Um novo Ato Institucional

A decisão de diminuir o número de vereadores nas Câmaras Municipais é um retrocesso no processo democrático.

Fonte: Folha de S. Paulo

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JOÃO HERRMANN NETO

A decisão de diminuir o número de vereadores nas Câmaras Municipais é um retrocesso no processo democrático. O que está por trás da fórmula jurídica é uma enorme antipatia, senão repulsa cultural, da sociedade brasileira pela representação parlamentar. Culpa do Legislativo? Alguma, porém pequena. Afinal o índice é muito menor de casos de estripulia moral ou ética por parte de vereadores, deputados provinciais ou nacionais e senadores do que de seus assemelhados nos outros Poderes ou nos diversos extratos corporativos.

O que se deduz da intenção na diminuição da representação proporcional do pensamento político é uma tentativa de aprofundamento do autoritarismo que emerge do Executivo com seu coadjuvante, o sistema presidencialista.

As eleições majoritárias levam a um resultado em que apenas um pensamento coletiviza-se, em torno de uma única pessoa, para a plural gama de interesses sociais que chega ao poder. O presidente, o governador e o prefeito galvanizam em torno de si uma vontade de expressar, através do poder individual, o desejo múltiplo das mudanças. Com o mandato fixo e arbitrado em um determinado número de anos, aquela manifestação eleitoral, focada num só instante de aferição das vontades, é entregue imutável ao governante, que baliza mais sua atuação pela votação obtida que pelos compromissos assumidos.

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Por que o Legislativo é incômodo? Porque ele é livre. E o que mais incomoda na democracia é a liberdade
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As mudanças, durante o mandato, de suas atitudes, da trajetória, dos rumos e até dos mesmos compromissos, numa palavra dura, significam traição aos votos obtidos. Que de resto torna-se irrelevante, pois a vontade do eleitor foi deixada para trás, lá, no momento da diplomação do eleito. Uma correção desse procedimento, que não existe entre nós, seria o "recall", que é chamar de novo às urnas os eleitores, para medir o exato cumprimento dos eleitos às suas plataformas. O mais conhecido levou Arnold Schwarzenegger ao governo da Califórnia. Outro, mais delicado, são as "listas eleitorais" na Venezuela de Chávez. Na imensa maioria dos casos, os governantes permanecem no exercício dos seus mandatos, mesmo fazendo verdadeiros esbulhos eleitorais. O Brasil presidencialista contemporâneo é recheado de exemplos de estelionatos dessa natureza.

Então por que o Legislativo? Porque ele afere, capta, as mais variadas expressões sociais pelo voto, desde as minorias num instante caladas até as mais expressivas maiorias conservadoras. E tudo por dentro de partidos políticos que, estes sim, são a expressão dos desejos coletivos que se extraem da cidadania. Fala-se que são eleitas pessoas despreparadas, incapazes, energúmenas, que homens e mulheres muito mais qualificados não têm mandatos; mas prevalece o aforisma, os que não gostam de política são governados pelos que dela gostam.

O voto no Legislativo é proporcional, não expresso numa única vontade. Mesclam-se camadas sociais, pensamentos filosóficos e até religiosos e compromissos de classe. É uma vitamina política que sai do liqüidificador eleitoral que é a urna. As vontades dos vereadores são permanentemente postas em xeque pelos seus eleitores. Pertencem ao seu cotidiano desde as mais promíscuas trocas de interesse até as mais legítimas vozes de mudança. Um vereador o é na casa onde habita, na loja onde trabalha, no clube que freqüenta, na roda de amigos ou na sessão legislativa. Os humores da sociedade contaminam-no. Não há vacina contra povo no exercício do Legislativo municipal.

Fala-se em economia, em gastar menos dinheiro, em contratar menos gente, em menos veículos, em menos corrupção. No orçamento brasileiro do poder público, o de menor valor é o do Legislativo, até porque ele é fixo em percentual de transferências do Executivo, que o alimenta em duodécimos, independentemente do número de parlamentares ou da atuação da Casa de Leis. Somente a vigilância social é que pode avaliar a relação custo/benefício de uma Câmara de Vereadores, submetendo seus membros ao filtro eleitoral.

Por que o Legislativo é incômodo? Porque ele é livre. E o que mais incomoda na democracia é a liberdade. Ser democrata é uma das mais árduas tarefas da cidadania.

Reduzir o número de representantes proporcionais mira o autoritarismo. De duas mãos. Numa, uma Câmara pequena é fácil para o prefeito manusear. Na outra, aos opositores cassar. Uma representação numerosa inibe a manipulação de quem quer que seja e deixa a corrupção de valores tão cara que não é vantajosa para nenhum poder que a queira utilizar. Nós já fomos governados por coroa, por ditaduras, por caudilhos. Não deixemos cassar a democracia. Sugar da sociedade o Legislativo plural e expressivo é amesquinhar o poder do povo, é apunhalar a sua vontade.

Começam tirando os vereadores. Um dia chegam ao Congresso Nacional, como no dia em que nos levaram a liberdade. Ter medo da representação popular, numerosa e proporcional, acusá-la de gastos e equívocos, eivá-la de adjetivos indecorosos é uma agressão ao processo democrático. Pregar contra a vereança é um ato de insurreição, um golpe, que começa pequeno como se fosse um anseio e termina sepultando os vagidos dos futuros líderes da nação.

A democracia não nasce nos salões, nos quartéis, nas elites. As trevas do autoritarismo combatem-na. A chama da liberdade se incendeia na alma de cada um de nós. Uma elite não reproduz um povo, mas um povo forma sua elite. A democracia não é uma vontade efêmera, uma tática provisória, é uma prática permanente. Uma sentença, qual um Ato Institucional, pode ferir o seu futuro. O Legislativo é o berço republicano do Brasil democrático de todos os brasileiros.

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João Herrmann Neto, 58, engenheiro agrônomo, é deputado federal pelo PPS-SP.

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