Milicianismo

Por Gisele Leite

Fonte: Gisele Leite

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É verdade que no imaginário popular, o crime e a criminalidade organizada ganham rostos, expressões e, até a atenção do cinema como foi o caso do filme “Cidade de Deus” onde se enfocou Zé Pequeno e no filme “Tropa de Elite”, no personagem Baiano, ou ainda, em figuras de mafiosos italianos como Scarface, ou de O Poderoso Chefão, de Francis Coppola.

Bem além das personificações, há mitos, heróis e bandidos, sendo reproduzidos e enfocados sob falsas representações sobre a criminalidade e a violência. Há discursos que enfatizam a naturalização das mortes, das vidas precárias e das crueldades banalizadas em processos que admitem ciclos marcados de violência e a criminalidade como sendo fenômeno social.

A sustentada solução principal para criminalidade ganhou dicção com um bordão afamado: "bandido bom é bandido morto", sendo uma mentira reiterada e num estilo nazifascista de Joseph Goebbels[1], que trazia em sua mensagem a legitimação do extermínio plausível e, ainda, como plausível política pública a fim de resolver graves problemas sociais que redundam na criminalidade ativa.

No intrincado cenário, emerge o milicianismo como sendo um dos mais primitivos passos de grupos de justiceiros direcionadas à caçadas de acusados e culpados, principalmente, com advento do golpe de Estado de 1964 no Brasil.

Mesmo com contundentes apurações da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro e da Comissão Nacional da Verdade apontam o funcionamento dessas organizações no período da ditadura militar, e ainda que sob a denominação de grupos de extermínio ou esquadrão da morte, que apesar das variações e de novos contextos, conservaram as bases de emprego da violência e de execuções sumárias como principais práticas.

Enfim, com redemocratização do Brasil, com o fim do regime ditatorial militar, as milícias se reinventaram e formaram novas bases, notadamente nas grandes capitais brasileiras, em comunidades

pobres de grande concentração de populações marginalizadas nas periferias, especialmente, na zona oeste da capital paulista e na Baixada Fluminense.

A partir dos anos 2000, quando as milícias foram alvo de investigação pela CPI, Comissão Parlamentar de Inquérito[2] instalada na Assembleia Legislativa do Estado do RJ (ALERJ) no ano de 2008, apurando-se vários indícios de envolvimento de agentes estatais, não apenas ligados à segurança pública, mas igualmente aos agentes políticos.

Infelizmente, mesmo depois da persecução penal de vários membros apontados pela CPI, as milícias não foram desarticuladas nem perderam força.

Ao revés, outros indícios apontaram que se reinventaram, e se adaptaram à conjuntura dos mercados ilegais, e mesmo a visibilidade atingida principalmente pela mídia, que não passou a não mais enaltecer suas práticas tidas como "mal menor" em face do mercado varejista de drogas e armas e, ainda contando com explícito apoio de discursos de governantes brasileiros.

Em jogo e diante da diversificação de suas atividades, deu-se a formação de narcomilícias pela adesão ou, ao menos, franca tolerância ao comércio de drogas, bem como a rede de conexões que foram capazes de reunir parecias antes improváveis entre grupos criminosos armados distintos.

Enfim, as milicias exercem o domínio sobre territórios e ocuparam postos dentro do Estado, ora como braços armados da segurança pública, ora em cargos dotados de poder política, e funcionam muito bem na exploração de vários mercados, e ainda com o fornecimento de serviços clandestinos imobiliários de segurança privada, de transporte, de telecomunicações, e, toda a dinâmica envolvendo as comunidades periféricas e pobres.

A criminologia não subestima a complexidade de sua estruturação e operação das milícias e, de suas forças que atuam dentro e fora do Estado e, não em paralelo operando por consequência a normalização e naturalização de mortes e a banalizada da violência brasileira.

Apesar de sucessivas e efetivas intervenções estatais, as milícias ficaram intocadas por muito tempo e, não tendo sido desenvolvido políticas públicas direcionadas ao desmantelamento de tais grupos paramilitares e, mesmo depois do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias instaurada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, as milícias ainda encontram terreno fértil para seu pleno desenvolvimento e expansão para operacionalização de suas práticas e táticas.

O uso da violência deliberada, coação e ainda o temor por execuções sumárias, consolidam o controle territorial das milícias e, por assim, conseguem cooptar grandes celeiros eleitorais e são estratégias para ganhar o poder político e, obter a proteção indispensável para a manutenção de projeto de poder.

O fenômeno do milicianismo vai além dos limites da política criminal e da segurança pública e vai as bases do regime constitucional do Estado Democrático de Direito e a evolução das milícias segue uma modificação dos modelos convencionais da chamada delinquência urbana, trazendo a naturalização da violência e da morte.

Além de contar com o respaldo de discursos contrários à defesa de direitos humanos e ainda de sustentação das execuções sumárias como resposta para a criminalidade[3].

A retórica da tolerância e encorajamento à violência, são as bases legitimatórias e reforça que as milícias, ao concretizarem comportamento autoritário e naturalizador da morte e, colaboram com o enfraquecimento das instituições democráticas em prol dos objetivos visados pelos milicianos.

O Brasil tipo como a república das milícias é dotado de estrutura peculiar, e confronta com o regime democrático. No fundo, a ascensão das milícias coloca em xeque o projeto trazido pela vigente Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[4], e a consagração de uma sociabilidade violenta reafirma a herança da repressão da ditadura militar[5].

A necropolítica[6] além de trazer as marcas do passado traz os indícios do presente e revelam o justo oposto, pois o monstro da repressão, da violência e do extermínio ainda vive e sobrevive.

A ascensão do conservadorismo e dos discursos extremistas de defesa da instrumentalização da violência só reforçam a morte enquanto sendo a solução a todos os problemas oriundos da criminalidade e, respondem à sociabilidade violenta, como sendo a repressão à criminalidade.

Infelizmente, a sombra maligna do fascismo é capaz de gerar uma crise democrática e, apontam que o os objetos no espelho estão mais próximos do que realmente parecem.

Referências

GONÇALVES, Antônio Baptista. Milícias: O Terceiro Poder que Ameaça a autoridade do Estado brasileiro e o domínio das facções. São Paulo: Edições 70, 2021.

MANSO, Bruno Paes. A República das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.

PAUZEIRO, Mariana Brito. Milícias S.A. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2022.

RAMALHO, Sérgio. Decaído: A história do capitão do Bope Adriano da Nóbrega e suas ligações com a máfia do jogo, milícia e o clã Bolsonaro. São Paulo: Matrix, 2024.

SOARES, Rafael. Milicianos. São Paulo: Objetiva, 2023.

Notas:

[1] Paul Joseph Goebbels (Rheydt, 29 de outubro de 1897 — Berlim, 1 de maio de 1945) foi um político alemão, filologista e Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945. Um associado e devoto apoiante de Adolf Hitler, ficou conhecido pela sua capacidade de oratória em público, seu profundo e fanático antissemitismo, e, sua crença na conspiração internacional judaica que o levou a apoiar o extermínio dos judeus no Holocausto. Na Universidade de Heidelberg, Goebbels escreveu a sua tese de doutoramento sobre Wilhelm von Schütz, um pequeno dramaturgo romântico do século XIX. Goebbels esperava ter tido o apoio de Friedrich Gundolf para a sua tese, um historiador literário importante na época. Aparentemente, Goebbels não se importava de Gundolf ser judeu. No entanto, Gundolf já não tinha funções pedagógicas, e assim apresentou a Goebbels o professor associado Max Freiherr von Waldberg. Waldberg também era judeu. Foi Waldberg quem recomendou a Goebbels a escrever a sua tese sobre Wilhelm von Schütz. Após apresentar a sua tese e a passar no exame oral, Goebbels recebeu o seu título de Doutor em 1921.

[2] O relatório do final da CPI das milícias foi aprovado por unanimidade com 56 votos no início da noite em 16.12.2008 na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Antes da votação, o resultado da CPI foi apresentado na Câmara Municipal do Rio e foi acompanhado por vereadores acusados de participação em milícias. Convidado por vereadores, o deputado Marcello Freixo levou à Câmara o relatório final da CPI, que indiciou 226 pessoas por envolvimento com milícias. Entre elas políticos, como os vereadores Nadinho de Rio das Pedras, do DEM, e Luiz André Deco, do PR, que participaram do encontro.

[3] O juiz Marcello Rubioli, da 1ª Vara Criminal Especializada em Organização Criminosa, em 25.2.2023 condenou o vereador Maurinho do Paiol (PSD) e mais 14 pessoas por integrarem uma organização criminosa voltada para a prática de milícia em bairros de Nilópolis, na Baixada Fluminense.  Além da condenação a cinco anos de prisão, o réu foi afastado do cargo. Maurinho, que era vice-presidente da Câmara de Vereadores de Nilópolis, foi preso em março de 2022 na Operação Hoste.

[4] O ministro do STF Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), prorrogou em 22.1.2024 o inquérito que apura a atuação de milícias digitais nas redes sociais para divulgação de desinformação contra a democracia e às instituições brasileiras durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

[5] O sociólogo Ignacio Cano, um dos maiores especialistas do país no assunto, elencou cinco características básicas de um grupo miliciano: Controle de um território e da população que nele habita por parte de um grupo armado irregular; Caráter coativo desse controle; O ânimo de lucro individual como motivação central; A participação ativa e reconhecida dos agentes do Estado; um discurso de legitimação referido à proteção dos moradores e à instauração de uma ordem. In: COSTA< Flávio. Milícias no Rio de Janeiro: o que são e como agem essas facções criminosas. Disponíveis em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/04/16/milicias-no-rio-de-janeiro-o-que-sao-e-como-agem.htm Acesso em 4.2.2024.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Milicianismo

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