A insuficiência da teoria da argumentação jurídica frente à hermenêutica filosófica

Luciano Vaz Ferreira, Advogado, Mestre em Direito Público (UNISINOS), na linha de pesquisa "Sociedade, Transnacionalidade e Novos Direitos", Professor das Faculdades Porto-Alegrenses (FAPA).

Fonte: Luciano Vaz Ferreira

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Luciano Vaz Ferreira ( * )

Resumo: O presente artigo visa apresentar a insuficiência das teorias da argumentação, representada nos pensamentos de Robert Alexy e Neil MacCormick como resposta ao já superado positivismo. Para isso, suas falhas serão abordadas sobre o prisma da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer e Lenio Streck.

Teoria do Direito. Teoria da Argumentação. Hermenêutica Filosófica

Abstract: This article will show the insufficiency of legal argumentation theories, represented by the thinking of Robert Alexy and Neil MacCormick, as a reply to the already overcame positivism. To be successful, their fails will be approached by the vision of philosophical hermeneutic from Hans-Georg Gadamer and Lenio Streck.

Legal Theory. Legal Argumentation Theory. Philosophical Hermeneutic

1. Introdução

O positivismo, ao longo do desenvolvimento do pensamento jurídico, revelou-se insuficiente na quadra da história em que nós vivemos. Dentro das doutrinas pós-positivistas, cumpre papel de destaque, com boa aceitação no meio acadêmico, as teorias da argumentação, que possuem como expoentes Robert Alexy, representante da raiz romano-germânica, e Neil MacCormick, oriundo da common law inglesa.

O presente trabalho divide-se em duas etapas: em um primeiro momento será abordada a proposta da teoria da argumentação, através da produção jurídica de Alexy e MacCormick; na segunda parte, as falhas da teoria da argumentação serão expostas, tendo como base a hermenêutica filosófica de Gadamer e Streck.

2. A Indeterminação do Direito no Positivismo Jurídico

Analisando o ordenamento pátrio, a fundamentação das decisões judiciais, bem como o comportamento de inúmeros juristas, pode-se constatar como o positivismo está enraizado em nossa cultura jurídica. Conforme Warat (1994, p. 82), existe um "sentido comum teórico do saber jurídico" instrumentalizado por uma racionalidade positivista, que se faz presente no cotidiano e atua como mediadora dos conflitos sociais.

Hans Kelsen, expoente do positivismo, buscou em seus escritos uma "pureza" em sua Teoria do Direito, libertando a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos, tais como a moral e a política. Nesse passo, o Direito é, para o autor, um sistema de normas, estruturado de forma hierárquica, composto por normas de nível superior e normas de nível inferior. Nessa estrutura, as normas de nível inferior deverão extrair o seu fundamento de validade em normas de nível superior. Para que a indagação do fundamento de validade da norma não se perca no interminável, Kelsen estabelece o fim do sistema em um artifício metafísico, uma norma pressuposta como última e mais elevada (Grundnorm) (Cf. KELSEN, 2000, p. 217).

Apesar da norma de escalão superior regular o ato através do qual é produzida a norma de escalão inferior, esta determinação, para Kelsen, nunca é completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções o ato através do qual é aplicada. Existe sempre uma margem, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a ser preenchida.

Cumpre ressaltar que um dos conceitos-chave do pensamento Kelseniano é o de "órgão produtor de normas jurídicas". Podem ser considerados "órgãos" aqueles indivíduos que foram investidos, através de ato especial, na função de representar a comunidade. Kelsen traz como exemplo, o legislador, o juiz, e funcionários administrativos. Sendo assim, para Kelsen (2000, p. 390), o juiz, investido no papel de órgão jurídico, frente a uma hipótese de indeterminação, pode "criar" o Direito, desde que respeite as balizes do referido "quadro ou moldura" (norma superior).

Hart, também adepto das teorias positivistas, divide os casos jurídicos em "simples" (easy cases) e "difíceis" (hard cases). Para o autor (1994, p. 139), os casos de menor complexidade são aqueles que estão constantemente a surgir em contextos similares. Os casos fáceis podem ser resolvidos de forma dedutiva, pela mera subsunção entre fato e norma. Já os casos difíceis necessitam de maior esforço do intérprete. Frente a uma lacuna ou indeterminação do direito em caso difícil, o juiz está autorizado a utilizar de seu poder discricionário para criar direito. Hart (1994, p. 336) ainda assevera que este poder não pode ser utilizado de forma arbitrária, devendo agir como "o legislador agiria, decidindo de acordo com suas próprias crenças e valores".

Esse limite estabelecido ao intérprete, de atribuir qualquer sentido ao texto positivado, desde que respeite a "moldura", que é o Direito, e busque a "vontade do legislador" revelou-se um parâmetro muito frágil. Dessa forma, segundo Pietro Sanchís (2000, p. 193), a indeterminação de normas, no positivismo, revolve-se por meio da discricionariedade, que pode facilmente evoluir para arbitrariedade.

3. A solução apresentada pelas teorias da argumentação de MacCormick e Alexy

É nesse contexto que surgem as teorias da argumentação jurídica, com o objetivo de superar o positivismo e conter as arbitrariedades. Atienza considera como expoentes da argumentação jurídica os seguintes autores: Neil MacCormick e Robert Alexy. Apesar de oriundos de sistemas jurídicos diversos - MacCormick advém da Common Law inglesa enquanto Alexy da tradição romano-germânica - Atienza (2000, p. 171) afirma que ambos os autores desenvolveram teorias similares que representam a argumentação jurídica.

Neil MacCormick toma emprestado a divisão hartiana de "casos fáceis" e "casos difíceis". Para o autor (1997, p. 100), os casos fáceis podem ser resolvidos por argumentos dedutivos, também chamados de justificação de primeira ordem (dedutive justification), conforme preconiza o positivismo, desde que as premissas sejam regras de direito válidas e as preposições baseiem-se em fatos provados.

No entanto, existem certos casos em que as regras são incertas, a classificação dos fatos pode ser contestável, ou há discussão se a questão é, ou não, abarcada pelo ordenamento jurídico (Cf. MACCORMICK, 1997, p. 100). MacCormick afirma que nos casos difíceis, o pensar dedutivo é insuficiente, devendo assim, buscar a resposta além da lógica. Faz-se necessário, então, para a sua solução, de outras virtudes humanas além da racionalidade, como a sensatez, a elevação de objetivos, o senso de justiça, a humanidade e a compaixão.

MacCormick critica a posição de Hart, que confere ao juiz um poder discricionário forte frente ao caso difícil, tornando-o um "quase legislador" propenso a cometer arbitrariedades. Assim, para barrar a arbitrariedade, entraria, na resolução de casos, a utilização dos princípios, que trazem a moral de volta ao Direito. Os princípios são conceituados por MacCormick (1997, p. 166) como normas gerais que fundamentam racionalmente as regras.

Para a resolução de casos difíceis, o autor elabora uma teoria da argumentação jurídica, que ele irá chamar de justificação de segunda ordem (second-order justification). MacCormick estabelece dois requisitos que devem ser respeitados na condução de sua teoria. Em primeiro lugar, deve-se cumprir o requisito da universalidade. Em segundo lugar, deve-se averiguar se a decisão a ser tomada possui sentido tanto em relação ao sistema jurídico em que esta se encontra inserida (com consistência e coerência) quanto em relação ao mundo (visando às conseqüências).

MacCormick (1997, p. 175) entende como universalidade a necessidade de utilizar uma premissa que seja a expressão de uma norma geral ou princípio, ao justificar-se uma decisão normativa. Este requisito está vinculado à necessidade de decidir de acordo com os mesmos critérios utilizados nos casos anteriores.

A consistência diz respeito ao cuidado que se deve ter com as premissas normativas, que não podem entrar em contradição com as outras normas já estabelecidas. É a obrigação dos juízes em respeitar o Direito vigente e se ajustar à realidade em termos de prova.

A coerência, por usa vez, divide-se em dois tipos: coerência normativa e coerência narrativa. Uma norma é coerente, no sentido normativo, se esta pode ser subsumida em uma série de princípios e valores. Por exemplo, uma norma que estabelece que carros amarelos não podem ultrapassar 80 km/h enquanto os outros podem é consistente, mas incoerente (em sua modalidade normativa), pois a cor, em princípio, não parece ter nenhuma relação com fins ou valores a serem perseguidos pelo controle do tráfego de veículos (como a segurança no trânsito ou economia de combustível) (MACCORMICK, 1997, p. 156). A coerência narrativa, por sua vez, refere-se à possibilidade de assumirmos crenças e rechaçamos outras durante nossa argumentação.

Por fim, MacCormick (1997, p. 135-151) apresenta a necessidade formular uma decisão em harmonia com a sociedade. Ao argumentar juridicamente, o magistrado deve levar em consideração as conseqüências que sua decisão terá não só para as partes, mas para os outros indivíduos.

Robert Alexy, representante da raiz romano-germânica, elabora uma teoria semelhante à MacCormick, tomando emprestado, assim como o autor britânico, a diferenciação hartiana de casos fáceis e casos difíceis.

Nos casos fáceis, aquele que ao nos depararmos não nos questionamos quanto a sua dificuldade, basta acoplar, de forma lógico-dedutiva, a norma, presente no ordenamento jurídico, ao fato. Alexy, dessa forma, utiliza-se amplamente o silogismo jurídico na resolução dos casos mais simples (Cf. ALEXY, 1989, p. 214).

Nessa subsunção deve-se respeitar o princípio da universalidade, que é a justificação mediante a seguinte regra universal: devemos "tratar igual todos os seres de uma mesma categoria" (ALEXY, 1989, p. 215). Nota-se, aqui, uma semelhança com a justificação de primeira ordem de MacCormick.

Assim como o jurista escocês, o autor alerta (1993, p. 09), no entanto, que nenhum sistema de normas jurídicas é capaz de garantir, por si só, que todos os casos jurídicos possam ser resolvidos de maneira puramente lógica, mediante o uso apenas das normas vigentes e de informação sobre os fatos. Isso ocorre por causa da vagueza da linguagem jurídica, da possibilidade de conflitos entre normas e da existência de "casos não-regulados" (ainda não abarcados pelo ordenamento jurídico).

Nos casos difíceis, por sua vez, utilizar-se-á a teoria da argumentação jurídica. Para que não se caia em uma eterna busca pela última preposição, que surge quando se pretende fundamentar uma preposição por intermédio de outra preposição, de forma sucessiva, o autor propõe estabelecer limites na atividade de argumentação em duas frentes: o estabelecimento de um procedimento de limitação do discurso; e a concepção do Direito como um sistema de normas e princípios.

Segundo Alexy, é preciso que se articule o maior número possível de passos no desenvolvimento do discurso, de forma que o produto da argumentação seja uma resposta racional. O procedimentalismo é tão enraizado na obra de Alexy, que este chega afirmar que um determinado enunciado normativo é correto apenas "se pode ser resultado de um procedimento P" (1993, p. 61).

O procedimento de Alexy prevê a utilização de diversos "métodos de interpretar" (1989, p. 227-334), os chamados cânones de interpretação. São eles: o semântico, que utiliza a linguagem; o genético, que busca a "vontade do legislador", o histórico, em que se analisa o desenvolvimento histórico de um determinado instituto jurídico; o comparativo, que é realizado por meio da comparação entre diversos sistemas jurídicos; o teleológico, que busca a adequação entre fins e meios; e o sistemático, que busca a lógica entre leis, fins e princípios. Estes métodos, já superados, são os mesmos estabelecidos por Savigny há séculos atrás.

A dogmática jurídica, bem como os precedentes judiciais, também possui sua importância para Alexy, no sentido de assegurar a coerência do sistema jurídico e a aplicação do princípio da universalidade.

Outro ponto fundamental no pensamento de Alexy (1993, p. 11), é a concepção do direito como um sistema de normas, composto por regras e princípios. A diferença entre regras e princípios não é simplesmente uma diferença de grau, uma vez que os princípios são mais amplos, e sim de tipo qualitativo.

Para Alexy (1993, p. 13), as regras são normas que exigem um cumprimento pleno e, nessa medida, podem apenas ser cumpridas ou descumpridas. Se uma regra é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que ela ordena, nem mais nem menos. Assim, a forma da aplicação das regras é a subsunção. Frente ao conflito de duas regras válidas, esta contradição pode ser eliminada declarando uma das normas nulas, expulsando-a do ordenamento jurídico.

Os princípios são normas que ordenam à realização de algo na maior medida possível, relativamente às possibilidades jurídicas e fáticas. São mandados de otimização que se caracterizam por poder ser cumpridos em diversos graus (ALEXY, 1993, p. 14). Os princípios são aplicados pela ponderação.

A divisão positivista entre Direito e moral é criticada por Alexy (1993, p. 51), visto que, com base na teoria da previsão, as normas jurídicas individuais e as decisões judiciais, assim como o sistema jurídico em sua totalidade, devem buscar a correção. Por isso, os princípios são definidos pelo autor como "mandados de otimização", pois possuem a função de "otimizar" o Direito através da moral corretiva.

Embora não seja possível estabelecer uma hierarquia de princípios, pode-se estabelecer uma ordem frouxa entre eles, que permita a sua aplicação ponderada (de maneira que sirva como fundamento para decisões jurídicas), e não o seu uso puramente arbitrário (ALEXY, 1993, p. 16). Faz-se necessário a criação um "sistema de condições de prioridade", permitindo que a resolução das colisões entre princípios, em um caso concreto, também tenha importância para outro caso.

Esse "sistema de condições de prioridade" é formado, segundo Alexy (1993, p. 48), com base na lei da ponderação (ou princípio da proporcionalidade em sentido estrito): "Quanto mais alto seja o grau de descumprimento ou desprezo por um princípio, um tanto maior deverá ser a importância do cumprimento de outro".

Cumpre-se fazer uma pequena observação ao pensamento de Manuel Atienza (2002, p. 335), que propõe uma "nova" teoria da argumentação. Além da diferenciação entre caso fácil e difícil, Atienza assevera que também existem "casos trágicos", aqueles em que não se pode encontrar uma solução sem o sacrifício de um valor considerado fundamental do ponto de vista jurídico e/ou moral.

4. A crítica da hermenêutica filosófica às teorias da argumentação

A hermenêutica filosófica e as teorias da argumentação convergem em um raro ponto de consenso. A arbitrariedade judicial é uma preocupação para as duas correntes. É aqui que reside a crítica ao positivismo e a tentativa de superá-lo. Gadamer afirma que ao juiz está reservada a complementação produtiva do direito. O juiz encontra-se sujeito à lei, exatamente como qualquer outro membro da comunidade jurídica. Para o autor (1998, p. 490), "na idéia de uma ordem judicial, supõe-se o fato de que da sentença do juiz não surja arbitrariedade imprevisíveis".

Nota-se, então, que ambas as correntes são críticas do positivismo, no entanto, seguem caminhos opostos. Ainda, a hermenêutica filosófica revelou-se ser uma forte arma para apontar as insuficiências do projeto proposto pelas teorias da argumentação.

Apesar da postura de críticos do positivismo, os adeptos das teorias da argumentação não conseguem se libertar desse paradigma. MacCormick e Alexy desenvolvem suas teses a partir da conclusão que o positivismo, por si só, não é suficiente. Nos casos difíceis, o intérprete encontrava-se, nessa corrente, hesitante, não sabendo que direção tomar.

Com medo que esta situação desandasse para uma arbitrariedade judicial, repleta de subjetivismos e "achismos", os autores produzem suas teorias da argumentação jurídica. O maior temor dos adeptos da argumentação é que seu antídoto miraculoso se transforme em veneno nas mãos dos positivistas. Assim estabelecem cânones interpretativos, procedimentos, artificialidades: tudo é feito para que sua tese não se reverta em arbitrariedade.

No entanto, a argumentação é, somente, para casos difíceis, que exigem um esforço mental do intérprete. Já nos os casos fáceis, não há inclusão dos princípios no ordenamento jurídico, nem os cânones interpretativos são utilizados, pois são "óbvios demais", não merecendo, então, um maior empenho do intérprete. Deve-se, assim, utilizar o clássico método lógico-dedutivo, sem maiores questionamentos, bastando acoplar a norma e o fato.

Streck (2006, p. 201) aponta como equivocada essa divisão entre "procedimentos interpretativos próprios para casos simples" e "procedimentos interpretativos para resolução de casos difíceis", ao considerarem que os casos jurídicos simples são resolvidos pelo juiz a partir de interferência lógico-dedutiva. Essa é uma das grandes falhas da teoria da argumentação, admitir a coexistência com o positivismo jurídico, na solução de casos fáceis.

A teoria da argumentação acaba tornando-se uma espécie de "reserva jurídica". Em regra, o tão criticado pensamento lógico-dedutivo acaba resolvendo quase todas as questões, e quando surge uma dúvida mais relevante, entra a argumentação. Assim, essas teses ao invés de suplantarem o positivismo por completo, limitam-se a uma tentativa de corrigi-lo ou fazer um "remendo do positivismo". Apresentadas como revolucionárias, acabam por serem utilizadas para manter o status quo positivista.

Por acreditar na divisão em casos fáceis e difíceis, as teorias da argumentação admitem a divisão entre o compreender, interpretar e aplicar em etapas. Frente ao caso concreto, o intérprete primeiro compreende se está diante de um caso fácil ou difícil. Se o caso é fácil, interpreta facilmente, se o caso é difícil, faz-se necessário o método argumentativo para atingir-se a interpretação. Só depois desse procedimento é que o intérprete está hábil para aplicar.

A divisão entre compreender, interpretar e aplicar é duramente criticada por Gadamer. Para o autor, a interpretação não é um ato posterior à compreensão, pois a interpretação é a forma explícita da compreensão. Também não pode haver desvinculação ao aplicar, pois "compreender é sempre também aplicar" (1998, p. 459).

Dessa forma, não há de se falar em distinção metodológica dos casos fáceis e difíceis. Admitir isso seria cindir o compreender do interpretar, esquecendo que a compreensão é condição de possibilidade para a interpretação (pré-compreensão) (Cf. STRECK, 2006, p. 199).

O procedimentalismo em excesso, da argumentação jurídica, merece ser, indubitavelmente, criticado. Segundo Streck (2006, p. 221), enquanto a hermenêutica filosófica trabalha com uma justificação do mundo prático, nas teorias argumentativas, busca-se uma legitimidade meramente procedimental. Sendo assim, a pragmática é convertida em um procedimento.

Se antes os positivistas revelavam um forte apego às regras, os adeptos das teorias da argumentação, com o objetivo de tentar superar o positivismo, acabam tendo como norte o procedimento, o que não deixa de ser uma artificialidade.

O Grundnorm kelseniano, a peça-chave do sistema positivista, revelou-se ser uma baliza fraca para o direito, pois é sustentado pela metafísica. Em substituição ao Grundnorm, os pós-positivistas da teoria da argumentação buscam, incessantemente, um Grundmethode ("um método fundamental") capaz de servir como barreira de contenção para a discricionariedade judicial. Para Streck (2002, p. 214-215), antes da metodologia das teorias da argumentação ter a função de dar segurança ao intérprete, ela é seu verdadeiro "Calcanhar de Aquiles", visto que não há como sustentar metacritérios que possam ser válidos ou servir de fundamento ao método empregado.

Antes do método subsuntivo-dedutivo das teorias da argumentação, há algo mais originário e que é condição de possibilidade de qualquer explicação causal. Esse elemento é pré-compreensão da antecipação de sentido. É na pré-compreensão que o horizonte de sentido (pré-juízos) limita o processo de atribuição de sentido, impedindo que o intérprete atribua sentido as coisas, de forma arbitrária.

A dimensão pré-compreensiva, forjada no mundo prático (faticidade), não pode ser traduzível pelas teorias da argumentação, como "se fosse um caminho para algo". Essa dimensão ocorre uma totalidade de nossa realidade, a partir da conjunção de múltiplos aspectos existenciais, que fazem parte de nossa experiência (STRECK, 2006, p. 226).

Nesse sentido, a hermenêutica filosófica não utiliza procedimentos interpretativos, uma vez que a compreensão se estabelece em sua própria linguagem, que é sua condição de possibilidade. A historicidade explica o porquê de não precisarmos de um método para compreender. Só chegamos aos objetos através de significados, e em um mundo historicizado. Para Streck (1999, p. 256), o uso de um método é ir contra a linguagem lingüística e encobrir a diferença ontológica entre ser e ente, objetificando o direito.

Como o ato de interpretar é criativo e não um mero reprodutor de sentido, cabe ao jurista a reconstrução do direito, confrontando a jurisprudência com as práticas sociais que surgem, "estabelecendo novos sentidos às coisas e que provocam um choque de paradigmas, o que sobremodo valoriza o papel da doutrina jurídica e da interdisciplinaridade do direito" (STRECK, 2006, p. 236).

Outro ponto que merece ser criticado diz respeito a utilização dos princípios do direito. Nas teorias da argumentação, os princípios funcionam como reservas hermenêuticas, que só entram em jogo quando todos os procedimentos lógico-dedutivos positivistas falharam. Para Streck (2006, p. 236), "os princípios não se constituem em álibis teóricos para suplantar problemas metodológicos oriundos da insuficiência das regras".

Estipular um procedimento para a aplicação de princípios, é transformá-los em regras, capazes de serem utilizados de forma subsuntiva, tal como prega o pensamento positivista. Dessa forma, perpetua-se o positivismo jurídico sob uma nova roupagem, com apoio de uma hermenêutica principiológica distorcida. Não se pode tornar, por meio da lógica procedimental subsuntiva, os princípios de forma abstrata, tais como as regras. Os princípios prescindem do caso concreto uma vez que é "por eles que a realidade penetra no direito" (STRECK, 2006, p. 277).

A hierarquização de princípios abstratamente corrobora com a visão sujeito-objeto, já superada. Os princípios não devem ser ponderados, e sim aplicados (STRECK, 2006, p. 267). Nas palavras de Streck (2006, p. 234), a verdadeira função dos princípios é formar uma blindagem contra arbitrariedades, contra a "livre atribuição de sentidos", "apontando o modus operativo que deve ser seguido pelo intérprete, buscando assim, a coerência e a integridade do direito".

5. Conclusão

Sabe-se que o positivismo não conseguiu prever de forma adequada como o intérprete deveria agir frente à indeterminação do direito. A solução apresentada foi conferir plenos poderes ao juiz para determinar o direito, de forma arbitrária.

Com objetivo de conter as arbitrariedades, surgiram as teorias da argumentação. No entanto, seu sucesso já se encontra maculado desde o início, uma vez que se utiliza de um artifício positivista da diferenciação dos casos fáceis e casos difíceis. Como a teoria da argumentação só valerá para os casos difíceis, esses (neo)críticos do positivismo, ao invés de superá-lo, acabam ratificando o procedimento lógico-dedutivo, tipicamente positivista.

O caráter procedimental das teorias da argumentação constitui um Grundmethode, fundamento metafísico insustentável, que conduz ao primado do método perfeito e a objetificação do direito.

A concepção dos princípios como reservas hermenêuticas, também merece ser criticada, uma vez que eles devem ser aplicados a todo o momento, e não como um último recurso, somente quando o positivismo não oferece respostas. O uso da ponderação principiológica, nada mais é que a tentativa de transformar os princípios em regras, subvertendo a sua função de fechamento do sistema e barreira para arbitrariedades, de modo que se perpetue o positivismo sob nova roupagem.

Referências

ALEXY, Robert. Derecho y Razon Pratica. 1. ed. México: Fontamara, 1993.

_______________. Teoria de la argumentacion juridica: La teoria del discurso racional como teoria de la fundamentacion juridica. 1. ed. Madrid: Centro Estud. Constitucionales, 1989.

ATIENZA, Manuel. As razões do direito : teorias da argumentação jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2002.

GADAMER, Hans Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

HART, H. L. A. O conceito de direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MACCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal theory. 1. ed. Oxford: Clarendon, 1997.

SANCHÍS, Luis Pietro. Tribunal Constitucional y Positivismo Juridico. Revista Doxa, n. 23, p. 161 - 195, 2000.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

________________. Jurisdição constitucional e hermenêutica : uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002

________________. Verdade e Consenso: Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito. v. 1. 1. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994.


Notas:

* Luciano Vaz Ferreira, Advogado, Mestre em Direito Público (UNISINOS), na linha de pesquisa "Sociedade, Transnacionalidade e Novos Direitos", Professor das Faculdades Porto-Alegrenses (FAPA). [ Voltar ]

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04/08/2008 17:01 Responder

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