A prata da palavra

É verdade que a educação dialógica traz uma linha que pode e deve embasar quase todas as metodologias ativas, que não podem funcionar sem uma sólida base de diálogo e, ainda, a capacidade de estabelecer a boa interação entre todos os envolvidos no processo de aprendizagem. A palavra é de prata e pode ser, finalmente, polida e aperfeiçoada pela verdadeira educação, sem desmerecer o ouro do silêncio

Fonte: Gisele Leite

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Há um conhecido provérbio árabe que diz: A palavra é prata, o silêncio é ouro. O memorável Graciliano Ramos[1], nos idos de 1948 afirmou: "A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita pra dizer."

Há outras fontes que indicam que o referido provérbio seria chinês.

Realmente a essência humana que é pungente na força criadora da linguagem, é justamente o que tanto nos caracteriza como seres humanos.  Nós seres portadores de voz (phoné) e como esta exprimem alegria, tristeza, dor e prazer, mas o homem possui o lógos, o signo linguístico composto de significante (imagem sonora) e significado (representação mental), componente gerador da linguagem verbal, sendo indubitável instituição social.

A linguagem é uma forma de interação: mais do que possibilitar a transmissão de informação de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como locus de interação humana, onde através desta o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria praticar a não ser falando.

Já os gregos, ao se referirem à linguagem, utilizavam duas palavras mythos e lógos. A primeira aludia às narrativas sobre a história dos deuses, dos homens do mundo. Era palavra mágica e de encantamento que alude à vida, e mesmo o que ainda não se fez.

Nesse sentido, percebe-se que a palavra possui especial magnitude nos textos bíblicos do Gênesis, nos quais a palavra cria a vida.

O espaço social é, enfim, criado pelas vozes que nele operam, construídas, na concepção de Pierre Bourdieu (1998), pelo habitus[2] de cada grupo social durante a formação de cada pessoa e, ao mesmo tempo, transcende ao plano pessoal, sendo herança cultural e demonstrando as transformações das estruturas estruturantes.

As vozes sociais são organizadas em padrões de produção e recepção, mas também de opressão, aludindo a repressão e emancipação. É nos discursos sociais que historicamente há a interação dialética e dialógica.

O significado das palavras é um fenômeno de pensamento apenas na medida em que este ganha corpo por meio da fala e, só é fenômeno de fala, na medida em que esta é ligada ao pensamento, sendo iluminada por ele. É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa, ou seja, uma união da palavra e do pensamento.

A linguagem e o pensamento estão intimamente conectados, sendo que o processo pessoal de formação da consciência só toma forma a partir da interação; o interpessoal é condição para o intrapessoal.

Assim, a linguagem segundo Bakhtin e Vygotsky, torna-se o lugar de interação, da negociação de sentidos da representação de papéis, da constituição de identidades.

Há estudos etnográficos na seara da linguagem e educação feito por Heath, 1994, Philips, 1993, Ogbu, 1991 e Wells em 1986 que traduzem o distanciamento entre as microculturas da comunidade familiar e a escolar como primordial fator do fracasso da escola.

Vige o descompasso entre as práticas discursivas que circulam dentro e fora da escola e suas reverberações no processo de ensino-aprendizagem, da leitura e da escrita.

Sobre a necessidade de reconhecer o ambiente de origem do aluno, a ecologia linguística da sua comunidade se torna fundamental para promover o diálogo em sala de aula, considerando a aprendizagem um processo de interação entre os interlocutores e seus textos orais e escritos.

Na Educação de Jovens e Adultos[3] tal questão é pungente e a competência comunicativa se torna a base predominante na oralidade e satisfatória para os ambientes familiares nas esferas privadas da vida social, entretanto, quando se deslocam para escola, são quase sempre infantilizados com textos para leitura e escrito que não condizem cm suas respectivas experiências de vida.

A importância do diálogo entre educadores e educandos aparece em Paulo Freire (1988) como o encontro dos homens mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu.

É a partir de uma tomada de consciência das coisas que acontecem ao seu redor (mundo-realidade) que o homem vai interagir nessa realidade, na qual ele é agente transformador, na medida em que é também transformado dentro do contexto que lhe é apresentado.

Afinal, o maior desafio da educação se traduz em ajudar a gestar um homem enquanto sujeito pleno de seu desejo, de suas transformações, para que seja um sujeito situado em seu tempo e lugar dotado de envolvimento com o universo que o cerca que, na medida em que constitui o seu próprio sentido de suas ações, e assim, também ajuda a significar todo o mundo.

O diálogo é, portanto, uma exigência existencial, é encontro onde se solidarizam o refletir e o agir dos sujeitos situados no mundo a ser transformado e progressivamente humanizado.

O riquíssimo espaço de sala de aula que se caracteriza pela instauração ou não da possibilidade de transformar-se num lugar onde se desenvolva o conhecimento e a integração cultural, social e política.

A relação professor e aluno é, sem dúvida, assimétrica, pois se manifesta por meio do jogo de relações de poder inerente ao papel social de cada um. Não é apenas veiculados os conteúdos escolares, mas também as variedades linguísticas presentes na performance do professor marcam, ainda mais, a dificuldade de interação dialógica em sala de aula.

O professor, como agente do controle social adota uma variante linguística muitas vezes distante das normas populares com as quais os alunos tanto se identificam.

As relações interativas, nesse sentido, dão-se dentro de uma conjuntura na qual o domínio da língua legítima se torna uma forte moeda de troca nas relações sobrevivência, instituindo-se um mercado linguístico no qual os preços são definidos pelos grupos de posse dessa competência linguística, cujas capacidades de produção são socialmente classificadas, configurando simultaneamente a capacidade de apropriação e sua apreciação.

A educação linguística consistente se sustenta em duas bases, a saber: o desenvolvimento da competência comunicativa integral e o desenvolvimento da consciência metalinguística[4] sobre o desempenho comunicativo de si próprio e dos seus interlocutores seja em textos orais e escritos

Retomando o compromisso de educação de Paulo Freire, cogita-se numa pedagogia da comunicação que vai contribuir amplamente com a afirmação dos direitos linguísticos do discente como parte essencial do fortalecimento de identidades sociais, da formação de cidadania em uma sociedade democrática.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1990.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Editora USP, 1998;

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

_____________. Educação como prática de liberdade. 21 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

VYGOTSKY, Lev Semyonovich. Pensamento e linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Notas:

[1] A chegada da mensagem ao povo era uma das principais preocupações da chamada geração de 1930 do modernismo literário brasileiro. A frase de Graciliano Ramos que compara o ofício da escrita à lavagem da roupa não por acaso foi escolhida pelo Grupo Editorial Record quando este decidiu reeditar e relançar a obra do autor: trata-se da síntese de todo um pensamento, que tem suas origens no conceito de intelectual orgânico.

[2]    Bourdieu definiu  habitus como disposições, estilos de vida, maneiras e gostos incorporados e campo como um espaço social que possui estrutura própria e, relativamente, autônoma em relação a outros espaços sociais, que tem uma lógica própria de funcionamento, estratificação e princípios que regulam as relações. A discussão de habitus se insere no modo de conhecimento que Bourdieu chamou de praxiológico,  que procura desvendar os mecanismos das  relações de poder e dominação social, transparecendo nas estratégias de manutenção da ordem social.

[3] No Brasil, aproximadamente 11 milhões de brasileiros com 15 anos ou mais não são capazes de escrever ou interpretar uma simples frase segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Ainda de acordo com a pesquisa, cerca de 18% de pessoas com 60 anos ou mais são analfabetos. Segundo os dados do Censo Escolar da Educação Básica, em 2020 a educação de jovens e adultos (EJA) começou com 3 milhões de matriculados, uma queda de 8,3% em relação a 2019. Essa redução ocorreu tanto na EJA de nível fundamental (-9,7%) quanto na de nível médio (-6,2%).


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Palavra Pedagogia Diálogo Signo Semântica Aprendizagem

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