Juiz boca da lei

Valeria Figueiró Santoro, advogada e pesquisadora. Leandro de Mello Schmitt advogado e professor de Direito.

Fonte: Leandro de Mello Schmitt e Valeria Figueiró Santoro

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Valeria Figueiró Santoro e Leandro de Mello Schmitt ( * )

Recentemente, uma importante personalidade da cúpula do Poder Judiciário brasileiro afirmou, categoricamente, que ao juiz não é dado criar a norma, apenas aplica-la. Aplicação esta que decorre de interpretação literal do texto extraído da norma a fim de compreender-lhe o sentido. Irresignado com o argumento de autoridade, jornalista de grande meio de comunicação questionou, então, como eram possíveis duas interpretações, pelo mesmo tribunal, a partir de uma mesma norma aplicada a casos análogos.

A resposta dada, infelizmente, passou longe daquela por todos os presentes esperada.

Quanto o ilustre magistrado da cena acima referida fez tal afirmação, esqueceu de lembrar, talvez a fim de transferir responsabilidades, embora pudesse ficar impedido pela tradição exacerbadamente positivista, as desordens decorrentes do excesso de direito, do direito aplicado ao pé da letra, como lembrado por François Ost, ou, ainda, como caracterizado pelo jurista norte-americano Grant Gilmore, a "orgia das leis".

O welfare state, na busca frenética pela "segurança jurídica" não conseguiu nada mais do que criar um ambiente de "insegurança jurídica", tudo por que a quantidade de leis existentes em nosso país é algo espetacular, de causar inveja aos países mais desenvolvidos, fazendo com que o "Estado legislativo" se transforme em "Estado burocrático", sem se dar conta de que todos os valores estão expressos na Constituição da República, estando nela os deveres do legislador, do juiz e do administrador, assim como seus limites, não raro coincidentes com os direitos dos cidadãos.

Impossível aceitar-se a fala de ilustre magistrado que, com todo o respeito, foi infeliz ao reduzir o papel do Poder Judiciário, sendo este, em países materialmente democráticos, a maior de todas as garantias dos indivíduos e grupos sociais, sempre preparado para agir quando estes provocarem a prestação jurisdicional necessária para afastar abusos, muitas vezes, cometidos pelo próprio legislador, que, intencionalmente, ou, por "ingenuidade", tudo legisla para nada normatizar. Tem o Direito a função social, em nome desta mesma "segurança jurídica" de "estabilizar as expectativas e tranqüilizar as angústias" (François Ost), e, para isto, não basta que o Estado-Juiz apenas limite seu agir nos deveres de "proteger" e "reprimir", mas sim, que cumpra seu papel contido na Constituição cidadã e torne efetivos os direitos lá previstos, muitas vezes, é claro, por uma construção dogmática que foge à boa lógica, devendo ser objeto de "aclaramento" por parte do juiz que, como Hermes, deverá compreender para interpretar, sem dedutivismos, concretizando direitos, fazendo prevalecer os valores contidos no modelo de Estado Democrático (e Social) de Direito (Lenio Streck). Assim, é possível afirmar, seguindo a escola norte-americana do Critical legal Studies, que o Direito existe por que depende da vontade dos juízes, ou seja, o sentido de uma proposição normativa depende do contexto, e o contexto é vivido pelo magistrado (circulo hermenêutico de Gadamer), logo, pode-se dizer que o Direito se realiza na decisão judicial.

Também, é interessante partimos do pressuposto de que o Direito não se contenta em defender posições instituídas, mas sim, exerce igualmente funções instituintes (C. Castoriadis, citado por François Ost), o que supõe a criação de determinadas significações sociais e a (des) construção das significações que se opõem aos valores do Estado Democrático. E isto, inegavelmente, ocorre a partir da tarefa criativa do juiz, exercendo-a pela jurisprudência. O hermeneuta por excelência é o juiz. Não o juiz boca da lei, o qual nos foi vendido pelo positivismo jurídico, mas sim, aquele que, sujeito histórico que conta com estruturas prévias de pré-compreensão, vai buscar a superação do direito enquanto mero sistema de regras, tendo como norte a concretização dos princípios introduzidos no discurso constitucional (Lenio Streck).

Por fim, mas longe de encerrar o debate, tem-se como algo difícil de negar que o juiz deverá aceitar este papel que não é uma mera faculdade, mas sim, uma obrigação decorrente da ordem normativo -"constitu (ida) cional", ou seja, verdadeira função do Estado que é prestar a jurisdição de modo a tornar efetivos os programas sociais previstos na Lei Maior. Portanto, não se trata de negar a lei, mas sim, pelo contrário, do "atuar da legislação", o que possibilita dizer ainda que, em alguma medida, "toda interpretação é criativa" (M. Cappelletti), e não, o mero pronunciamento das palavras contidas na lei como queria Montesquieu.


Notas:

* Valeria Figueiró Santoro, advogada e pesquisadora.

Leandro de Mello Schmitt advogado e professor de Direito. [ Voltar ]

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