Uma década depois da ‘caixa preta’

Mais de uma década depois do pacto sem precedentes “em favor de um judiciário mais rápido e republicano”

Fonte: Jota.Info

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Há exatos 10 anos, presidentes dos três Poderes da República se reuniam no Palácio do Planalto para anunciar um pacto sem precedentes “em favor de um judiciário mais rápido e republicano”. Tratava-se de um evento simbólico que representava o clímax de um processo de reforma que havia começado no início dos anos 90, mas só foi concretizado no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sob o comando de seu então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, mais de uma década depois.

Naquela quinta-feira, Lula e os então presidentes do STF (Supremo Tribunal Federal), Nelson Jobim, do Senado, José Sarney (PMDB-AP), e da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), reconheciam publicamente que “a morosidade dos processos judiciais e a baixa eficácia de suas decisões retardam o desenvolvimento nacional, desestimulam investimentos, propiciam a inadimplência e solapam a crença dos cidadãos no regime democrático”. Anunciavam, então, 11 temas prioritários que, pontualmente, modificariam legislações existentes em todas as áreas do Direito em busca da tal eficácia e qualidade da prestação jurisdicional.

Dias depois, exatamente em 30 de dezembro de 2004, a presidência da República sancionava a Emenda 45, ou a Reforma do Judiciário propriamente dita. Naquele pequeno documento, criava-se, após resistência dos magistrados, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), e instituía-se, mesmo sob contrariedade do Ministério da Justiça de então, a Repercussão Geral e a Súmula Vinculante.

A partir de hoje e até o fim do ano, o JOTA publica uma série de reportagens com o objetivo de contar os bastidores dessa história e tentar entender o que, depois de 10 anos, mudou para melhor e quais as mazelas ainda existentes na Justiça brasileira após a implementação de tais mudanças.

Começamos. A Justiça brasileira é hoje mais transparente do que há uma década. Uma série de informações básicas que há dez anos eram desconhecidas.

Quantos eram os juízes brasileiros? Mais: quanto ganham, como são remunerados e qual a carga de trabalho? Descobriu-se, naquele mesmo período, que a Justiça tinha cerca de 60 milhões de processos em tramitação, segundo os primeiros dados estatísticos, com uma taxa de congestionamento média (processos que entram e não são tocados no primeiro ano) de 70%.

Desafios. Aqui começa a parte preocupante da reforma: mesmo com todas as mudanças promovidas, temos hoje mais de 90 milhões de processos em tramitação, com os índices de morosidade praticamente imutáveis.

Se, por um lado, os novos procedimentos criados há dez anos criaram instrumentos para desafogar um pouco o acervo dos tribunais superiores, definitivamente não se conseguiu enfrentar o problema na porta de entrada da Justiça.

Mas, para entender todo esse processo e os dados amplamente divulgados atualmente, é primeiro preciso rememorar o que aconteceu até chegarmos onde estamos. Vale recordar, por exemplo, o primeiro discurso de Lula sobre o tema, nos primeiros meses de seu primeiro mandato. Thomaz Bastos, assim que tomou posse, levantou a bandeira da Reforma do Judiciário como prioridade de seu mandato. Politicamente, no entanto, ainda faltava o sinal verde de Lula para o jogo começar. Isso ocorreu em 22 de abril de 2003, em Vitória no Espirito Santo, durante a assinatura de um acordo de colaboração com o governo local para a área de segurança pública.

Em um dos discursos repletos de metáforas, o ex-presidente começou com uma crítica à falta de coordenação entre as polícias do Brasil, “como se fossem um time de futebol, onde cada jogador jogava para si e não percebia que o jogo é um esporte coletivo”. Abordou, em seguida, o desafio de enfrentar o que chamou de uma indústria multinacional do crime organizado, cuja solução do problema estaria ligada a um sistema Judicial justo, que não prendesse apenas os “bagrinhos”, mas também os mandantes. “Muitas vezes, a Justiça não age, enquanto Justiça, no cumprimento da Constituição, que diz que todos são iguais perante a lei. Muitas vezes, uns são mais iguais do que os outros e é o que eu chamo de ‘justiça classista’: uma Justiça que favorece uma classe”.

Diante de um auditório cheio, Lula então falou uma frase que ficou marcada durante a Reforma e que quase provocou a primeira crise entre os Poderes: “É por isso que nós brigamos a tanto tempo pelo controle externo do Poder Judiciário. Não é interferir na decisão de um juiz, mas é pelo menos saber como funciona a caixa-preta do Poder Judiciário, que muitas vezes parece intocável”.

Constituinte

Ao falar da briga de longos anos, Lula se referia ao processo da Constituinte — primeira tentativa de se criar um Conselho Nacional de Justiça, que não foi incluído no texto, já que o seu PT e a OAB (presidida então por Thomaz Bastos) queriam integrantes completamente externos ao Judiciário, quase uma plenária sindical. Em recente entrevista para a elaboração de um livro sobre os 10 anos da Reforma do Judiciário, a ser lançado pelo Ministério da Justiça esta semana, Nelson Jobim afirmou que um conselho totalmente externo contava com a resistência generalizada da magistratura e nunca seria aprovado daquela forma.

Após a Constituição de 1988, o tema da Reforma voltou à pauta em 1992, quando o então deputado federal Hélio Bicudo apresentou, em março daquele ano, uma proposta de Emenda Constitucional de número 96, que anos depois viria a tornar-se a Emenda 45.

A tramitação do texto viajou de relator em relator durante os anos 90, década não muito boa para a magistratura, graças aos escândalos do TRT, que levaram à prisão o juiz Nicolau dos Santos Neto e até à criação de uma CPI, em 1999, para investigar irregularidades no Judiciário. Por outro lado, o governo Fernando Henrique Cardoso focava todos os seus esforços em reformas econômicas, não priorizando os temas relativos à Justiça. Mesmo assim, sob relatoria de Zulaiê Cobra, então deputada do PSDB por São Paulo, a PEC 96 foi aprovada em junho de 2000.
Gilmar Mendes e Nelson Jobim lembram que o processo de aprovação foi complexo, já que sempre existiram lados divergentes na questão. De um lado, magistrados de tribunais superiores defendiam a existência de mecanismos para acelerar e racionalizar processos, mas eram contrários a um controle externo do Poder Judiciário. De outro, advogados representados pela OAB Nacional defendiam o oposto.

Jobim e Mendes ajudaram a negociar a aprovação, incluindo súmula vinculante e repercussão geral, a serem regulamentadas por lei, e um modelo de controle externo, tanto do Judiciário, como do Ministério Público, que garantisse a participação efetiva de integrantes de ambas as instituições. “Eu disse para a Zulaiê: aceita tudo e depois a gente resolve no Senado”. Para Gilmar Mendes, cada um queria uma coisa, mas naquele momento construiu-se modelo equilibrado. “A melhor reforma é aquela que passa, aquela possível”, disse ele.

Chegando no Senado, o tema continuou sem prioridade. Sob relatoria do advogado e ex-senador Bernardo Cabral (PMDB-AM), o texto começou a ser alterado profundamente e, se aprovado daquela maneira, teria de voltar à apreciação da Câmara. Foi então que chegou 2002.

Lula ganhou a eleição e escolheu Márcio Thomaz Bastos para ser Ministro da Justiça. Publicamente, transformou o tema em prioridade no discurso do Espirito Santo. Bernardo Cabral, por sua vez, que já havia conseguido aprovar dois pareceres modificando o texto da PEC 96 vinda da Câmara, não se reelegeu, deixando o tema sem relator. Para seu lugar foi indicado José Jorge, então integrante do opositor PFL. Sua atuação foi fundamental para garantir a aprovação da Emenda 45.

 Por Felipe Seligman

Palavras-chave: Constituição Ec 45 Reforma do Judciiário

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