Mutação constitucional como pressuposto da repercussão geral no Recurso Extraordinário

Tassus Dinamarco, Advogado, Pós-graduando em Direito Processual Civil na Universidade Católica de Santos.

Fonte: Tassus Dinamarco

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Tassus Dinamarco ( * )

A emenda constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004(1), através de seu art. 1.º, dentre outras inovações ao ordenamento jurídico, introduziu no art. 102 da Constituição Federal o § 3.º com a seguinte redação: "No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros"(2).

Já analisamos, em outra oportunidade, a constitucionalidade deste novo parágrafo acrescentado pela reforma constitucional, in verbis: "Com efeito, cuidou a Lei n.º 11.418, de 19 de setembro de 2006, no plano infraconstitucional, da regulamentação do § 3.º do art. 102 da Constituição, instituindo através de seu art. 2.º novos dispositivos ao texto primitivo do CPC (art. 543-A, §§ 1.º/7.º, e art. 543-B, §§ 1.º/5.º), dizendo em seu art. 3.º, todavia, caber ao Supremo Tribunal Federal, em seu Regimento Interno, estabelecer as normas necessárias à execução da respectiva lei"(3); "A exigência da Repercussão Geral, já me adianto, é constitucional. Além de estar prevista na própria Constituição através do poder reformador (derivado ou de 2.º grau) - argumento por si só pobre pois o ordenamento prevê controle repressivo de constitucionalidade cuja missão é justamente retirar do Texto Magno emenda que entre em colisão com o que foi determinado pelo poder constituinte (originário ou de 1.º grau) -, no art. 102, § 3.º (EC 45), remetendo-se à Lei 11.418/2006 sua regulamentação, visou esse novo requisito de admissibilidade dar efetividade às decisões do Supremo Tribunal Federal, guardião precípuo da CF cujo dever é também dar tutela tempestiva ao direito da parte, o que se consegue, diante de nossa realidade, impedindo inúmeras pilhas de processos repetitivos cuja matéria já foi decidida pela Corte noutras ocasiões (matéria pacificada) ou, ainda, que não têm, sob o aspecto econômico, político, social ou jurídico, 'Repercussão Geral' responsável por levar tal tipo de demanda ao mais alto tribunal judiciário do País. Alexandre de Moraes lembra nesse aspecto que 'Para garantir a efetividade das decisões do STF, bem como a celeridade processual, a lei estabelece que, negada a existência de repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, reconhecendo efeitos vinculantes a essa decisão' (ob. cit. p. 541). Ora, nada mais constitucional do que se criarem instrumentos legais para que o Estado possa prestar jurisdição útil e adequada, mesmo que, em algum ponto, se restrinja a admissibilidade de alguma via recursal, ou, não só isso, se filtre o que pode e o que deve chegar ao Pretório Excelso quando violada a Constituição e desde que demonstrada tal violação. Sem isso, a falsa idéia de que admitir indistintamente uma variedade de recursos de forma desmesurada ou mesmo não prevendo requisitos especiais de admissibilidade para que a matéria chegue ao tribunal, é mediatamente negar tutela jurídica ou diminuí-la drasticamente até a inutilidade, pois mais vale um julgamento de âmbito nacional ou coletivo solucionado efetivamente - aqui entra o tempo do processo - do que a previsão geral e abstrata de uma porção de recursos ou meios impugnativos previstos no ordenamento sem que se consiga - imaginando-se que todas essas demandas fossem razoáveis ao ponto de chegarem até a Corte - pacificar os direitos individualmente reclamados, como vem ocorrendo nos últimos tempos. O filtro no Recurso Extraordinário através da Repercussão Geral, além disso, previne recursos tautológicos. Julgado pelo Supremo um RE de âmbito nacional (questão relevante do ponto de vista econômico, por exemplo), superando-se a exigência de Repercussão Geral sob a dobra da transcendência, presta-se essa decisão a impedir outras no mesmo sentido e que só se diferenciam do julgado paradigma pelo pólo da demanda. A matéria, entretanto, é a mesma, cuja objetividade alcança todos e, por isso, deve ser barrada quando a parte não conseguir demonstrar à Corte a singularidade do caso concreto. A garantia fundamental da duração razoável do processo (art. 5.º, LXXVIII, da CF) aliada à garantia fundamental constituinte de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5.º, XXXV, da CF), exigindo-se tempestividade dos atos da Justiça, afasta, sem dúvida, qualquer menção no sentido da inconstitucionalidade de normas que visem justamente prestar tutela efetiva àquele que se socorre do Estado, mesmo que, à primeira vista, haja estrangulamento - na verdade racionalidade funcional - de algum instituto jurídico utilizado como instrumento à realização dum direito pretendido. Foi o que ocorreu com o Recurso Extraordinário, Súmulas Vinculantes e Uniformização de Jurisprudência naquilo em que não cabe mais discussão pela superação de determinada matéria nos casos em que os efeitos desses julgados são objetivos à população"(4).

Julgados do Supremo Tribunal Federal analisaram a demonstração ou não da repercussão geral no caso concreto. Ficou demonstrada, ainda, sua constitucionalidade(5).

Feita esta introdução sobre a repercussão geral no recurso extraordinário, vamos envolver o instituto com a interpretação constitucional evolutiva. Sua importância reside no fato de que o recorrente do RExtr(6) deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, as quais podem nascer da mutabilidade da norma excelsa ao longo de sua vigência(7), evolução interpretativa que não fica alheia em questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico(8).

Com citação de Miguel Reale, Paulo Bonavides, Anna Candida da Cunha Ferraz, Alberto Ramón Real, Woodrow Wilson, P. M. Chierchia, Seabra Fagundes, Raul Machado Horta, Morton J. Horwitz, dentre outros, súmulas do Supremo Tribunal Federal, julgados da Suprema Corte dos Estados Unidos e um interessante julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul(9), o constitucionalista carioca Luís Roberto Barroso enfrenta o que vem a ser interpretação constitucional evolutiva ou mutação constitucional(10). Diz Roberto Barroso, em síntese: "Sem que se opere algum tipo de ruptura na ordem constituída - como um movimento revolucionário ou a convocação do poder constituinte originário -, duas são as possibilidades legítimas de mutação ou transição constitucional: (a) através de uma reforma do texto, pelo exercício do poder constituinte derivado, ou (b) através do recurso aos meios interpretativos. A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes. Essa interpretação evolutiva se concretiza, muitas vezes, através de normas constitucionais que se utilizam de conceitos elásticos ou indeterminados, como os de autonomia, função social da propriedade, redução das desigualdades etc., que possam assumir significados variados ao longo do tempo. Por vezes, uma emenda constitucional, introduzindo modificação em algum subsistema constitucional, pode alterar a compreensão de conceitos e institutos já existentes"(11).

Citando Pedro de Veja, James Bryce, Linares Quintana, José Guilhermo Andueza Acuña, Karl Loewenstein, G. Jellinek, Anna Candida da Cunha Ferraz, Meirelles Teixeira, Diego Valdés, Luís Carlos Sáchica, K. C. Wheare, Uadi Lammêgo Bulos, Konrad Hesse, Hsü-Dau-Lin, Christian Starck, Carlos Cossio, Edward S. Corwin, Gaetano Arangio-Ruiz, Alessandro Pace, Saul K. Padover, dentre outros, o paulista José Afonso da Silva abordou o tema mutações constitucionais na Conferência proferida na Faculdade de Direito da UFMG(12), em 8 de outubro de 1998, em comemoração dos dez anos da Constituição de 1988(13).

Em conclusão, o Supremo Tribunal Federal(14), em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral(15). De fato, para efeito da repercussão geral(16) será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa(17), cláusulas gerais que deverão ser demonstradas(18) pelo recorrente no caso concreto sem que haja necessariamente inovação normativa. A mutação constitucional(19), nesses casos, abarca textos já vigentes(20) e que sirvam de pressuposto da repercussão geral no recurso extraordinário(21) a ser conhecido pela Corte Suprema desde que respeitados tais requisitos de admissibilidade, como foi visto. Ressalve-se, entretanto, o apontamento feito por Roberto Barroso ao dizer que "Naturalmente, a interpretação evolutiva, sem reforma da Constituição, há de encontrar limites. O primeiro deles é representado pelo próprio texto, pois a abertura da linguagem constitucional e a polissemia de seus textos não são absolutos, devendo estancar diante de significados mínimos. Além disso, também os princípios fundamentais do sistema são intangíveis, assim como as alterações informais introduzidas pela interpretação não poderão contravir os programas constitucionais"(22).


Notas:

* Tassus Dinamarco, Advogado, Pós-graduando em Direito Processual Civil na Universidade Católica de Santos. [ Voltar ]

1 - Instituiu a Reforma do Poder Judiciário. Voltar

2 - Título IV, Capítulo III, Seção II, da Constituição Federal. Voltar

3 - Repercussão geral, Súmula Vinculante e Autos Virtuais. Novas perspectivas de efetividade no Processo Civil Constitucional. Disponível em http://jusvi.com/. Voltar

4 - Repercussão geral, Súmula Vinculante e Autos Virtuais. Novas perspectivas de efetividade no Processo Civil Constitucional. Disponível em http://jusvi.com/. Voltar

5 - RE 559.607-QO, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 26-9-07, Informativo 481; RE 556.664, RE 559.882 e RE 560.626, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 12-9-07, Informativo 479; AI 664.567-QO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 18-6-07, DJ de 6-9-07. Voltar

6 - Recurso extraordinário. Voltar

7 - Vide o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal em matéria criminal sobre mutação constitucional cujo fundamento se aplica ao presente estudo: "Tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, modificando sua jurisprudência, assentou a competência dos Tribunais de Justiça estaduais para julgar habeas corpus contra ato de Turmas Recursais dos Juizados Especiais, impõe-se a imediata remessa dos autos à respectiva Corte local para reinício do julgamento da causa, ficando sem efeito os votos já proferidos. Mesmo tratando-se de alteração de competência por efeito de mutação constitucional (nova interpretação à Constituição Federal), e não propriamente de alteração no texto da Lei Fundamental, o fato é que se tem, na espécie, hipótese de competência absoluta (em razão do grau de jurisdição), que não se prorroga. Questão de ordem que se resolve pela remessa dos autos ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, para reinício do julgamento do feito" (HC 86.009-QO, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 29-8-06, DJ de 27-4-07).Voltar

8 - Vide os arts. 543-A e 543-B, do Código de Processo Civil, na redação determinada pela Lei n.º 11.418, de 19 de dezembro de 2006. Voltar

9 - ADV, 20:313, Ap. Cr. 70.000.586.263, TJRS, 16 fev. 2000, rel. Des. Aramis Nassif, apud Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, 6ª ed., 4ª tiragem, Saraiva, SP, 2008, p. 149.Voltar

10 - Ou, ainda, mutação constitucional informal, segundo André Ramos Tavares, in Curso de Direito Constitucional, Saraiva, SP, 2002, p. 77. Voltar

11 - Interpretação e Aplicação da Constituição, ob. cit., p. 146. Voltar

12 - Universidade Federal de Minas Gerais. Voltar

13 - Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a Constituição), 1ª ed., 3ª tiragem, Malheiros, SP, 2007, pp. 279/298. Voltar

14 - Vide o art. 101 e ss. da Constituição Federal. Voltar

15 - Art. 543-A, caput, do CPC. Voltar

16 - Vide a Lei n.º 11.418, de 19 de dezembro de 2006. Voltar

17 - Art. 543-A, § 1.º, do CPC. Voltar

18 - Vide o art. 333, I, do CPC, como fonte subsidiária de aplicação. Voltar

19 - Ou interpretação constitucional evolutiva segundo Luís Roberto Barroso, in Interpretação e Aplicação da Constituição, ob. cit. , pp. 145-146. Voltar

20 - Não só vigentes, mas também com status constitucional. Voltar

21 - Vide o art. 541 e ss. do CPC; v. o art. 321 e ss. do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.Voltar

22 - Interpretação e Aplicação da Constituição, ob. cit., p. 149.Voltar

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