A pesada responsabilidade de Hamlet

Podemos cogitar na responsabilidade penal de Hamlet quando mata o Rei Claudius, seu tio e padrasto? Essa e, outras questões jurídicas tais como a mens legislatoris pode ser alvo de análise nesse precioso texto de William Shakespeare. Como disse, Bloom, Hamlet é superlativo de si mesmo.

Fonte: Gisele Leite

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Um cisco basta a turvar o olho do pensamento”.

William Shakespeare. Hamlet.

O verdadeiro título da peça é “A Trágica história de Hamlet, Príncipes da Dinamarca” que orbita em torno da tensão jurídica, a incerteza sobre a autoria do homicídio do pai de Hamlet.

Teria ou não Claudius, o tio de Hamlet, para ficar com o trono e casar-se com a rainha Gertrudes, mãe de Hamlet? Casso fosse Claudius, o assassino do rei, poderia Hamlet vingar-se e, isso seria uma medida de justiça? Seria uma legítima defesa tardia? Ou mesmo atual? Ou ainda, uma legítima defesa potencial?

A legítima defesa é uma das causas de justificação, discriminantes ou justificantes que são circunstâncias que legitimam a ação do autor que pratica o ilícito penal, causadora de um resultado e a este vinculado pelo nexo causal que se enquadra, perfeitamente, a um tipo penal, o fato típico. É o que consta do artigo 23 do Código Penal brasileiro.

Para se excluir a ilicitude afasta um dos elementos do tripé que compõe o conceito analítico de crime. Para a referida teoria, também chamada teoria tripartite ou tripartida, adotada de modo majoritário na doutrina pátria, crime é constituído por três elementos cumulativos, a saber: fato típico (conduta humana que se amolda, perfeita, material e formalmente a um tipo penal), ilicitude (relação de contrariedade entre a conduta humana praticada e o ordenamento jurídico) e por fim, a culpabilidade que é o juízo de reprovabilidade que recai sobre o autor do fato típico e ilícito.

Assim como uma mesa só se sustenta sozinha se apoiada em no mínimo três pontos, não há crime se este não estiver "apoiado" nos três elementos cumulativos supracitados.

São requisitos cumulativos da legítima defesa

a) Injusta agressão: para se arguir Legítima Defesa pressupõe que o agente esteja repelindo uma injusta agressão, ou seja, uma agressão não amparada pelo Direito; Observação: um animal utilizado como instrumento de ataque também se configura uma injusta agressão, pois o animal é um mero instrumento na mão do agressor.

b) Agressão atual ou iminente: só se legitima também se agressão for presente ou preste a acontecer. Não há legítima defesa de agressão futura;

c) Proteção de direito próprio ou alheio: admite-se Legítima Defesa para salvaguardar direito do agente ou de outrem. Qualquer bem jurídico penalmente tutelado poderá ser resguardado desde que presente os demais requisitos cumulativos da sua configuração;

d) Uso moderado dos meios necessários: na busca de repelir a injusta agressão, o agente deve buscar entre os meios disponíveis no caso concreto aquele que causará menor dano ao bem jurídico alheio;

e) Conhecimento da situação justificante: trata-se um requisito incluído pela Doutrina, seguindo a teoria finalista. Significa que o agente deve ter a consciência de estar agindo para proteger um bem jurídico próprio ou alheio de uma injusta agressão atual ou iminente.

Convém, enumerar as espécies de legítima defesa:

1) Legítima defesa putativa ou Imaginária (admitida pelo Direito brasileiro);

Legítima defesa putativa[1] ou Imaginária ocorre quando a situação que enseja reação a injusta agressão é falsa, é imaginária e se passa apenas na imaginação do agente;

2) Legítima defesa própria ou de terceiro: (admitida pelo Direito brasileiro);

3) Legítima defesa subjetiva: (admitida pelo Direito brasileiro);

4) Legítima defesa sucessiva: (admitida pelo Direito brasileiro);

5)Legítima defesa recíproca ou simultânea (Não admitida pelo Direito brasileiro).

Em tempo, é conveniente ressaltar que a legítima defesa recíproca ou simultânea não é admitida pelo direito pátrio, não sendo possível que duas pessoas se encontrarem ao mesmo tempo em legítima defesa real. (In: ASSUMPÇÃO. Vinicius; ARAÚJO. Fábio Roque. Direito Penal - Resumos para Concursos. 2ª edição. Salvador: Editora JusPodium 2016).

Contudo, caso Claudius fosse inocente, ao matá-lo, o protagonista seria regicida, o que é crime imperdoável e grave. E, ainda pior, pois mataria um parente próximo, pois Claudius era seu tio, irmão de seu pai. O que representaria um agravante do delito. Tratava-se de um impasse. Porém, essa é apenas uma das formas de ler e interpretar a peça de William Shakespeare.

Harold Bloom, por exemplo, um dos grandes estudiosos das obras do bardo, reconheceu que enquanto leitores jamais saberemos ao certo como ler Hamlet. Pois a cada leitura, nos confrontamos com uma nova peça.

Importante destacar que Hamlet foi a primeira peça escrita depois da morte do pai do autor, John Shakespeare, em 1601. Ao longo do texto, percebe-se as inúmeras inquietações filosóficas, o sentimento de perda do filho do dramaturgo, o quase homônimo Hamnet falecido em 1597.

O protagonista vivencia um constante luto, permanecendo soturno e melancólico, tanto que se trajava invariavelmente de preto[2].

A respeito da melancolia interessante a referência do personagem Jacques, de “Como Gostas”: “Não possuo a melancolia do sábio, que é emulação, nem a do músico, que é fantástica, nem do cortesão, que é simplesmente orgulho, nem a do soldado, que é ambiciosa, nem a do jurista, que é política, nem a das mulheres que não passa de faceirice, nem a dos namorados que abrange todas elas (…)”.

A peça tem início como uma pergunta: “Quem vem lá?” Dois soldados se encontram. Um quer saber quem é o outro. É noite (o breu não permite enxergar) e está frio (o que requer para identificação que se descubra). Evidente que a gélida Dinamarca, quando um exclama seu apoio ao rei, o outro logo percebe que ambos estão do mesmo lado. Porém, se há um lado, deve haver, naturalmente, o outro contrário. Os tempos são sombrios e, a plateia está totalmente magnetizada.

Os dois soldados em guarda estão prestes a ver um espectro, o fantasma do Rei morto. O fio condutor de toda peça teatral é complexo. Apesar de que a história de Hamlet era razoavelmente conhecida na época, mas havia outras versões com o mesmo enredo.

É uma peça extensa e, certamente a mais longa escrita pelo bardo, há profundos e misteriosos solilóquios, há verdadeira ourivesaria verbal e, a história apesar de singela nos prende aos detalhes intermináveis.

A maioria das peças do autor teve por base uma história preexistente, conforme esclareceu Ronald Peacock que aduziu: “E sabemos que grandes gênios, como Shakespeare, Bach ou Mozart, geralmente se mostram bem mais na elaboração do que na criação”. (In: A Arte do Drama. São Paulo: Realizações Editora, 2011, p.144).

Endossando a observação de Peacock, Ralph Wando Emerson[3] coloca Shakespeare entre os grandes homens da civilização, inicia a tratar do dramaturgo reconhecendo in litteris: “Os grandes homens se distinguem mais por sua amplitude e extensão, do que pela originalidade”. (In: Homens representativos. Rio de Janeiro: Imago, p.131).

Hamlet desconfia de seu tio que matou seu pai e, ainda, tomou-lhe a rainha, a mãe dele. Aliás, o perfil da Rainha Gertrudes[4] é complexo e instigante.

Em constante angústia, Hamlet enlouquece ou simula estar louco ou talvez, um pouco de ambos.

Hamlet externa sua grande depressão e indagando por Gertrudes, sua mãe responde: “Parece, minha senhora? Não é! Não sei “parecer”! Não é somente meu manto negro, bondosa mãe, nem meus costumeiros trajes de luto, nem os vaporosos suspiros de um peito ofegante (…)”

Realmente, tudo isto é aparência, pois são ações que podem ser representadas pelo homem; porém, o que dentro de mim sinto, supera todas as exterioridades que nada mais são que atavios e as galas da dor.

Hamlet indica que seu estado de espírito ainda supera a sua aparência. Ao fim, Hamlet não é o que parece, é mais do que parece. Nada fácil entender Hamlet, por vezes, Hamlet é o superlativo dele próprio.

Na obra de Leandro Karnal, “O que aprendi com Hamlet”, os leitores são convidados a um passeio pela própria consciência, revela as lições deixadas pela principal peça teatral numa combinação entre a experiência de um homem do século XVI e outro do século XXI.

Karnal refletiu sobre as lições que seu protagonista, o príncipe melancólico da Dinamarca, deixou e, mesmo nesta era de selfies felizes, continua a deixar. E, com a colaboração de Valderez Carneiro da Silva, tradutora e especialista em Shakespeare, Karnal cruza as passagens que se traduz em espécie de curadoria da vida.

Confessa Karnal que aprendeu com Hamlet o que ele falou e ensinou, e até o que nunca imaginou ter dito e, aprendeu a ser o diálogo do gênio do passado com o cotidiano tosco e linear do presente. “Como o meu príncipe é maior do que todo meu fogo-fátuo pretensioso, imagino não o antídoto do orgulho, mas por qual motivo incorporamos humildade ao discurso ou a qual objetivo serve a exibição das plumas do meu pavão narcísico”.

“Observo o observador, como Hamlet me ensinou. Tento não me diluir no momento e criar um mínimo de afastamento para não virar um Claudius ou um Polônio. Por incrível que pareça, por vezes tenho de ser ainda mais consciente para não virar um Hamlet mesmo, que é a parte mais complicada para aprender com o melancólico nobre: evitá-lo. Hamlet ensina sendo e ensina evitando ser”. A dualidade e os paradoxos em Hamlet nos aproxima dele e nos faz refletir sobre a natureza humana.

Porém, em outras ocasiões o protagonista mede as palavras, e afirma: “devo refrear minha língua”. Suas palavras são medidas e não informam os seus propósitos. O coração, isto é, a emoção deve ser controlada, para que a razão prevaleça.

Consultando o “Vocabulário de Hamlet”, Mário Amora Ramos, disponível em: https://shakespearebrasileiro.org/o-vocabulario-de-hamlet-mario-amora-ramos/, destaco as seguintes palavras: 

Cap-à-pie

Este advérbio de modo, derivado do francês, significa “da cabeça aos pés”. Horatio diz a Hamlet que o fantasma estava armado “da cabeça aos pés” (cap-à-pie) (1.2). Em outras palavras, o fantasma vestia uma armadura com todos os seus acessórios.

Chameleon

A palavra “camaleão” é de origem grega e significa “leão da terra”. Para Hamlet, o ar é o “prato do camaleão” (chameleon’s dish) (3.2), com base na antiga suposição de que ele se alimentava de ar. Esta ideia aparece também na peça “Dois Cavalheiros de Verona” (Two Gentlemen of Verona), nesta fala: “embora o camaleão Amor viva de ar, eu preciso de meus víveres para me sustentar” (though the chameleon Love can feed on air, I am one that am nourished by my victuals) (2, 1).

Contagion

Hamlet começa o sexto solilóquio dizendo que “esta é a hora dos feitiços noturnos, quando os cemitérios bocejam e o próprio inferno sopra seu veneno sobre o mundo!” (‘Tis now the very witching time of night, / When churchyards yawn, and hell itself breaths out/ Contagion to this world) (3.2). A palavra não tem aqui o significado usual de “contágio”, mas sim o sentido arcaico de “veneno” (poison). Em outro exemplo, Laertes diz ao rei: “vou mergulhar a ponta de minha espada neste veneno” (I’ll touch my point/ With this contagion) (4.7).

Dead-men’s fingers

A rainha descreve Ofélia “com suas estranhas guirlandas/ de (…) longas flores púrpuras, / Às quais os pastores lascivos dão um nome mais grosseiro, / Que nossas donzelas chamam de dedos-de-defunto” (There with fantastic garlands did she come/ (…) and long purples, / That liberal shepherds give a grosser name, / But our cold maids do dead-men’s fingers) (4.7). As “longas flores púrpuras” são orquídeas também conhecidas como dog’s cullions. Cabe lembrar que “orquídea” vem do grego orchis (testículo).

Disaster

A etimologia de desastre (disaster), do latim dis + astrum, se refere a alguma coisa fora da ordem natural dos astros, simbolizando assim a possibilidade de algum infortúnio. É o que Horatio quer dizer quando se refere a “sinais ameaçadores no sol” (disasters in the sun) (1.1).

Discourse

Trata-se de um termo arcaico para “inteligência” ou “racionalidade”. No seu sétimo solilóquio Hamlet diz que “Certamente aquele que nos criou com uma vasta inteligência, capaz de pensar no passado e no futuro, não nos deu esta capacidade e a razão divina para embolorar por falta de uso” (Sure he that made us with such large discourse, / Looking before and after, gave us not/ That capability and godlike reason/ To fust in us unus’d) (4.4).

In faith

Esta expressão é apenas um reforço, significando “na verdade” ou “de fato”. Pode ser também um juramento. Quando Hamlet pediu aos seus companheiros que não revelassem que viram o fantasma, Horatio respondeu: “por minha fé, senhor, que não o vi” (In faith, / My lord, not I) (1.5).

Incense.

Além do sentido usual de “incensar”, o verbo pode significar “irritar” ou “irar”, talvez pela prática de usar fumaça para expulsar abelhas, para colher o mel.

Laertes invade o palácio e o rei lhe pergunta: “Por que você está tão irritado?” (Why thou art thus incens’d?) (4.5). Hamlet, em conversa com Horatio, se refere às “pontas iradas (das espadas) de poderosos adversários” (incensed points/ Of mighty opposites) (5.2). Mais adiante, o rei ordena, referindo-se a Hamlet e Laertes, que lutam: “Separai-os, estão fora de si” (Part them, they are incens’d) (5.2).

O mais famoso monólogo de Hamlet é talvez o mais célebre de toda a dramaturgia ocidental. In litteris: “Ser ou não ser, eis a questão”! “Que é mais nobre para o espírito: sofrer os dardos e as setas, de um ultrajante fardo, ou tomar-lhe armas contra um mar de calamidades para pôr-lhes fim, resistindo. Morrer… dormir; nada mais!”

E, “com o sono, dizem, terminamos o pesar do coração e os mil naturais conflitos que constituem a herança da carne! Que fim poderia ser mais devotamente desejado? Morrer … Dormir! Dormir! Talvez sonhar!

Sim, eis aí a dificuldade! Porque é forçoso que nos detenhamos a considerar que sonhos possam sobrevir, durante o sono de morte, quando nos tenhamos liberado do torvelinho da vida. Aí está a reflexão que torna uma calamidade a vida assim tão longa! (…)”.

Nessa reflexão profunda, antecipando até o conceito de inconsciente[5], o bardo arrola as dificuldades da vida, a injúria do opressor a afronta do soberbo, as angústias do amor desprezado, a morosidade, da aplicação da lei e as insolências do poder.

Todos os males, especialmente, de natureza jurídica que atingem a humanidade. Afinal, temos escolha de os enfrentar? Temos o medo de os encarar? Temos coragem de os enfrenar? Por que?

Hamlet antecipa o racionalismo e conforme a narrativa de Descartes, duvida de tudo que nos cerca e, mergulhamos numa introspecção em busca da verdade, do ponto do absoluto de Arquimedes, a fonte da certeza e, em última instância, chegamos à nossa própria consciência.

O que confirma: - Penso, logo, existo[6]. Tudo o mais pode ser posto em dúvida. A única certeza é minha consciência de minha própria existência. Trata-se da certeza racionalista.

De fato, Hamlet é um “ser ou não ser” é representante do grande dilema humano. Ceder ou resistir? A afirmação ou o engajamento. O bardo trata auspiciosamente sobre a responsabilidade.

Ser ou não ser é exatamente isso: existir ou não existir e, em última instância, viver ou morrer. O protagonista do drama de Shakespeare continua: "Será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes fim? Morrer… dormir".

A vida é cheia de tormentos e sofrimentos, e a dúvida de Hamlet é se será melhor aceitar a existência com a sua dor inerente ou acabar com a vida.

Hamlet continua o seu questionamento. Se a vida é um constante sofrimento, a morte parece ser a solução, porém a incerteza da morte supera os sofrimentos da vida. "Ser ou não ser" acabou por extrapolar o seu contexto e se tornou um questionamento existencial amplo. Para além da vida ou da morte, a frase se tornou uma pergunta sobre a própria existência.

Buscando desmascarar o rei Claudius, Hamlet contrata uma trupe de artista que encena um assassinato de seu pai. E, Hamlet fica a observar atentamente a reação do tio e da mãe para constatar a suas culpas.

Durante a encenação há uma instigante frase que o bardo coloca na fala do rei da encenação contratada. “Somos donos de nossos pensamentos, seus fins não nos pertencem.” (Ato III, Cena 2).

Pari passu, os atos jurídicos valem mais por suas consequências do que pela intenção de quem os criou. Tanto que o legislador, depois que publicada a lei, não tem qualquer ingerência sobre a extensão de sua incidência ou aplicação. A lei tem vida própria, desgarrada do seu criador, o legislador

A mens legislatoris, o sentido pretendido pelo legislador[7], tem importância reduzida e cede à força da mens legis, ou seja, à vontade e à inteligência da própria lei.

Segundo Lenio Luiz Streck, literalmente:

“As alterações que vieram com a Lei n.º 13.964/2019[8] (conhecido como “Pacote anticrime”) são produto da análise dos projetos de lei n.º 10.372/2019, 10.373/2019 e 882/2019, este último proposto pelo Executivo ainda quando Moro era Ministro da Justiça. Por ordem da Presidência da Câmara dos Deputados, em 14/03/2019, instituiu-se um grupo de trabalho coordenado pela Deputada Margarete Coelho e de relatoria do Deputado Capitão Augusto, com o escopo de analisar tais projetos e promover exclusões e alterações”.

Prossegue Streck:

“Todo esse arcabouço fático, portanto, conduz a uma conclusão lógica: onde se lê que “o juiz, de ofício, deverá reanalisar a prisão preventiva a cada 90 (noventa) dias”; deve-se ler que o juiz, de ofício, deverá reanalisar a prisão preventiva a cada 90 (noventa) dias. A intenção do Pacote Anticrime, nesse sentido, foi justamente na linha de que a prisão deve ser “reconfirmada” a cada 90 (noventa) dias. Ou seja, aquilo que está disposto no artigo — que, por si só, já é muitíssimo claro — é, de fato, aquilo que está lá escrito! Enfim, o juiz, em qualquer fase do processo, deve revisar a prisão preventiva a cada 90 (noventa) dias”.

Voltando, ao contexto da peça ...

Conversando com Polônio (ou Polonius)[9], o conselheiro do Rei Claudius e pai de Ophelia, cortejada por Hamlet, a irmã de Laertes, o príncipe expressa seu padrão de justiça.

Segundo Agnes Heller, o príncipe da Dinamarca atingiu o conceito ético de justiça. “Se fosses tratar todos de acordo com o seu próprio merecimento, quem escaparia do chicote? Tratai-os segundo a sua própria honra e dignidade e, assim, quanto menos mereçam, tanto maior mérito haverá em sua liberalidade”. (Ato II, Cena 2).

A justiça consiste em tratar o próximo com generosidade, sendo ainda mais valioso ter essa grandeza para os mais necessitados. Hamlet supera o modelo aristotélico de igualdades[10] passa por Ulpiano, para quem a justiça está a dar a cada um, o que é seu, para galgar conceito mais altruísta de justiça. Afinal, a bondade é a medida de justiça segundo o modelo cristão.

O Direito é a vida (ubi societas ibi jus), é tópico (depende do tempo e do lugar), não é utópico (em lugar nenhum e assim onipresente) como o ideal da Justiça.

É preciso lembrar que Hamlet está inserida como peça dentro da literatura conhecida como tragédia de vingança[11]. Sendo óbvio que o protagonista transcenderá qualquer gênero dramático e literário que possamos utilizar para classificá-la. As tragédias de vingança, possuem, geralmente, alguns características muito peculiares.

Em primeiro lugar, temos um crime que requer sempre a figura do vingador, o crime ainda precisa ser esclarecido. E, o vingador como protagonista traduz o ritmo da história, principalmente por conta da demora em perpetrar a vingança[12].

Assim, o vingador exercerá sua ação em face da injustiça feita por um personagem que é o vilão. De alguma forma, todo enredo procura estabelecer um equilíbrio de ofensas, mas propiciar a justiça em um ambiente que, justamente, por causa do crime[13] se mostra seriamente corrompido. E, as questões privadas, familiares que se envolvem na tragédia, se mostram, simultaneamente, questões públicas, pois os personagens do enredo são nobres, reis e príncipes que eram representantes do Estado[14]. O que significa afirmar que a justiça privada estará, de alguma forma, imbricada com a justiça pública[15].

A percepção que, diferentemente das tragédias clássicas, nessa tragédia que funda a mentalidade renascentista, o homem se vê como centro das coisas. Para essa nova possibilidade de pensamento, destituída do fatalismo determinista clássico, o homem-herói talvez possa mudar seu próprio destino.

Daí a dor de Hamlet. Gostaria que sua consciência não o perturbasse a ponto de relativizar toda forma de ação. Que todas as interferências do homem consciente no mundo da vida não se tornassem irrelevantes para o mundo da linguagem. Hamlet gostaria de não ter percebido que o mundo da vida é o mundo da linguagem.

Em verdade, Hamlet se distancia dos heróis clássicos gregos. Se, por um viés, Édipo agoniza por procurar um culpado que ele é próprio, fundando a autoconsciência na cultura ocidental da forma mais dolorosa possível, por outro viés, não somos levados a pensar, em nenhuma momento, que aquela não tenha sido a história destinada para esse personagem.

Que seu desfecho não tenha sido de acordo com a vontade dos deus, que a história de sua vida, apesar de angustiante, não tenha sido a mais apropriada. Isso porque Édipo não questiona a essência da natureza das coisas, é de um tempo sem filosofia. Hamlet, a seu turno, no entanto, parece ser herdeiro direto dessa culpa ancestral, indizível que os heróis devem carregar, não aceita as coisas como essas se lhe apresentam.

Seus questionamentos são por demais grandiosos para poder se ver tranquilamente em face da ausência completa de respostas satisfatórias. A verdade é que o domínio da palavra em Hamlet, é sua própria armadilha. Pois, em face da insuficiência das respostas ao seus questionamentos e, porque identifica o mundo da vida com o mundo da linguagem, que Hamlet consegue apreender o absurdo de nossa própria existência, a incompletude no estado das coisas.

Aí, atingimos o ponto, talvez, a prisão de Hamlet não seja tanto os limites de Elsinore, ou o fato de ser o protagonista de um drama que não lhe seja suficiente. Talvez, a prisão de Hamlet seja a da linguagem.

Hamlet é, obviamente, um protagonista que pensa, e, por isso mesmo, hesita. Identificamos como Nietzsche colocou o problema, in verbis:

      "O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão − tal é o ensinamento de Hamlet e não aquela sabedoria barata de João, o sonhador, que devido ao excesso de reflexão, como se fosse por causa de uma demasia de possibilidades, nunca chega à ação, não é o refletir, não, mas é o verdadeiro conhecimento, o relance interior na horrenda verdade, que sobrepesa todo e qualquer motivo que possa impelir à atuação, quer em Hamlet quer no homem dionisíaco". (In: NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo :Companhia das Letras, 1992, p. 56).

Hamlet tem a chance de matar o tio que crê ser um assassino e um usurpador. Hamlet não consegue, pois, sua natureza o impede. Reconhece-se como sendo medianamente honesto. (Ato III, Cena 1).

Adiante, acreditando que atingiu o Rei Claudius, mata Polônio. E, Hamlet se ressente, revelando a sua noção de responsabilidade. O carismático protagonista se desculpa com Laertes, por ser filho de Polônio, a quem matara por engano, pois acreditava ter atingido o seu tio.

Defendeu o protagonista que não pode ser responsabilizado pelo ato devido estar fora de si. Afirmou: “Não fui eu, mas a loucura. Alegou que a loucura que o apossou. Durante a peça, sabemos ou confirmamos que o Rei Claudius realmente matou o irmão. O único monólogo, o Rei Claudius reflete sobre o mal violento que cometeu, o crime de Caim[16]. Tem ciência da gravidade de seu ilícito, pois matou o irmão para ficar com o trono e a rainha.

Contudo, Claudius, reflete in litteris: “Pode-se ter o perdão guardando a ofensa?” Claudius não deseja renunciar a tudo que conquistou com seu crime grave. Não há perdão para ele e, seu remorso é menor a ambição.

Analisando as responsabilidades, Ophelia, a paixão de Hamlet, jamais concretizada, quando profere uma frase: “Não sabemos o que somos, mas não o que seremos”

Afinal, seguir a máxima socrática, conhecer a si mesmo, apenas não basta a consciência sobre o que somos, não nos protege plenamente do que seremos capazes amanhã.

A interdição de Hamlet poderia ter impedido a desgraça trágica e, o término da peça teatral com a morte de todos os principais personagens da trama. A rainha-mãe Gertrudes, o tio Claudius e o próprio Hamlet morrem. A rainha bebe o veneno destinado a Hamlet e, o protagonista é ferido com a espada de Laertes contendo veneno. E, o resto é silêncio (…)

A Dinamarca é invadida e, o reino é perdido. Na peça, há o contraponto entre o rei e o homem. O bardo indica que a condição humana sempre prevalece. As tragédias escritas por Shakespeare eram magistralmente estruturadas, iniciavam-se com um conflito e encerravam-se com uma catástrofe;

E, o magnífico recado de Hamlet, ao final: “A concisão é a alma da sabedoria”. Enfim, em sua derradeira frase, afirma que o resto é silêncio. Sim, depois de ter dito tudo que é possível dizer, Hamlet não precisa dizer mais nada, porque agora, o resto é silêncio[17].

Enfim, o protagonista parece dialogar conosco como se as dores que nós inventamos, fosse o disfarce de uma grande dor maior, a que nem conseguimos nominar, por isso valorizamos as dores laterais e, por isso, estabelecemos que estejamos bem ou não naquele dia. Assim, imerso em profundo silêncio semântico, sintetizamos na morte, o que fomos um dia.

Referências

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Notas:

[1]      A legítima defesa putativa é espécie de discriminante putativa ou imaginária disciplinada no artigo 20, § 1º do Código Penal brasileiro que isenta de pena se o erro for justificável, invencível ou inevitável, isto é, aquele que o homem medius também erraria. Porém, caso seja verificado no caso concreto, que com um pouco mais de atenção poderia ser evitado, o infrator responderá pelo crime na modalidade culposa, se o tipo penal comportar tal modalidade,

[2]   Hamlet foi citado por Freud dezenas de vezes ao longo de sua obra para exemplificar uma situação edípica particularmente intensa e mal resolvida. Depois disso, foi objeto de diversas leituras, sendo as de Ernest Jones (1954) e Lacan (1989) as mais conhecidas.

[3]     Ralph Waldo Emerson foi um famoso escritor, filósofo e poeta estadunidense. Emerson fez seus estudos em Harvard para se tornar, como seu pai, ministro religioso. Foi pastor em Boston, mas interrompeu essa atividade por divergências doutrinárias sobre a eucaristia. Uma frase é bem ilustrativa sobre o autor: “As pessoas inteligentes têm um direito sobre as ignorantes: o direito a instruí-las.”

[4]    No primeiro solilóquio, bem no início da peça, Hamlet acha-se indignado com o segundo casamento de sua mãe, embora ainda não tenha descoberto que o pai fora assassinado por Claudius Logo primeiro solilóquio, Hamlet dirige os mais veementes ataques à sua mãe e ao odiado tio, ao mesmo tempo em que refaz o quadro paradisíaco e hiperidealizado dos pais da primeira infância: a pureza e elevação desta primeira união,  beleza do casal parental destruída pela súbita intrusão de fatores perturbadores como a sexualidade, o incesto e a morte. Hamlet investe contra a “sexualidade incontrolável da mãe”, transformando-a em um ser abjeto, muito abaixo de uma prostituta.

[5] Os psicanalistas insistem infinitamente em analisar Shakespeare ou os personagens de sua obra. Trata-se de um exercício interessante e imaginativo, sendo mesmo possível uma leitura Shakespeare de Freud.  No fundo o bardo, era um psicólogo moral e Freud fundou a psicanálise. E, Bloom ironizou que Hamlet não tinha complexo de Édipo, mas Freud sem dúvida tinha complexo de Hamlet e talvez a psicanálise seja o complexo de Shakespeare.

[6] É frase icônica dita pelo filósofo francês René Descartes, que marcou a visão do movimento iluminista, colocando a razão humana como única forma de existência. No entanto, Descartes encontrou algo que não poderia duvidar: da dúvida.  Frase original: "Puisque je doute, je pense; puisque je pense, j'existe".

[7]      Note-se: o legislador, dispondo genérica e abstratamente sobre o futuro, tem a presunção de propor soluções que vinculam a resolução dos casos concretos, sem que, evidentemente, possam prever satisfatoriamente toda a multidão de casos que possam ocorrer. A interpretação que interessa ao Direito é uma atividade voltada para reconhecer e reconstruir o significado de atribuir, na órbita de uma ordem jurídica, à forma representativa que seja fonte de valoração jurídica, ou que constitua objeto desta valoração. Objeto da valoração tanto pode ser uma declaração, ou um comportamento que tenha relevância para a norma ou preceito jurídico em vigor.

[8]     Com o Pacote Anticrime, deixa de ser hediondo apenas o roubo com resultado morte, e passa a compor o rol destes crimes o roubo que restringe a liberdade da vítima; quando emprega arma de fogo, arma de fogo de uso proibido ou restrito; quando ocorre lesão corporal grave ou gravíssima; e o resultado morte

[9]     O puxa-saco vive bem como rêmora. Não precisa de luz própria. Mas nós precisamos desse parasita como ar para viver. Deixamos, em nosso delírio envaidecido, de pensar por nós mesmos. Transformamos o bajulador num espelho que só mostra o que queremos ver. Nossos defeitos são ocultados, nossos vícios minimizados e nossos feitos e virtudes são ampliados, criando uma imagem distorcida, com fundo de verdade.

[10]   Pensando pelo trajeto histórico de construção dos direitos humanos, é possível observar que a primeira fase de proteção desses direitos foi marcada por uma ideia de uma proteção geral, que expressava um certo temor da diferença. É nesse contexto que se afirmar uma igualdade formal, sob o lema de que “todos são iguais perante a lei”. Encarando pela perspectiva jurídica (e também sociológica), o princípio esteve diretamente relacionado ao estudo da Ciência do Direito desde os tempos mais longínquos até a atualidade a fim de debater sobre sua efetiva aplicação nas diferentes sociedades. Nessa última perspectiva, ao longo dos anos surgiu a preocupação em estruturar o que é preciso na prática para haver igualdade entre diferentes pessoas.

[11]     A Lei do Talião tem sua origem no termo latino Talis que significa tal qual. O termo, Olho por olho, dente por dente, resume bem a base legal da Lei do Talião, pois mostra valor de medida proporcional da lesão e pena. A vingança pública é reflexo direto da evolução política e social. A sociedade agora tem uma estrutura mais complexa do que as fases anteriores, o Poder Público é central na vida da população que detém para si como meio de se manter no poder o ius puniendi.  Cada cidadão fica obrigado a se sujeitar a tutela Jurisdicional Estatal para ter a garantia da justiça. Apesar do Estado intermediar a relação jurídico penal das partes, a sanção ainda mantém as características das outras demais fases, mostrando-se muitas vezes cruel e intimidatória, ainda havia a presença da religião e do misticismo e as penas variavam desde fogueira, esquartejamento até a amputação e castigos corporais

[12] As fases de vingança possuem elementos comuns, trata-se da violação grave de Direitos fundamentais. O homem em tais períodos é a depender da civilização que se encontra, não mais que um animal doméstico. Muito embora algumas dessas fases tivesse grande aceitação popular ou representasse um certo avanço social para sua época, no contexto geral significou muito mais perdas do que ganhos.

[13] "(...) A vingança não pode ser considerada sempre motivo torpe (tudo depende de cada caso concreto). Quem por vingança mata o estuprador da filha não comete o crime por motivo torpe (ao contrário, relevante valor moral)." (GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Penal: parte geral. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 521).

[14]  A aplicação universalizada da lei (de que “todos são iguais” perante ela) pode acarretar injustiças até hoje, como ocorreu durante a história. É por esse motivo que se tornou insuficiente tratar o indivíduo apenas pela igualdade formal/universalizada e se fez necessário especificar quem é o sujeito de direito, quem é aquele indivíduo bem como suas peculiaridades e particularidades. O conceito de equidade aparece na Grécia Antiga, nos escritos do filósofo Aristóteles. Para ele, o conceito de equidade está interligado ao conceito de justiça: […] qualidade que nos permite dizer que uma pessoa está predisposta a fazer, por sua própria escolha, aquilo que é justo, e, quando se trata de repartir alguma coisa entre si mesma e a outra pessoa, ou entre duas pessoas, está disposta a não dar demais a si mesma e muito pouco à outra pessoa do que é nocivo, e sim dar a cada pessoa o que é proporcionalmente igual, agindo de maneira idêntica em relação a duas outras pessoas. A justiça, por outro lado, está relacionada identicamente com o injusto, que é excesso e falta, contrário à proporcionalidade, do útil ou do nocivo. […] No ato injusto, ter muito pouco é ser tratado injustamente, e ter demais é agir injustamente (ARISTÓTELES, 1996, p. 101). Isso significa que a equidade e justiça, em uma visão geral aristotélica, representam uma ideia similar. No entanto, o equitativo é considerado o mais justo, não de acordo somente com a lei, e sim como uma correção da justiça legal que não deixará lacuna sociais – pois irá prever particularidades e diferenças não observadas pelo tratamento generalizado da lei. In: ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo. Nova Cultural: 1996.

[15]    Um outro aspecto interessante é perceber como uma vingança acaba por também acionar outra vingança. Quando Hamlet mata Polônio e, é responsável, ao que tudo indica, pela loucura e, posterior suicídio de Ophelia. Assim, Laertes sente-se no direito de vingar o pai e a irmã, então duplamente legitimado a executar sua vingança.

[16] Caim mata Abel. Tudo começou depois de uma situação que gerou ciúme, quando Deus reconheceu o presente oferecido por Abel e não deu muito valor ao que foi ofertado por Caim. ... E disse Caim a Abel, seu irmão, e sucedeu que, estando eles no campo, levantou-se Caim contra Abel, seu irmão, e o matou. Deus sentenciou Caim ao banimento, condenado a vagar sozinho pelo mundo. Se este famoso crime fosse cometido nos dia atuais, pela legislação brasileira, Caim seria julgado e acusado de homicídio qualificado, em razão de motivo fútil e mediante emboscada, podendo a pena chegar a 30 (trinta) anos de prisão

[17] Quando todo esse barulho que faço para não me enfrentar, quando eu decidir acabar com toda a distração ao meu redor, quando eu parar de me anestesiar e resolver enfim olhar para dentro de si. Ao perder a linguagem junto com a vida, o homem perde a essência humana. É o fim da busca pelo ser, mas não a resposta definitiva. Esta mesma, talvez, nunca seja achada. Como diz o Príncipe em sua última fala, o resto é silêncio. E o silêncio é o calar da linguagem.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Legítima Defesa Excludente de Criminalidade Tragédia Direito Penal Direitos Fundamentais

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