Humanismo contemporâneo e seus desafios
Por Gisele Leite.
Há
quatro grandes desafios impostos ao humanismo[1] contemporâneo, a saber: a
crise ecológica, a crise migratória, os desvios da economia sem regras ou os progressos
tecnológicos que exigem que se redimensione um novo humanismo, se não quisermos
que seja apenas mais um ideal distante e desconectado da realidade concreta.
O
humanismo contemporâneo é herdeiro daquele que a partir do século XIV na
Europa, propusera ao mundo um projeto de emancipação, e continua ligado à ideia
de um ser humano que toma nas mãos o próprio destino e se esforça para
construir uma sociedade mais justa e solidária.
Mas,
as crises todas acima apontadas, o neoliberalismo, ou ainda, as novas
tecnologias que abalam muito fortemente os valores desse humanismo que obrigam
a retornar à questão fundamental: o que é uma vida humana? O que é dignidade
humana?[2]
De
todos os desafios presentes, há aquele que se choca com a promessa central do
humanismo, o de conferir igual dignidade de cada ser humano. E, ainda no século
XVI, conforme observa o historiador Olivier Christin, os humanistas refletiam
sobre essa humanidade comum em plena globalização.
Na
era moderna, a Europa vivenciou grandes migrações, a dos judeus espanhóis, depois
a dos huguenotes franceses, enquanto as grandes descobertas nos apresentaram a
diversidade cultural. E, a esses inúmeros debates, o Iluminismo procurou
responder: somos solidários com todos os seres humanos, mesmo à distância.
No
seu rastro, alguns propõem hoje a necessidade de separar os direitos
fundamentais da humanidade da cidadania; outros propõem estender esta última a
uma cidadania mundial.
A
crise migratória, como prova primária do humanismo, lembra a sua fragilidade
histórica. Como a única relação ética com o outro é a da ajuda e do cuidado,
que fazem referência à mortalidade e à vulnerabilidade de todos, é preciso
admitir que continuamos negociando sobre esses princípio que não deveria estar
sob nenhuma condição.
O
filósofo Crépon que propôs a noção de consenso homicida ao definir a aceitação da
violência. Um humanismo que queira evitar toda forma de violência e, ainda,
propiciar a consciência que deve reconhecer essa falha e, acrescentar que
inventar caminhos de sair da passividade e submissão. Fazem partes disso, a
revolta, a crítica aos discursos niilistas, bem como todo gesto de bondade.
A
noção de que o homem como medida de tudo, apartado do meio ambiente, durou por
muito tempo. E, os efeitos destrutivos do seu modo de vida no planeta afetou a
todos os seres vivos e, evidenciara as lacunas de um humanismo que organizava a
separação das ciências humanas das ciências naturais nos séculos XVI e XVII.
O
aquecimento climático, a dizimação de inúmeras espécies de animais nos obrigou
a romper com uma concepção do humano como simples liberdade, desconectada da
realidade ambiental. A crise ecológica impõe repensar nossos limites e sobre
nossos direitos, assim conforme aduziu Corine Pelluchon em seu livro chamado
Ética da consideração[3].
Essa
reflexão nos abre novo humanismo que engloba as gerações futuras e outros seres
vivos, que insiste na liberdade, mas também na materialidade da existência e na
vulnerabilidade.
Dentro
do pensamento humanista clássico, minha liberdade era limitada pela dos outros;
a lei a garantia. Atualmente, devemos aceitar a autolimitação de nosso consumo para
preservar o mundo. É o caso das sacolas plásticas dos supermercados, que passaram
a ser cobradas para desestimular o uso e, insistir as sacolas retornáveis e
duráveis.
Enfim,
a herança humanista não deve ser rejeitada, mas completada, o ser humano também
faz parte do ambiente, e por isso deve se avaliar os aspectos como o
aquecimento global, crise hídrica, e tantos males que acarretam doenças e alta
mortalidade.
Outra
crise é gerada pelo neoliberalismo que quer promover uma desregulamentação
mundial, e propõe uma brutalidade econômica que questiona o valor e a
finalidade da vida humana.
Do
mesmo modo, procura-se refletir sobre o atual projeto de sociedade. O humanismo
hoje passa por uma vontade política, porque, o Estado deve reafirmar sua
missão, que consiste em organizar a sociedade para justiça e para a paz e, não
para o lucro de alguns.
A
ideologia que leva esquecer o valor dos seres humanos e vivos em geral destrói
o sentido do trabalho tem um nome: economicismo. E, impregna mentalidades.
Portanto, é curial reafirmar o humanismo como projeto de emancipação que
subtraia o ser humano da dominação promovida pela mercantilização. Eis o único
meio de preservar a democracia.
Também
os avanços tecnológicos põem em debate a própria delimitação da pessoa humana
em face do grande investimento dos humanistas que não se preocupam apenas com
as possibilidades da ciência.
Tais
progressos arremessa a liberdade na mesa, o seu conteúdo, e ainda nos faz
questionar como definir os seres humano. Essas são as questões que também são
levantadas pelas tecnologias digitais.
Diante
de novos instrumentos, estamos diante de nova cultura que traz ideal de
compartilhamento e de colaboração. Tal imersão não obrigatoriamente negativa,
desde que mantivermos a capacidade de análise e ação. Não somos apenas
influenciados por essa nova cultura digital, mas também participam ativamente
de sua construção.
Tal
qual no tempo do Iluminismo, a educação volta estar no centro de nossas
principais preocupações, além de levar as pessoas a afirmarem sua autonomia
moral e se humanizarem. Não é apenas saber o mundo que desejamos deixar para
nossos descendentes, mas também, saber que tipos de seres humanos serão esses
descendentes.
Notas:
[1]
O conceito de humanismo é dos mais contraditórios e ambíguos e, hoje parece
estar perdido na Torre de Babel, entre a confusão de múltiplas linguagens, nas
semânticas e nas interpretações que parecem reconstruir e esclarecer novamente
diversas manifestações históricas, pelo menos as mais relevantes.
[2]
A concepção do homem como "grande milagre", como um infinito que,
enquanto microcosmo, reflete em si todas as propriedades do universo ou
macrocosmo. Esta concepção implica que o universo não seja simples matéria
inanimada, como na visão moderna, mas um organismo vivo e sensível a seu modo;
que seja uma espécie de macro-antropos. Esta concepção, para nós que estamos
imersos no modo de pensar moderno, no sistema de verdades comumente aceito
hoje, na epísteme moderna (como diria Foucault), é extremamente difícil de
apreender não obstante haver sido uma verdade indubitável para as figuras mais
importantes do Renascimento, por exemplo Leonardo. No final do Renascimento,
com o nascimento da ciência experimental e o desenvolvimento da filosofia
racionalista e mecanicista, o ser humano começa a ser interpretado como um
fenômeno puramente natural. Isto inicia o declínio do humanismo como visão
filosófica que reivindica uma especificidade ou uma centralidade para o ser
humano no mundo da natureza.