurso de ódio[2] propicia o crime de ódio
que nasce com a aversão absoluta ao outro, e procura sua eliminação. São crimes
de violência física, psicológica, moral, social e, tal crime pode ir desde
homicídio até a injúria motivada por uma característica específica de pertencimento
de uma pessoa a um determinado grupo.
O movimento masculinista trava
uma autêntica guerra contra a igualdade de gênero e os direitos das mulheres o
que é muito caracterizador para compreender a ação dos masculinistas, que se
situam também na extrema direita no mundo.
O movimento alemão “Demo
für alle” culpa o feminismo pela destruição da família e travou batalha
contra o ensino de diversidade sexual no currículo escolar da Alemanha. Tais
grupos, porém, não contam somente com homens.
O partido político polonês
chamado “Lei e Justiça” (PiS) que, entre outros, se dedica ao combate de
ideologia de gênero e aos direitos LGBTQIA+ teve grande liderança entre os anos
de 2015 a 2017.
A ONG Safernet mostrou
a expansão de grupos que propagam crimes de ódio pelas redes sociais e, entre
2021 a 2022 as denúncias de misoginia registraram um aumento de 184%, as de
intolerância religiosa, de 522% e as de xenofobia na ordem de 821%.
Considerando os anos
eleitorais, a central brasileira da organização denuncia o crescimento
constante dos crimes de ódio desde 2018. Também nos últimos anos assistimos ao
fortalecimento do movimento “Escola sem Partido”, que colocou o combate à igualdade
de gênero como prioridade, resultando na intimidação a docentes e na proposição
de projetos de lei que atacam a inclusão de questões relativas à igualdade de
gênero, raça e sexualidade nos conteúdos escolares.
Infelizmente, em 8 de março de
2023 ainda noticiamos o crescimento acentuado de diferentes formas de violência
física, moral e sexual contra mulheres. E, o indicador de desigualdade de
gênero do Fórum Econômico Mundial, o Global Gender Gap Report colocou o
Brasil em sua edição mais recente no 94º lugar em uma lista de cento e quarenta
e seis países.
Em 2013, estávamos em 62ª
posição, o que revela o acentuado retrocesso em razão da busca pela igualdade
de gênero tornou-se um problema para parcela da população e dos grupos
políticos no poder.
Infelizmente, não se pode
dissociar esse retrocesso no país da ascensão da extrema direita no Brasil
contemporâneo. Mesmo que o movimento feminista logre conquistas fundamentais
para os direitos e proteção das mulheres, tais como a Lei Maria da Penha, a
reação dos movimentos ultraconservadores tem sido na direção de anular tais
conquistas.
E, tal reação não se dá apenas
no mundo virtual. Tanto que na política brasileira registrou a criação do
Ministério da Família que zerou os recursos orçamentários voltados para as
políticas de enfrentamento à violência contra a mulher enquanto sujeito de
direitos e passou a priorizar a família, ainda que esta fosse a principal fonte
da violência reiteradamente perpetrada.
Em cada dez feminicídios no
Brasil, oito são praticados pelo parceiro íntimo da vítima e na convivência
familiar. Com a pandemia de Covid-19 o crescimento exponencial da violência
doméstica teve como cenário principal a casa das famílias.
Atualmente, vige a misoginia
disfarçada de autoajuda e nos discursos de influenciadores de grupos
masculinistas que trazem graves consequências nas vidas das mulheres, 7,4
milhões de mulheres foram agredidas fisicamente com tapas, socos, chutes somente
em 2022. O que equivale apontar que ocorrem catorze agressões físicas por
minuto no Brasil.
Já outras 3,4 milhões de
mulheres foram espancadas ou sofreram tentativas de estrangulamento
(homicídio), 3,3 milhões sofreram graves ameaças seja com faca ou arma de fogo.
E, não se restringe à mulher, indo até atingir os filhos, basta lembrarmos da tragédia
do Henry Borel[3]
que acarretará o julgamento dos réus (ex-padastro e mãe) pelo Tribunal do Júri,
a criança morta continha mais de vinte e cinco lesões corporais segundo
relatório oficial do IML.
Com razão, a ação promovida
pelo PSOL visou também que haja adequado controle das plataformas digitais e
redes sociais[4]
para que adotem práticas hábeis a inibir conteúdos misóginos e discursos de
ódio contra mulheres, além da responsabilização dos coaches e
influenciadores envolvidos. Nos processos criminais contra pessoas que proferem
discurso de ódio, há duas tipificações comuns, uma prevista na Lei 7.116/1989
que definiu os preconceitos de raça e de cor (tipificando o crime racismo)[5].
E, em seu artigo 1º, “serão
punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Assim, o
crime é motivado pela cor da pele e/ou por questões étnicas e de
nacionalidade.
Sem esquecer que constituem os
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação, conforme atesta o artigo 3º, inciso IV da Constituição
Federal brasileira de 1988. Portanto, qualquer ato discriminatório é violação
grave a esse princípio basilar que concretiza a salvaguarda do cidadão.
Lembremos que desde 2019, o
caráter punitivo desses crimes ganha amparo pela Lei de Racismo (7.716/89), que
equipara a punição de atos de “discriminação por orientação sexual e identidade
de gênero” com crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, sob pena
que pode chegar até três anos e multa. Repise-se que assim como o racismo, o crime é
inafiançável e imprescritível.
É preciso advertir que não
existe a liberdade de expressão quando se revela através de discursos de ódio
às mulheres. É preciso haver conscientização de que todos (absolutamente todos)
merecem o respeito à dignidade humana. Essa conscientização pode ocorrer
através de palestras, seminários, dinâmicas em escolas e ambientes de trabalho
a fim de combater os discursos de ódio e a prática da misoginia contemporânea.
O principal debate que surge
ao cogitarmos dessa prática é a diferença entre discurso de ódio e liberdade de
expressão. Isso porque, muitos alegam que a liberdade de expressão lhes dá
direito de se expressarem da maneira que melhor lhe convém sobre todo e qualquer
tema. Entendimento errôneo pois não é
liberdade de expressão e, sim, prática criminosa.
O direito à liberdade de expressão é garantido pelo inciso IX do Artigo 5º da Constituição, ou seja, uma garantia constitucional. Isso, por sua vez, não significa que ela seja uma garantia absoluta, afinal, ela também precisa respeitar outras garantias constitucionais, como o direito à intimidade, por exemplo. A liberdade de expressão não pode desrespeitar o princípio da preservação da dignidade humana.
Referências
BUENO, Samira. Misoginia
Disfarçada de Autoajuda. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/misoginia-disfarcada-de-autoajuda/ Acesso em 10.3.2023.
DE BARROS, Duda Monteiro. Movimento
Red Pill revela a face cruel e reacionária do machismo nas redes. Disponível
em: https://veja.abril.com.br/comportamento/movimento-red-pill-revela-a-face-cruel-e-reacionaria-do-machismo/ Acesso em 10.3.2023.
DEFENSORIA PÚBLICA GERAL DO ESTADO DO CEARÁ. Entenda o que são crimes de ódio e como denunciar práticas na Defensoria Pública. Disponível em: https://www.defensoria.ce.def.br/noticia/entenda-o-que-sao-crimes-de-odio-e-como-denunciar-praticas-na-defensoria-publica/#:~:text=Este%20%C3%A9%20o%20Artigo%203%C2%BA,considerado%20um%20crime%20de%20%C3%B3dio. Acesso em 10.3.2023.
P.S. Aproveito a oportunidade para homenagear algumas mulheres muito importantes na minha vida: minha avó, mãe, minha filha, minha irmã e, minhas professoras que tanto me inspiraram na carreira do magistério. Particularmente, Ingrid Louise Alves Pereira e Denise Heuseler por representarem um quinhão afetivo basilar para minha existência. Desejo também homenagear, Ana Maria Paixão da Paixão Editores, Mariana do JURID- Notícias Jurídicas, Dra. Vanuska Diab, Hérica Vasques, Valdineia Tessaro e Eliana Bravim (ABRADE-ES) e todas as mulheres que constroem esse enorme país.
[1]
Sobre discurso de ódio, se faz necessário falar sobre direitos humanos. Segundo
a Organização das Nações Unidas, direitos humanos são “direitos inerentes a
todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia,
idioma, religião ou qualquer outra condição”, incluindo “o direito à vida e à
liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação,
entre e muitos outros. Todos merecem estes direitos, sem discriminação”.
[2]
Discurso de ódio ou em inglês, hate speech ou incitamento ao ódio é, de
forma geral, qualquer ato de comunicação que inferiorize ou incite ódio contra
pessoa ou grupo, tendo por base características como raça, cor, sexo, gênero,
etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual ou outro aspecto passível de
discriminação. Há consenso internacional de que tais discursos devem ser
proibidos por lei e, que tais proibições não violam a liberdade de expressão.
Em 31 de maio de 2016, o Facebook, a Google, a Microsoft e o
Twitter, chegaram a um acordo quanto a um código da União Europeia de conduta
obrigando-se a avaliar a maioria das notificações válidas para a remoção de
discurso do ódio ilegal que seja postado em seus serviços, num prazo de 24
horas.
[3] Leia
o artigo de minha autoria sobre a Lei Henry Borel. Disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/consideracoes-sobre-a-lei-henry-borel-ou-lei-1443322
[4]
Não existe uma lei específica que trate sobre discurso de ódio na rede mundial
de computadores, entretanto, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) é a
principal fonte a ser utilizada nesta questão. Segundo ele, “A disciplina do
uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de
expressão, bem como: […] II – os direitos humanos, o desenvolvimento da
personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III – a pluralidade
e a diversidade;”.