Law, Economics and Democracy. O componente organizacional de ouvidoria nas Instituições Financeiras e a re-personificação do consumidor

Rafael Augusto De Conti, Bacharel em Filosofia pela USP e formado em Direito pela MACKENZIE, é mestrando em Ética e Filosofia Política por aquela universidade e atua como Advogado societário da Banca D'Acol Cardoso, Fontes e Braga Advogados (http://www.dcfbadvogados.com.br). Site: http://www.rafaeldeconti.pro.br. E-mail: rafaeldeconti@usp.br

Fonte: Rafael Augusto de Conti

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SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Análise dos normativos que balizam o componente organizacional de ouvidoria; 3. Hipóteses de abuso do consumidor.

1. Introdução

É fato notório que o Poder Público deve controlar a "mão invisível" de Adam Smith, sob pena de extremo comprometimento do equilíbrio nas relações econômicas.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) surgiram justamente da constatação histórica de que um mercado não regulado é altamente perigoso para a sociedade.

Assim, é obrigação do Poder Público fazer prevalecer o princípio jusfilosófico da equidade nas relações econômicas em detrimento das desigualdades materiais de condições dos sujeitos participantes dos negócios jurídicos.

É a partir desta perspectiva que a relação do Direito com a Economia pode ser compreendida como uma relação em que aquele permite o desenvolvimento saudável desta ao regulá-la com o intuito de trazer a maior otimização possível nas interações entre os agentes econômicos. Esta regulação, dentre muitos fatores constitutivos, é formada pela presença de iguais condições de competição, inclusive, no âmbito do contencioso jurídico.

Ora, onde a desigualdade é extrema, torna-se difícil o desenvolvimento concomitante dos pólos da relação de troca, aos quais, frise-se, não se deve negar a necessidade de serem minimamente desiguais para a continuidade do desenvolvimento social dentro da lógica capitalista.

É com base nestas premissas que o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central editaram normativos referentes à necessidade das Instituições Financeiras terem uma Ouvidoria, cujo fim reside no diagnóstico e tentativa de solução de eventuais problemas ocorridos com os clientes-consumidores.

Tal normatização acerca da Ouvidoria deve ser compreendida como elemento que corrobora para a re-personificação do indivíduo em uma relação em que ele é sempre reduzido a um número pela outra parte, como apontou o filósofo húngaro Lukács (1.875-1.971) a partir da sua idéia de reificação (coisificação) do sujeito.

Esta busca da devolução da identidade do sujeito-consumidor, que também é fomentada em outras áreas, como no Marketing (lembrem-se da propaganda do Banco do Brasil acerca do "batizamento" das suas agências com nomes de clientes), corrobora, ainda, com a transparência nas relações econômicas.

Assim, um órgão como uma ouvidoria, além de trazer uma maior confiabilidade para os consumidores e um maior nível ético-qualitativo de governança, permite mensuração mais precisa dos problemas enfrentados pelos consumidores, o que é a primeira etapa de qualquer melhoria de processo.

2. Análise dos normativos que balizam o componente organizacional de ouvidoria

Dos normativos editados (Resoluções CMN 3.477/07 e 3.489/07, Circular 3.370/07 e Carta Circular 3.298/08), é importante atentarmos para as exigências feitas pelo Poder Público às Instituições Financeiras, o que, sob perspectiva inversa, é o mesmo que atentarmos para os direitos dos clientes-consumidores.

Quanto à estruturação societária do componente organizacional da ouvidoria, devemos observar, primeiramente, que tal órgão deve ser segregada da unidade executora da atividade de auditoria interna, o que se justifica pela busca da maior imparcialidade possível na condução dos trabalhos dos ouvidores.

Também pela busca da imparcialidade, dispõem os normativos (i) que se os cargos de ouvidor e de diretor responsáveis pela ouvidoria forem ocupados pela mesma pessoa, esta encontrar-se-á impedida da ocupação de quaisquer outros cargos dentro da instituição; (ii) que caso não haja tal acúmulo de cargos em uma mesma pessoas, esta só poderá ocupar outros cargos desde que não ocupe o de Administração de Recursos de Terceiros; e (iii) que é função do diretor elaborar relatório semestral, o qual deverá ser revisado por auditoria externa e enviado ao Banco Central.

Além disso, há disposição expressa de que os integrantes da ouvidoria precisam ser considerados aptos em exame de certificação, organizado por entidade de reconhecida capacidade técnica, que abranja temas relacionados à ética, aos direitos e defesa do consumidor e à mediação de conflitos, bem como, há disposição expressa de que o serviço de ouvidoria deve ser gratuito.

Por tais disposições podemos (i) referendar a idéia segundo a qual cada vez mais se busca como ideal nas relações econômicas a re-personificação do consumidor e (ii) apreender a democratização do acesso a mecanismos/instrumentos de solução de problemas nas relações de consumo.

É dizer: com o componente organizacional da ouvidoria o consumidor passa a ter voz mais ativa, porque, como o próprio nome do órgão indica, ele passa a ser, de fato, ouvido.

Corroborando com estas idéias, a normatização expressou que: (i) deve ser dada ampla divulgação sobre a existência da ouvidoria, bem como de informações completas acerca da sua finalidade e forma de utilização, inclusive por meio dos canais de comunicação utilizados para difundir os produtos e serviços da instituição; (ii) deve-se garantir o acesso dos clientes e usuários de produtos e serviços ao atendimento da ouvidoria, por meio de canais ágeis e eficazes, respeitados os requisitos de acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, na forma da legislação vigente; (iii) deve-se disponibilizar serviço de discagem direta gratuita quando tiverem como clientes pessoas físicas ou pessoas jurídicas classificadas como microempresas na forma da legislação própria; (iv) deve-se manter sistema de controle atualizado das reclamações recebidas, de forma que possam ser evidenciados o histórico de atendimentos e os dados de identificação dos clientes e usuários de produtos e serviços, com toda a documentação e as providências adotadas, observando-se, ainda, que tais informações devem ser armazenadas por 5 anos.

Em segundo lugar, precisamos atentar para as atribuições da ouvidoria, quais sejam, (i) receber, registrar, instruir, analisar e dar tratamento formal e adequado às reclamações dos clientes e usuários de produtos e serviços que não forem solucionadas pelo atendimento habitual realizado por suas agências e quaisquer outros pontos de atendimento; (ii) prestar os esclarecimentos necessários e dar ciência aos reclamantes acerca do andamento de suas demandas e das providências adotadas;

(iii) informar aos reclamantes o prazo previsto para resposta final, que deverá ser enviada em até 30 dias; (iv) elaborar e encaminhar à auditoria interna, ao comitê de auditoria, quando existente, e ao conselho de administração ou, na sua ausência, à diretoria da instituição, ao final de cada semestre, relatório quantitativo e qualitativo acerca da atuação da ouvidoria, com a conseqüente proposição ao conselho de administração ou, na sua ausência, à diretoria da instituição, de medidas corretivas ou de aprimoramento de procedimentos e rotinas, sendo que o relatório deverá permanecer à disposição do Banco Central do Brasil pelo prazo mínimo de cinco anos na sede da Instituição Financeira.

Em terceiro lugar, devemos observar que o estatuto ou o contrato social da Instituição Financeira deve conter, de forma expressa, não apenas as atribuições da ouvidoria e os critérios de designação, de destituição e duração do mandato do ouvidor, mas, também, deve conter compromisso expresso da instituição no sentido de (i) criar condições adequadas para o funcionamento da ouvidoria, bem como para que sua atuação seja pautada pela transparência, independência, imparcialidade e isenção; e (ii) assegurar o acesso da ouvidoria às informações necessárias para a elaboração de resposta adequada às reclamações recebidas, com total apoio administrativo, podendo requisitar informações e documentos para o exercício de suas atividades.

Note-se como houve o estabelecimento, de modo explícito, da responsabilidade das Instituições Financeiras quanto à má operacionalização do componente organizacional de ouvidoria.

3. Hipóteses de abuso do consumidor

Por fim, vale lembrarmos o Anexo da Carta-Circular 3.298, o qual especifica as ocorrências no âmbito do órgão sob análise que devem ser relatadas pelas Instituições Financeiras ao Banco Central do Brasil (BCB).

É importante compreender que tais ocorrências, a seguir transcritas, mostram-se como as hipóteses de abuso do consumidor e, portanto, acabam por explicitar as necessidades sociais que engendraram a normatização deste componente organizacional que, com maestria, conjuga Democracia, Economia e Direito.

- Atendimento: Reclamações envolvendo insatisfação com o atendimento prestado pela instituição ou por seus prepostos, tais como questões relativas a: (i) requisitos de acessibilidade para pessoas portadoras de deficiência; (ii) atendimento prioritário; (iii) restrições ao uso de caixa convencional ou algum canal de atendimento; (iv) discriminação entre cliente e não-cliente; (v) venda casada; (vi) produtos e serviços não solicitados (vii) despreparo de funcionários ou prepostos; (viii) não fornecimento ou fornecimento incompleto de informações ou de documentos; (ix) descumprimento dos horários e feriados bancários; (x) desrespeito, ofensa, constrangimento ou violência praticada por funcionário, preposto ou contratado; (xi) dificuldade em contatar gerente, centrais de atendimento telefônico, SAC, ouvidoria, etc; (xii) questões relativas à solução de problemas (exemplo: demorada, inadequada), previsão de saque, funcionamento de equipamentos (exemplo: terminais de auto-atendimento, porta giratória, etc), sistemas e sítio na internet (exemplo: "fora do ar", falhas, erros etc), filas.

- Cheques: Reclamações envolvendo cheques, como, por exemplo: (i) retenção, não fornecimento de talonário ou fornecimento indevido; (ii) devolução ou liquidação indevida; (iii) questões relativas à sustação, contra-ordem, cancelamento etc; (iv) descumprimento de prazos de liquidação; (v) inclusão/exclusão indevida ou demora na exclusão do cliente do Cadastro de Cheques sem Fundos (CCF); (vi) falta de comunicação ao cliente da inclusão no CCF.

- Conta-Corrente: Reclamações envolvendo abertura, movimentação e encerramento de conta-corrente e conta-salário, tais como: (i) abertura de conta-corrente sem documentação; (ii) inobservância de fornecimento de cartão magnético de débito ou talonário; (iii) questões associadas com o cartão magnético de débito; (iv) obstrução à abertura de conta salário; (v) bloqueio da conta; (vi) débitos não autorizados ou decorrentes de erros operacionais pela Instituição; (vii) saques não reconhecidos; (viii) depósitos não efetivados; (ix) execução de transferências sem autorização; (x) descumprimento de ordens de saque, de débito para pagamento (exceto de cheques) ou de débito automático; (xi) descumprimento, execução incompleta ou incorreta de DOC, TED ou de outras ordens de pagamento e de transferência (exceto cheque); (x) descumprimento, execução incompleta ou incorreta de compensação de títulos ou de outros papéis.

- Operações de Crédito: Reclamações envolvendo empréstimos, financiamentos, arrendamentos mercantis, operações de câmbio e outros créditos, tais como: (i) descumprimento de prazo de liberação de crédito ou a não liberação dos valores ou da carta de crédito; (ii) questões relacionadas às pretensões, juros ou saldo devedor; (iii) efetivação de operações de crédito não contratadas, incluindo adiantamento a depositantes; (iv) questões relacionadas à liquidação antecipada (exceto tarifa), à portabilidade da operação e à renegociação da dívida; (v) questões relacionadas ao registro do cliente no Sistema de Central de Risco (SRC) ou em sistemas públicos ou privados de proteção ao crédito (exceto CCF); (vi) questões associadas ao cheque especial (exemplo: contratação, rescisão, limite, etc.); (vii) questões associadas a operações de arrendamento mercantil; (viii) questões associadas a operações de câmbio.

- Cartão de crédito: Reclamações envolvendo contratação, limite, cancelamento e outras questões associadas ao cartão de crédito.

- Aplicações, investimentos e Custódia de Valores: Reclamações envolvendo poupança e aplicações financeiras, tais como: (i) aplicação, resgate ou transferência sem autorização; (ii) não execução ou descumprimento de prazo de ordem de aplicação ou de resgate, inclusive as automáticas; (iii) descumprimento, execução incompleta ou incorreta de compensação ou liquidação de títulos ou de outros papéis (exceto cheque); (iv) juros, desvio ou uso de títulos e valores sob custódia da instituição sem autorização do cliente; (v) questões relacionadas à abertura, movimentação, encerramento de caderneta de poupança e ao cartão poupança.

- Tarifas e Assemelhados: Reclamações envolvendo tarifas, comissões, taxas ou quaisquer valores cobrados a título de remuneração por serviço prestado, incluindo as sobre: (i) cobranças indevidas ou não previstas em contrato; (ii) falta de transparência contratual em questões relativas à cobrança de tarifas e outros encargos; (iii) falta de transparência na identificação do que está sendo cobrado no extrato do cliente; (iv) cobrança sem a devida contraprestação de serviços, indisponibilidade ou a dificuldade acesso ao tarifário na agência; (v) elevações injustificadas dos valores; (vi) falta de comunicação sobre cobrança de novas tarifas ou elevação de valor das existentes.

- Publicidade enganosa ou abusiva: Reclamações envolvendo a divulgação ou a omissão de fato ou informação, ou a promessa com o intuito de: (i) ludibriar ou induzir o cliente a erro; (ii) prejudicar a concorrência; (iii) impor, aliciar ou coagir o cliente.

- Relação Contratual: Reclamações envolvendo contratos, tais como: (i) violação de cláusulas contratuais; (ii) falta de transparência (exemplo: multas, responsabilidades e penalidades a que o cliente está sujeito etc); (iii) práticas não eqüitativas; (iv) não fornecimento de cópia do contrato ao cliente assim que formalizado.

- Contemplação (Consórcio): Reclamações de consórcios envolvendo a contemplação de bens ou de cartas de crédito, tais como: (i) adoção de critérios para contemplação não previstos em contrato; (ii) não realização de sorteio por falta de recurso; (iii) quitação sem que o consorciado tenha sido contemplado; (iv) dificuldade ou não liberação do crédito ou do bem; (v) imposição ou coação para que o consorciado contrate de terceiros serviços inerentes à entrega do bem ou serviço objeto de contemplação.

- Encerramento de Grupos (Consórcio): Reclamações de consórcios envolvendo o encerramento de grupos, tais como a retenção de valores em caso de rescisão de contrato de adesão ou de encerramento de grupo.

- Distribuição de Sobras e Rateio de Perdas e Quota-parte (Cooperativas): Reclamações de cooperativas envolvendo quotas-parte, distribuições de sobre e rateio de perdas.

- Outros temas: Reclamações de situações não previstas nos temas anteriores, tais como: (i) golpes (exemplo: oferta de crédito, que não se concretizam, por parte de empresas ou pessoas físicas que não sejam instituições financeiras, utilizando o nome da instituição sem se conhecimento); (ii) fornecimento de numerário falsificado; (iii) fraudes praticadas por funcionários, prepostos ou por terceiros contra clientes ou não-clientes; (iv) reclamações oriundas da rede de correspondentes no país; (v) sigilo bancário. RADC. São Paulo, 07.03.2008.


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