Extinção da Punibilidade pela Morte do Agente: verdadeiro “Enigma da Esfinge”, que ainda desafia os juízos e tribunais

O texto trata de uma problemática presente na vida dos operadores do direito, especialmente daqueles que militam como advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, quando atuam na esfera criminal. Busca-se neste estudo uma exegese mais razoável e próxima da realidade do disposto no art. 107, I do Código Penal e dos art. 61, caput e 62 do Código de Processo Penal, bem assim do art. 5º, XLV e LVII da Constituição e do art. 367, IV do CPP. Na aplicação da lei penal, quando o acusado morre no curso do processo, o que se tem feito é extinguir a punibilidade pela “morte do agente”, podendo o juiz agir de ofício, à vista da certidão de óbito, podendo fazê-lo em “qualquer fase do processo”, ou mesmo antes dele, na fase do inquérito policial. No particular, o que se sustenta é que, tendo a família do morto, na pessoa do cônjuge ou companheiro, descendente, ascendente ou irmão, interesse na sua absolvição, em vez da extinção da punibilidade, possa intervir no processo, na qualidade de condutor do processo, para que se proceda à instrução criminal, e venha a ser proferida a sentença, que se espera seja absolutória. Se, contudo, for de condenação, aí sim tem lugar a extinção da punibilidade pela morte do agente em face da impossibilidade de execução da sentença. Sustenta-se, também, a hipótese de dever o juiz declarar a absolvição sumária do acusado, e, em sendo absolvido, extinguir a punibilidade em face da sua morte, em razão da presunção de inocência consagrado pela Constituição. Isso, se se entender não ser possível o processo prosseguir em face da morte do acusado. Sustenta-se também ser viável uma ação declaratória da inocência do morto no juízo cível, para que lá os legitimados (cônjuge ou companheiro, descendentes ou ascendentes) comprovem os fundamentos da defesa que vinham sustentando no processo penal extinto, como, por exemplo, não haver prova da materialidade do crime ou não ter sido o morto o seu autor. Tudo isso é feito mediante a exposição de vetores que poderão ser usados como resposta ao “enigma da esfinge”, na solução das diversas questões postas, que, até hoje, não tiveram uma solução satisfatória nos juízos e tribunais.

Fonte: Gisele Leite e J. E. Carreira Alvim

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1. Enfrentamento de uma questão jurídica


Registra o coautor deste estudo, Carreira Alvim, que, como integrante do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, teve a oportunidade de enfrentar este tema, “extinção da punibilidade pela morte do agente”, por não concordar com a sua decretação pela simples morte do acusado e o consequente arquivamento precoce do processo, antes da sentença de mérito.


Nesses casos, alertava aos seus pares que tal solução era um brinde ao órgão acusador (o Ministério Público), moldado nesse perfil, que, tendo o ônus de provar a acusação contida na denúncia, se livrava dele, por conta do arquivamento precoce do processo.


Com essa liberação do ônus de provar a acusação, de avaliar provas ilícitas, ilegítimas e até meramente circunstanciais deixariam de sofrer o devido crivo, que, provavelmente, acarretaria a absolvição do acusado.  Com a morte, a importância fática da imputação criminal desaparece, abandonando vestígios para sua família.


Somente quem já sofreu uma imputação injuriosa, difamante ou caluniosa e sem julgamento final (de mérito), pode avaliar as repercussões jurídicas e psicológicas de arquivamento precoce por conta do mero falecimento do acusado.


No particular, relata ele que nunca foi ouvido, porque a mente do julgador, quase sem exceção, é dominada por uma equivocada exegese doutrinária e jurisprudencial que nunca percebeu que esse não deveria ser o “Norte” de uma interpretação mais justa e conforme o verdadeiro ideal de justiça, não só à pessoa do morto, como, sobretudo e principalmente, à sua família.


Questiona-se como ficam a honra e a imagem do morto? E de sua família? Há, efetivamente, a sobrevida dos direitos da personalidade. É preciso entender, adequadamente, o Direito pelo sistema regra-exceção, o que implica trazer soluções que não se atenham ao contexto ou aos contornos de um simples caso concreto específico.  


É evidente, porque não crassa, a falência do positivismo científico, que é sinalizada por diversas incoerências sistêmicas, fazendo com que os juristas se afastem dos verdadeiros ideais de outrora, produzindo tais incoerências. Portanto, não cabe interpretar os direitos subjetivos como interesses de mera carga utilitarista na interpretação do Direito que de Jhering até Alexy se faz tão nítida[1].


2. Lei do menor esforço na interpretação da lei


Na prática, o que sempre norteou a jurisprudência, numa interpretação às avessas de preceitos legais pertinentes, especialmente do Código Penal (art. 107, I) e do Código de Processo Penal (arts. 61 e 62), foi a lei do menor esforço, pois é mais fácil e cômodo extinguir um processo, precocemente, por conta da morte do agente (rectius, acusado), do que ter de conduzi-lo até a sentença, para, só então, julgar procedente a denúncia, e decretar, nessa ocasião, a extinção da punibilidade, como é o caso.


Acontece, porém, que o julgador nunca se dá conta de que, ao final do processo penal, após a instrução regular, que, na ação penal pública, cabe ao juiz, com a participação do órgão acusador (Ministério Público) e da defesa do acusado, pode resultar a improcedência da ação penal, com a consequente declaração da inocência do réu, traduzida na sua “absolvição”.  


O mesmo acontece quando se trata de queixa-crime, em se tratando de ação penal privada, porque, também nessa hipótese, é ônus do querelante provar a procedência das suas alegações, que, de outra forma, resultará, na absolvição do querelado, não sendo justo nem équo que ocorra a extinção da punibilidade deste, pelo fato de falecer no curso do processo, antes de vir a ser condenado, porquanto, na sentença, dependendo do resultado da instrução, a ação penal poderá ser improcedente, determinando a sua absolvição.


Embora a lei se refira à extinção da punibilidade pela morte do agente, no art. 107, I do Código Penal, nas ações de iniciativa privada, personalíssima, também a morte da vítima, opera a extinção da punibilidade.


Lembremos que para a doutrina moderna é pacífico o entendimento de que a interpretação é indispensável até mesmo quanto a normas clarividentes, que não apresentem qualquer obscuridade. Atualmente, o prevalente entendimento, entre os juristas brasileiros, resta fincado no preceito inscrito no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro, que dispõe que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”; o que, noutros termos, significa que qualquer norma, por mais clara que seja na sua redação, exige interpretação, até que, finalmente, reste esclarecido o seu verdadeiro significado.


A interpretação restritiva, que mitiga o significado da norma legal, sempre parte da noção de que a lei expressou mais do que realmente pretendia. Na inesquecível lição de Carlos Maximiliano[2] interpretar é explicar, esclarecer, dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém.


Portanto, o falecimento do acusado não deve desobrigar o órgão acusador de verificar a pertinência da denúncia oferecida, bem como avaliar ciosamente, o que contém os autos, pois há possibilidade de absolvição e, até de extinção processual, por ausência de prova suficiente da materialidade e, quiçá da própria autoria do crime.


3. Enigma da esfinge: decifra-me ou te devoro


Passemos ao exame dos textos legais pertinentes, para, mais tarde, retornar aos fundamentos que conduzem à sua melhor exegese, para que os tribunais possam, com base nela, decifrar esse verdadeiro “enigma da esfinge”[3], o que não lograram fazer até hoje, apesar de mais de oito décadas de vigência do Código Penal e de quase oito décadas do Código de Processo Penal.


A doutrina e a jurisprudência se repetiram ao longo dos anos, na mesma direção, sem que os intérpretes da lei se dessem conta de que essa reiteração de entendimento não atendia ao ideal de justiça condizente com a realidade dos novos tempos.


No particular, registra o coautor Carreira Alvim, que ele, na qualidade de julgador, no TRF-2, sempre soube decifrar esse enigma, mas, infelizmente, não encontrava recepção dos seus pares, que, sem melhores argumentos, se apoiavam somente nos precedentes jurisprudenciais antiquados e inadequados para solucionar essa equação jurídica.


4. Extinção da punibilidade: conceito


A extinção da punibilidade ocorre quando, existente alguma das hipóteses previstas em lei, desaparece, em consequência, qualquer interesse punitivo do Estado na aplicação da própria pena. A punição é uma consequência de conduta típica e antijurídica, sendo a culpabilidade mero pressuposto de aplicação da pena.


Em ocorrendo uma das hipóteses de extinção da punibilidade, faz “naufragar a pretensão punitiva do Estado” (direito subjetivo de punir do Estado), subsistindo, contudo, a conduta delituosa (típica e antijurídica), sem a possibilidade jurídica de imposição de pena. Como se vê, na esfera penal, a “possibilidade jurídica do pedido” continua sendo uma das condições da ação penal, o que deixou de acontecer na esfera civil, em que ela migrou para o “interesse de agir”, no rastro da teoria de Liebman.


Afirmar, na esfera da ação penal pública, que, com a extinção da punibilidade” “naufraga a pretensão punitiva do Estado”, significa dizer que não pode mais ser imposta qualquer sanção contra o acusado; ou, na esfera da ação penal privada (queixa-crime), não pode ser imposta qualquer penalidade ao querelado.


Acontece, porém, que, para que a extinção da punibilidade seja decretada, in concreto, é preciso que o agente do fato delituoso, sujeito à incidência da pena tenha sido “condenado” por sentença (mesmo que recorrível), o que torna impossível a sua decretação no curso do processo, antes da prolação da sentença, por falta do suporte material para fazê-la (a extinção da punibilidade) incidir.


O advento da Lei 13.964/19 reforçou o entendimento jurisprudencial do STF, no que tange à natureza jurídica da pena de multa, conferindo ao art. 51 do CP a seguinte redação: "Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição". A multa não paga, nos termos da redação conferida pela precitada Lei, deve ser cobrada pelo Ministério Público e o processo tramitará na vara da execução penal.


Curiosamente, a Constituição veda, no seu art. 5º, XLVII, não somente as penas de caráter perpétuo, mas, também, as cruéis; e, a crueldade persiste, ao se negar aos familiares do morto a possibilidade de obter a devida apreciação judicial, quiçá o julgamento, mesmo quando o falecimento tenha inviabilizado a persecução criminal.  Aliás, Zaffaroni[4] ensina que o princípio da humanidade da pena implica na inconstitucionalidade de qualquer pena ou consequência do delito que crie uma deficiência física (seja morte, amputação, castração ou esterilização, intervenção neurológica e etc.) como também qualquer consequência jurídica inapagável do delito.


Atualmente, já vige um Direito Penal seletivo no momento de tipificar as condutas criminais e, também, no de processar e julgar os acusados. E, essa seletividade também deve existir no reconhecimento da extinção da punibilidade, mesmo em razão da morte do agente. Afinal, o princípio da dignidade da pessoa humana representa uma grande bússola orientadora desse sopesamento, evitando-se a extinção da punibilidade automática e precocemente.


5. Morte do agente e sentido da expressão


Estabelece o art. 107 do Código Penal que: “Extingue-se a punibilidade: I - pela morte do agente (...)”.


A expressão “morte do agente”, no art. 107, I do Código Penal, padece de mais de um defeito terminológico, pois, a uma, não se pode afirmar, antes de uma decisão condenatória irrecorrível, que determinada pessoa seja efetivamente o agente do crime, e, a duas, porque a morte não é do autor do crime, mas do “suposto autor do delito”, conforme o princípio da presunção de inocência, consagrado pela Constituição (CF: art. 5º, LVII[5])[6]


6. “Agente” na esfera penal e alcance do termo


O termo “agente” tem, na lei penal, um sentido bastante amplo, compreendendo tanto aquele que, per ipsum (por si próprio), comete um crime, como, também, “aquele que instiga ou determina o cometimento de crime por alguém sujeito à sua autoridade ou não punível em virtude de condição ou de qualidade pessoal”.


Instigar é reforçar uma ideia preexistente, e determinar é ordenar, exigindo-se que o praticante do crime esteja sob a autoridade de quem instiga ou determina, seja qual for o tipo de relação, podendo ser de subordinação, de natureza pública, privada, religiosa, profissional ou mesmo doméstica, desde que capaz de influir no ânimo psicológico do agente[7].


Consigne-se, por oportuno, que o rol constante no art. 107 do Código Penal é apenas exemplificativo, pelo que existem outras causas, igualmente extintivas de punibilidade, em leis esparsas (v.g., Lei 9.099/1995, Lei 9.249/1995).


Afinal, o adágio “mors omnia solvit”, segundo o qual a morte tudo apaga, não é verdadeiro de forma absoluta; como também não o é a previsão legal que determina que a pena não passará da pessoa do condenado, eis que respinga e reverbera sobre sua família e mesmo sobre os verdadeiros amigos.


O legislador pátrio ao utilizar o vocábulo "morte" do agente, identificar o indiciado, na fase investigativa, o réu ou acusado (ou querelado) na fase processual e o condenado, na fase decisória, uma vez que essa causa extintiva poderá ocorrer em qualquer momento da persecução penal, desde a instauração do inquérito policial até o término da execução da pena. Lembre-se, em tempo, que se trata de causa personalíssima, que não se comunica aos partícipes, nem coautores do fato delituoso, só extinguindo a punibilidade do morto. Destarte, a morte extingue todos os efeitos penais da sentença condenatória, sejam estes principais ou secundários; e até mesmo a pena de multa que não poderá ser exigida de seus herdeiros.


Existe posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que: “O desfazimento da decisão judicial que, admitindo por equívoco a morte do agente, declarou (extinta) a punibilidade, não constitui ofensa à coisa julgada”[8]; bem assim, no mesmo sentido, do Supremo Tribunal Federal: “O desfazimento da decisão que, admitindo por equívoco a morte do agente, declarou extinta a punibilidade, não constitui ofensa à coisa julgada”.[9]


O fundamento desses arestos é que o erro material não transita em julgado, podendo ser corrigido a todo tempo, mesmo ex officio, não ocorrendo, portanto, a preclusão pro judicato. Sublinhe-se, ainda, que a declaração de extinção da punibilidade pelo juiz exige a prévia manifestação do Ministério Público, ex vi o art. 62  do CPP.


7. Conceito de família na esfera jurídica


O conceito de “família”, na esfera jurídica, é muito diversificado, compreendendo, no âmbito civil, o cônjuge ou companheiro, ascendente e descendentes; no âmbito penal, o cônjuge (ou companheiro), ascendentes, descendentes ou irmãos (CPP: art. 623); e, no âmbito previdenciário, o cônjuge ou companheiro, pais, padrasto ou madrasta, irmãos, filhos e enteados solteiros e menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto (Lei 8.742/93: art. 20, § 1º).


Não são reconhecidos ao morto nem à sua família, os direitos da personalidade para se identificar uma esfera de não-liberdade infringida por alguém. O “morto” pode ser referencial de uma posição jurídica, consubstanciada num dever jurídico, e violada por alguém. Portanto, não faz sentido avaliar-se a personalidade do morto, seja na sua integralidade, seja, como mero reflexo dela.


Conclui-se, pois, que, se alguém, por exemplo, lesiona a honra ou a imagem do morto não ofende “direitos”, posto que estes não mais existem, inquestionavelmente viola “deveres”.


A situação jurídica, portanto, pode permitir a violação de deveres institucionais, decorrentes da existência da personalidade e dos direitos correlatos.


O morto não tem personalidade jurídica, nem é detentor de direitos, pelo que não se insere numa relação jurídica intersubjetiva, inobstante possa ser imputada responsabilidade àquele que infringiu a esfera de não-liberdade. Portanto, à família não são transferidos os direitos da personalidade, mas lhe é atribuída uma esfera de liberdade processual na defesa da não-infração de deveres que se refiram à figura do morto, pelo que, o que se tem é o deferimento de legitimidade processual na defesa dessa situação jurídica de dever, na qual o morto se insere, em razão do juízo normativo de reprovabilidade objetiva.


8. Questão da personalidade jurídica post-mortem


A morte do agente extingue a sua punibilidade pelo simples fato de ser impossível impor pena a quem já morreu, que perde, a partir daí, a personalidade jurídica que ostentava em vida, passando a ser considerado um “cadáver”; mas, apesar de não haver um direito da personalidade do morto, existe a tutela jurídica dos direitos da personalidade da pessoa morta[10].  


A existência da pessoa natural termina com a morte (Cód. Civil: arts. 6º, caput), e, consequentemente, a personalidade jurídica do morto se extingue aí; mas, apesar disso, o morto poderá sofrer lesão a direito da personalidade e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei (Cód. Civil: art. 12, caput), caso em que terá legitimação para agir o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta ou colateral até o quarto grau (Cód. Civil, art. 12, parágrafo único). O companheiro também está legitimado para agir nesse caso.


No particular, há casos envolvendo a proteção a direitos da personalidade post-mortem, reconhecendo à família legitimidade para postular condenação da parte adversa, a título de indenização por dano, material ou moral, a ser analisado de acordo com o caso concreto, vez que se projeta efeitos econômicos além da morte do famoso (REsp 52697/RJ)[11].


O amparo a direito post-mortem vem previsto, também, no art. 20, parágrafo único do Código Civil, que autoriza a proteção ou proibição da divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa,  sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais; e, em se tratando de morto, são partes legitimadas para requerer essa proteção o cônjuge ou companheiro, os ascendentes ou os descendentes.[12]


Pelo fato de a personalidade da pessoa natural terminar com a sua morte, ninguém está autorizado a se utilizar do nome do morto, da sua imagem, da sua honra, da sua privacidade etc., que passam, pelo fato da morte, à esfera jurídica da sua família, a quem cabe a sua tutela, preventiva ou repressivamente, em qualquer dos âmbitos do direito.


Há, realmente, no ordenamento jurídico, a proteção que aparenta ser um prolongamento da personalidade do morto, conforme o art. 12 e parágrafo único do Código Civil:


Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.


Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau."


Ainda quanto à honra e imagem do morto, especificamente, o art. 20 e parágrafo único do Código Civil:


Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.


Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”.


A concepção tradicional de relação jurídica é muito ligada à de direito subjetivo, por ser este, um aspecto aquela, sendo o vínculo entre dois ou mais sujeitos, estabelecido em virtude de um objeto, pelo que se percebe, nitidamente, a presença de sujeitos em contraposição de interesses E, nessa concepção personalista, são sujeitos da relação jurídica, os entes dotados de personalidade jurídica, que estabelecem entre si um vínculo reconhecido pelo ordenamento jurídico como vicissitude ou efeito jurídico. Segundo tal corrente de pensamento, os sujeitos gozam de direitos e deveres outorgados pelo ordenamento jurídico, denominando-se “sujeito ativo” aquele que detém o poder de exigir determinado comportamento, enquanto o “sujeito passivo” é aquele que possui o dever de assim se comportar.


Orlando Gomes[13] teceu diversas críticas a essa concepção, por entender ser desnecessária a noção ontologizante e subjetivante da relação jurídica. Trata-se de falsa generalização. Realmente, a relação social é, por definição, a que se trava entre homens, mas isso, não significa que o Direito rege apenas relações sociais, nem que outras sujeições, como a de coisa ao homem, possam ter igual qualificação dentro do vocabulário juridico. E, não vige coincidência necessária entre a relação humana e a relação jurídica.


Conclui-se, pois, que a relação jurídica é construção dogmático-jurídica, mas que, por conceitos formais e técnicos, seria também formada pela historicidade do Direito, abandonando-se a falsa busca por ontologia jurídica. Existem, portanto, situações anômalas que dispensam a intersubjetividade e seriam as situações subjetivas que abarcam o direito potestativo, o ônus, o interesse legítimo, o poder, a faculdade, a sujeição, além do direito subjetivo e do dever jurídico. Resta, pois, plenamente legitimada, a família “lato sensu” do morto para buscar a reparação por dano contra a honra e a imagem dele


9. Equivocada exegese na extinção da punibilidade


O equívoco que tem conduzido a doutrina e a jurisprudência por caminhos inadequados e equivocados, quando se trata de extinção da punibilidade pela morte do agente (CP: art. 107, I) provém do Código de Processo Penal, ao dispor, no art. 61, caput que “Em qualquer fase do processo, o juiz se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo (rectius, declará-la) de ofício”. Isso porque só se pode decretar, concretamente, a extinção da punibilidade, se houver uma sentença condenatória a respeito, e, ainda assim, por uma questão de impossibilidade física, porque, se o réu tiver morrido, e vier a ser condenado, não se pode punir quem já sofreu a punibilidade máxima, que foi a perda da vida.


A doutrina tem, equivocadamente, sustentado, consoante a exegese literal que faz do art. 61, caput do CPP, que a morte do agente, qualquer que seja o momento em que ela acontece --,  investigação (inquérito policial, termo circunstanciado, CPI ou investigação pelo MP) até o fim da execução penal: indiciado, acusado (réu), sentenciado, preso ou beneficiário[14] --, extingue a punibilidade, colocando um ponto final na pretensão punitiva do Estado ou na pretensão executória, em razão da máxima “mors omnia solvit” (a morte tudo apaga)[15].


10. Responsabilidade penal do morto no curso da História


Embora se tenha, atualmente, como verdade, que “somente o homem (rectius, ser humano), enquanto pessoa viva, possa ser responsabilizado pela prática de crime, já que, com a morte, deixa de ser sujeito de direitos e obrigações, ocorrendo a extinção da punibilidade”, nem sempre assim foi, pois nem as pessoas mortas escapavam à fúria repressiva da fase que antecedeu o período humanitário do Direito Penal, como salienta Edmond Picard[16], nestes termos:


“Um morto é também, às vezes, considerado sujeito de direito. Na Idade Média, promoviam-se processos criminais contra cadáveres; a inquisição exumava-os, fazia-os citar, pronunciava contra eles penas póstumas e o confisco de bens que, antes do decesso, constituíam o patrimônio do defunto”. (Le droit pur).


A punição do morto[17], no passado, não parava aí, pois o Concílio de Trento (ano de 563) aplicava sanção penal ao cadáver do suicida, proibindo atos religiosos em sua memória, e, durante a Idade Média, enraizada nos princípios do direito canônico, o suicídio continuou sendo crime e pecado contra Deus, aplicando-se ao cadáver, que devia ser suspenso pelos pés e arrastado pelas ruas, com o rosto voltado para o chão.[18]


A História registra, ainda, casos de pessoas julgadas mesmo depois da morte, havendo penas infamantes, que não só atingiam a memória do morto, como também seus descendentes, tendo a Idade Média convivido com a execução de cadáver.[19]


Essa digressão, destina-se apenas a demonstrar que a máxima “mors omnia solvit” (a morte tudo apaga) nem sempre foi interpretada com a largueza que adquiriu no art. 5º, XLV da Constituição, que consagra o princípio da pessoalidade (transcendência ou personalidade) da sanção penal, ao dispor que: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.


11. Vetores no desenvolvimento do tema


No trato do tema em questão, o seu desenvolvimento será feito, a partir daqui, através de “vetores”, que abrangerão as diversas exegeses propostas para os textos legais que versam a extinção da punibilidade pela “morte do agente”, que constituem as respostas dadas a esse “enigma da esfinge”.


12.  Sentido da expressão “qualquer fase do processo”


Neste passo, seguiremos um primeiro vetor, para demonstrar o equívoco da doutrina e da jurisprudência, na aplicação do art. 61, caput do CPP, ao entender que a extinção da punibilidade pela morte do agente (rectius, acusado) pode ocorrer “em qualquer fase do processo”, porque, na verdade, não pode.


Numa primeira visão do tema, o princípio da presunção de inocência, de índole constitucional, paira sobre as demais regras jurídicas de natureza penal e processual penal, devendo a expressão “em qualquer fase do processo”, no art. 61, caput do CPP, ser interpretada sob a luz da Constituição, de modo que, antes da sentença condenatória, não se pode falar em punição do acusado, e, consequentemente, em extinção da punibilidade, que pressupõe uma possibilidade real, e não teórica.


Qual seria, então, a partir desse vetor, a orientação a seguir, na hipótese de o acusado vir a ser processado, numa ação penal pública (acusatória) ou numa ação penal privada (queixa-crime), e vir a morrer no curso do procedimento, antes da sentença de mérito?


Em se tratando de inquérito policial, para apuração de eventual fato delituoso, não afronta a lógica e o bom senso o delegado ou o órgão do Ministério Público encerrar o procedimento, em ocorrendo a morte do agente (rectius, investigado), mesmo porque o art. 61, caput do CPP fala em “qualquer fase do processo”, e no inquérito não existe processo, mas mero procedimento (investigatório). Nesse caso, a extinção precoce do inquérito, pela morte do investigado, tem o mesmo resultado a que se chegaria, se, ao seu final, se concluísse pela falta de elementos concretos para eventual incriminação.


O problema adquire relevância quando se trata de processo penal, inaugurado pela denúncia do Ministério Público, na ação penal pública, ou pela queixa-crime, na ação penal privada, caso em que os acusadores têm o ônus de demonstrar a veracidade das suas alegações, para viabilizar a procedência do pedido condenatório.


Em face do princípio da presunção de inocência, de índole constitucional --, em que o acusado é considerado inocente até a condenação por sentença transitada em julgado --, e do princípio do “in dubio pro reo”, de índole processual penal, em que a dúvida milita em favor do réu (rectius, acusado), nenhum acusado, sem uma decisão condenatória, pode ser acoimado de agente (praticante) do crime, enquanto não for proferida uma sentença condenatória; mesmo que, antes disso, venha a ocorrer a sua morte.


13. Posição da família do morto em face da acusação


Abre-se um segundo vetor, para analisar a posição jurídica da família do acusado, cônjuge ou companheiro, ascendentes, descendentes ou irmãos, em face da acusação imputada ao morto, a qual dificilmente se conformará com uma sentença de “extinção da punibilidade”, sobretudo se o fundamento da defesa for, por exemplo, a inexistência da materialidade do fato (apontado como delituoso) ou de ausência autoria (imputada ao acusado), ou mesmo se tiver agido em legítima defesa real.


Por expressa determinação legal, a prova da existência do crime constitui um ônus do Ministério Público, embora, recentemente, esse ônus venha sendo constantemente invertido, dizendo-se que o acusado deve provar a sua inocência, quando o que determina a lei é que ao órgão acusador cabe comprovar a procedência da acusação. 


14 Família do morto na relação processual penal


A morte do acusado, no curso do processo penal, para atender à lógica, com um mínimo de razoabilidade, deve dar ensejo a que sua família, cônjuge (ou companheiro), ascendentes ou descendentes, interessada na obtenção de uma sentença de mérito de natureza absolutória, assuma a posição de “condutor da defesa” (do polo passivo do processo), evidentemente, através de advogado, que pode ser o mesmo que vinha patrocinando a defesa, ou outro da sua confiança --, podendo, inclusive, ser admitido um litisconsórcio de todos, em busca da absolvição do morto.


Ninguém duvida da enorme diferença entre uma sentença absolutória do acusado, e uma sentença de extinção da sua punibilidade, pelo fato de haver morrido, porque, nessa última hipótese, a suspeita de ter praticado um crime continuará pairando, como uma “espada de Dâmocles”, sobre a cabeça dos integrantes do núcleo familiar, o que não acontece se o acusado vier a ser absolvido da imputação acusatória.


Para se entender o alcance dessa diferença, suponha-se que o agente (acusado) do fato imputado na denúncia tenha praticado o fato em legítima defesa[20], quando por determinação expressa da lei, não há crime (CP: art. 23, II), mas tenha sido denunciado como autor de um homicídio, inclusive com as agravantes previstas na lei penal.


Nesse caso, se o processo tiver tido o seu curso normal, com o acusado vivo, poderá ser que, após a regular instrução probatória, o órgão do Ministério Público se convença da existência da descriminante (da legítima defesa), e até peça a improcedência da denúncia; ou, mesmo que peça a procedência da acusação, o juiz se convença da existência da descriminante (legítima defesa), e absolva o acusado, julgando improcedente a denúncia.


No entanto, se o acusado tiver morrido, digamos, mesmo com os autos já conclusos para sentença, mas antes da sua prolação, o juiz, consoante o entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência (equivocadas), decretará a extinção da punibilidade com base no art. 107, I do Código Penal, mediante apresentação da competente certidão de óbito (CPP: art. 62).


Conclusão:


Em vez de uma sentença absolutória, que colocaria o acusado a salvo de qualquer suspeita de criminalidade, mantendo limpa a sua vida pregressa, constará nos registros judiciais ter sido ele processado pela prática de homicídio, com a extinção da punibilidade em virtude da sua morte. Só quem não tenha os olhos voltados para a realidade da vida e focado no bom senso e na razoabilidade, não vê a diferença entre uma sentença absolutória e uma sentença de extinção da punibilidade por morte do agente.


Ademais, em sendo absolutória a sentença do acusado morto no curso do processo, a vítima do fato delituoso a ele imputado ou seus herdeiros ou sucessores não terão contra ele nenhuma ação de reparação na esfera cível, se a absolvição se fundar, por exemplo, na legítima defesa real (não a putativa)[21], mas não afasta a ação reparatória (rectius, indenizatória), caso venha a ser proferida uma sentença de extinção da punibilidade em razão da morte do acusado.  


Pelo só fato de o cônjuge ou companheiro, descendentes ou ascendentes do morto no curso do processo --, mas, antes da sentença de mérito --, poderem ser demandados no juízo cível, para fins de reparação do dano causado pelo crime, põe à mostra terem eles legitimação e interesse jurídico em que o processo penal continue o seu curso, em direção à sentença, na condição de sucessores do morto no processo, enquanto membros da sua família, atuando no polo passivo da relação processual penal.


15. Extinção da punibilidade e ação civil ex delicto


Estabelece o art. 64, caput, primeira parte do CPP que, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível contra o autor do crime, dispondo o art. 67, II do mesmo Código que, não impedirá a propositura da ação civil “a decisão que julgar extinta a punibilidade”. Como são causas de extinção da punibilidade todas aquelas previstas no art. 107, I a VI e IX do CP, dentre as quais a “morte do agente”, a ação civil ex delito poderá ser proposta no juízo civil, a depender do fundamento da sentença.


Nas atuais circunstâncias, e em face da doutrina e jurisprudência dominantes, se o juiz se limitar a decretar a extinção da punibilidade, “sem qualquer consideração quanto à culpa do acusado”, poderão os legitimados (cônjuge da vítima, descendentes ou ascendentes) demandar o espólio do morto, no cível, para haver a reparação pelos danos causados (moral e material). Isso sem que tenham tido a oportunidade de provar a inocência do morto no processo penal.


16. Absolvição sumária do morto e extinção da   punibilidade


Num terceiro vetor, pode o juiz absolver sumariamente o réu, morto no curso do processo (CPP: art. 367, IV), e, em consequência, extinguir a sua punibilidade, mas, se o processo prosseguir, após da morte do acusado, com os legitimados (cônjuge ou companheiro, descendentes, ascendentes) buscando sentença absolutória –, outro dos vetores considerados neste estudo --, vindo o acusado, morto no curso do processo, a ser absolvido, por legítima defesa real, por exemplo, fica interditada a ação civil ex delito contra o espólio. 


Tendo o princípio da inocência assento constitucional, expresso no inciso LVII do art. 5º da Constituição --, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” --, não pode a morte do agente (acusado) constituir obstáculo à absolvição do acusado, devendo o juiz aplicar o disposto no art. 397, IV do CPP --, independentemente do cumprimento do disposto no art. 396-A, em face da morte do acusado --, e absolver   sumariamente o acusado por estar “extinta a punibilidade do agente”.


Esta solução é mais que razoável e justa, porque, se o acusado não pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (CF: art. 5º, LVII), e sentença condenatória não haverá por haver o acusado morrido, impõe-se a absolvição sumária, com a consequente extinção da punibilidade (CPP: art. 397, IV).


É equívoco supor que “cabe, diante do óbito, somente o reconhecimento da extinção da punibilidade, sem qualquer consideração quanto à culpa ou inocência do acusado falecido em relação à imputação” --, como entendeu o juiz Sergio Moro, na extinção da punibilidade de Maria Letícia, mulher de Lula, no caso do tríplex do Guarujá, porque o princípio da presunção de inocência, de fundo constitucional, impõe, sim, que o acusado, seja considerado inocente, “ad aeternum” (eternamente), mesmo depois da sua morte.


Aliás, não faria nenhum sentido que a Constituição determinasse que ninguém fosse considerado culpado até a sentença penal condenatória, e desconsiderasse a presunção de inocência de quem sequer teve contra si uma sentença penal --, que poderia ser, inclusive, absolutória --, por haver morrido antes dela, afastando, a fórceps, a inocência presumida do acusado por uma mera sentença extintiva da punibilidade. Definitivamente, não é isso que vem consagrado pela Constituição, nem pelas normas penais e de processo penal ao dispor a respeito; apesar de, equivocadamente, ser esse o entendimento que vem sendo acolhido pela doutrina e jurisprudência, em virtude da “lei do menor esforço” interpretativo.  


17. Extinção da punibilidade e revisão criminal


Abre-se, neste passo, um quarto vetor, em favor da tese exposta, para pôr em relevo a insubsistência da exegese que pugna pela extinção do processo “em qualquer fase do processo”, em face da morte do réu, com a decretação da extinção da sua punibilidade.


Caso tivesse o acusado sido condenado por sentença, com a extinção da punibilidade em face da sua morte, essa sentença estaria sujeita a revisão criminal, num dos casos previstos no art. 621, I a III do CPP, dentre os quais, “quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena” (CPC: art. 621, III), podendo a ação revisional ser pedida pelo cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, no caso de morte do réu (CPP: art. 623). Além do cônjuge, também o companheiro está legitimado para essa ação.


Se assim é, deveria, por questão de coerência lógica e sistêmica, ser admitida, igualmente, a revisão criminal da sentença de extinção da punibilidade por morte do agente, com os legitimados, parentes do morto, posicionados no polo ativo do processo revisional, tendente a obter a revisão da sentença anterior, com a prolação de acórdão – a competência, nesse caso, é dos tribunais --, objetivando obter a absolvição do morto.   


18. Ação declaratória da inocência do morto


Se nenhuma dessas alternativas se mostrar viável, resta um quinto e último vetor, em prol da memória do acusado, com sentença extintiva da punibilidade em razão da sua morte, que é o ajuizamento pelo seu cônjuge ou companheiro, ascendentes ou descendentes, se nisso tiverem interesse, de uma ação declaratória de inocência do acusado, qualquer que tenha sido o fundamento da defesa no processo penal extinto, como a inexistência do fato, a negativa de autoria, a legítima defesa, ou qualquer outro, mas tudo com eficácia estritamente na esfera cível.


Essa legitimação não pode ser negada ao cônjuge ou companheiro, descendentes ou ascendentes do acusado, cuja punibilidade foi extinta em razão da sua morte, pois é um direito seu agir na defesa da integridade moral do morto, da sua honra e do seu bom nome, com reflexos diretos sobre todos os que constituíam o seu núcleo familiar.


19. Conclusão


Estas anotações têm o propósito de chamar a atenção da doutrina e da jurisprudência para novas perspectivas exegéticas na busca de solução mais lógica e racional na aplicação das regras penais e processuais penais pertinentes à extinção da punibilidade pela “morte do agente”, que, até o momento, só tem considerado o interesse do Estado na extinção do processo penal, por não poder condenar o morto, e, se condená-lo, vindo ele a morrer posteriormente, não poder executar a sentença.


Acontece que, nessa hipótese, não é apenas o interesse do Estado que está em jogo, por ficar sem suporte o seu “ius puniendi” (direito de punir), com o desaparecimento do condenado, em decorrência da sua morte, mas, sobretudo, o interesse da família do morto, mais interessada numa sentença absolutória, apesar de ter ele morrido, do que numa simples sentença extintiva da punibilidade, proferida ao largo da apuração e comprovação se o morto era ou não culpado.


Num dos vetores considerados neste estudo, está a resposta ao “enigma da esfinge”, que, até hoje, não foi dada pelos juízos e tribunais, quando se depararam com esse tema em sede judicial, preferindo uma interpretação literal dos arts. 107, I do CP e art. 61, caput do CPP, expressões da “lei do menor esforço”, que, infelizmente, domina a mente dos julgadores.


REFERÊNCIAS


BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal – Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.


CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral, 21 ed., São Paulo: Saraiva, 2017, v. 1.


CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Imputação objetiva e risco no direito penal: do funcionalismo à teoria discursiva do delito. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2005.


COSTA, Marília F. Diniz Costa. Tutela Jurisdicional da Personalidade Humana após a Morte (Art. 5º, X da Constituição Federal. Disponível em https://jus.com.br/artigos/82055/tutela-jurisdicional-da-personalidade-humana-apos-a-morte


GOMES, Orlando. Obrigações. 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1978.


HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense: 1955, v. 5.


MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª ed., Rio de Janeiro. Forense. 1979. 


MIRANDA, Marcelo Alves de. Proteção post-mortem envolvendo os direitos da personalidade. Disponível em: https://marcelobarca.jusbrasil.com.br/artigos/121944063/protecao-post-mortem-envolvendo-os-direitos-da-personalidade


NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1972, v. I.


PICARD, Edmond. Le droit pur; apud COELHO, Walter. Teoria geral do crime. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, v. 1.


VIEIRA, Vanderson Roberto. A causa de extinção da punibilidade “morte do agente”. Disponível em http://uniesp.edu.br/sites/_biblioteca/revistas/20170725105219.pdf


ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal, Parte General, 6. ed. Buenos Aires: EDIAR, 1991.   


Notas:


[1][1] CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. “Imputação objetiva e risco no direito penal: do funcionalismo à teoria discursiva do delito”. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2005, p. 107.


[2] MAXIMILIANO, Carlos. “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, 9ª ed., Rio de Janeiro. Forense. 1979, p.34-35. 


[3] A esfinge era um monstro alado com corpo de mulher e leão que afligia a cidade de Tebas, cidade do antigo Egito. Primeiramente apresentava aos homens o seguinte enigma: “Que animal anda pela manhã sobre quatro patas, a tarde sobre duas e a noite sobre três?” e, como nenhum dos homens conseguiu decifrar tal enigma, a esfinge os devorava. Um dia, o herói grego Édipo deu a resposta certa: “O ser humano, porque engatinha quando bebê, anda em duas pernas quando cresce e se apoia em uma bengala na velhice”. Então, a Esfinge se matou.


[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. “Manual de Derecho Penal, Parte General”, 6. ed. Buenos Aires: Ediar, 1991, p.139.


[5] Art. 5º (...) LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;


[6]  VIEIRA, Vanderson Roberto. “A causa de extinção da punibilidade ´morte do agente’” Disponível em http://uniesp.edu.br/sites/_biblioteca/revistas/20170725105219.pdf


[7] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral, 21 ed., São Paulo: Saraiva, 2017, v. 1, p. 492.  


[8] STJ - HC 31234/MG 2003/0190092-8, 5ª Turma, relator Ministro Felix Fischer, julgado em 16/12/2003.


[9] STF – HC 60095/RJ, 1ª Turma, relator Ministro Rafael Mayer, julgado em 30/11/1982, RTJ vol. 00104-03, pp. 01063.


[10] COSTA, Marília F. Diniz Costa. Tutela Jurisdicional da Personalidade Humana após a Morte (Art. 5º, X da Constituição Federal. Disponível em https://jus.com.br/artigos/82055/tutela-jurisdicional-da-personalidade-humana-apos-a-morte


[11] “CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO À IMAGEM E À HONRA DE PAI FALECIDO. Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção a imagem e a honra de quem falece, como se fossem coisas de ninguém, porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta, como sentenciou Ariosto. Daí por que não se pode subtrair dos filhos o direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita à sua memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que lhe possa trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material. Primeiro recurso especial das autoras parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. Segundo recurso especial das autoras não conhecido. Recurso da ré conhecido pelo dissídio, mas improvido.”


[12] MIRANDA, Marcelo Alves de. “Proteção post-mortem envolvendo os direitos da personalidade”. Disponível em: https://marcelobarca.jusbrasil.com.br/artigos/121944063/protecao-post-mortem-envolvendo-os-direitos-da-personalidade


[13] GOMES, Orlando. Obrigações. 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.24-30.


[14] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal – parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 741.


[15] VIEIRA, Vanderson Roberto. Site citado retro.


[16]  PICARD, Edmond. “Le droit pur”; apud COELHO, Walter. Teoria geral do crime. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, v. 1, p. 48.


[17] Apesar de existirem diferentes versões para morte de Mussolini e sua amante, eis um exemplo de punição aos cadáveres. Audisio deu uma versão diferente. Ele alegou que em 28 de abril convocou um "tribunal de guerra" em Dongo, em que participaram Lampreei, Bellini delle Stelle, Michele Moretti e Lazzaro. O tribunal condenou Mussolini e Petacci à morte. Não houve qualquer objeção a nenhuma das execuções propostas. Urbano Lazzaro mais tarde negou que tenha ocorrido tal tribunal e disse: “Eu estava convencido de que Mussolini merecia morrer..., porém deveria haver um julgamento de acordo com a lei. Isso foi extremamente bárbaro, pois os corpos de Mussolini e Petacci foram levados para Milão onde ficaram expostos em uma praça, a Piazzale Loreto, para uma multidão enfurecida que gritava insultos e atirava objetos nos corpos, que ficaram pendurados de cabeça para baixo em uma viga de metal. Mussolini foi enterrado em uma cova sem nome, porém em 1946 seu corpo foi desenterrado e roubado por apoiantes fascistas. Quatro meses mais tarde, o corpo foi recuperado e mantido em um esconderijo pelos próximos onze anos. Em 1957, seus restos mortais foram disponibilizados para serem enterrados na cripta da família Mussolini na sua cidade-natal, Predappio. Seu mausoléu tornou-se um lugar de peregrinação para os simpatizantes de sua ideologia e o aniversário de sua morte é marcado por encontros de neofascistas.  


[18] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense: 1955, v. 5, p. 224.


[19]  NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1972, v. I, p. 374.


[20] Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.     


[21] Legítima defesa putativa é a também denominada legítima defesa ficta. A situação de perigo existe tão somente no imaginário daquele que supõe repelir legitimamente um injusto. Por conseguinte, a ação do que se supõe agredido é revestida de antijuridicidade, em divergência daquele que age em legítima defesa real. Em sendo a legitima defesa putativa, a vítima do fato, seu cônjuge ou companheiro, descendentes ou ascendentes terão o direito de postular na esfera cível a reparação do dano.


Autores:


J. E. Carreira Alvim, doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFRJ (aposentado) e ex-Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.


Gisele Leite,  professora universitária de Direito e Pedagogia, mestre em Direito, mestre em Filosofia, doutora em Direito, pesquisadora chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas (INPJ), presidente da Seccional Associação Brasileira de Direito Educacional (ABRADE-RJ), consultora do Instituto de Pesquisas e Administração da Educação (IPAE). 

Palavras-chave: Extinção da Punibilidade Morte do Agente “Enigma da Esfinge” CP Esfera Criminal CPP

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