Tiradentes, o herói tardio
A primeira edição dos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira foi publicada pela Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro) de 1936 a 1938. A segunda edição (1976 a 1983) foi lançada pela Imprensa Oficial de Minas Gerais em parceria com a Câmara dos Deputados. Há detalhes interessantes que constam dos Autos de Devassa, como a sentença de Tiradentes: “Joaquim José da Silva Xavier — Morte natural, levada a cabeça para Vila Rica e os quartos para as estradas de Minas, principalmente na Varginha e Cebolas; infâmia para os filhos e netos, confisco de bens, casa arrasada e salgada, e no meio das ruínas um padrão, que declare o motivo”. Tiradentes foi um herói tardio e o único a não pertencer à elite da época e, por isso, sofreu a pena capital e, também, o único a confessar sua participação na Inconfidência Mineira.
No próximo dia 21 de abril completaram-se duzentos e trinta e dois anos da morte de Tiradentes, uma figura emblemática na luta pela independência do Brasil. Afinal, Joaquim José da Silva Xavier teve realmente um julgamento justo? E quais foram os motivos políticos que acarretaram sua morte na forca[1]?
Condenado por liderar a conspiração separatista alcunhada de Inconfidência Mineira contra o domínio de Portugal, o colonizador. Com a descoberta da trama pelas autoridades da época, Tiradentes fora preso, julgado e enforcado publicamente.
É sabido que no fim do século XVIII, o mundo era açodado por ideais iluministas e drásticas transformações políticas, econômicas e sociais, que tanto influenciaram o Brasil trazendo ideais revolucionários tanto para Tiradentes como seus contemporâneos.
O Brasil ainda era uma colônia de Portugal, sujeita a um sistema
econômico mercantilista rigoroso, com altos impostos e a exploração de recursos
naturais, como o ouro em Minas Gerais. Em razão do Ciclo do Ouro, o Estado
tornou-se importante centro econômico, com rápido povoamento.
É neste contexto que surge Tiradentes, ou Joaquim José da Silva
Xavier. Foi dentista, tropeiro, minerador, comerciante, militar e ativista
político brasileiro. É mais conhecido como o líder da Inconfidência Mineira, um
movimento revolucionário que buscava a independência da colônia de Minas Gerais
do domínio português.
A Coroa portuguesa cobrava uma taxa de 20% sobre todo o ouro encontrado nas colônias – ou seja, um quinto do metal extraído. A exigência da cota de ouro (o quinto real) gerava evidente descontentamento entre os colonos. Nasce daí o descontentamento político que culminaria na morte de Tiradentes. Adveio daí a expressão “quinto dos infernos”.
Em 1751, foi criada a “derrama”, que consistia na cobrança
forçada do quinto não recebido. O rei passou a exigir que Minas Gerais
recolhesse 1.500kg de ouro por ano. Se não atingisse a cota, o imposto era
“derramado” sobre todos os residentes da capitania mineira, independentemente
de sua relação com a atividade.
Em 1789, havia indícios de que a derrama seria aplicada pela segunda vez. Este foi o estopim para a deflagração da “Inconfidência Mineira”, movimento que buscava a separação de Minas Gerais da coroa portuguesa. Nesse movimento estavam Tiradentes e Joaquim Silvério dos Reis.
Em meio à evidente importância, para Portugal, de conter esse
movimento, Silvério dos Reis torna-se delator, traindo o movimento separatista.
Após detalhar o plano dos inconfidentes e entregar todos os envolvidos, ele
teria o perdão pelo crime de lesa majestade e o perdão de suas dívidas com a
coroa. Praticamente foi o primeiro delator premiado no país.
O procedimento instaurado para apuração e julgamento do crime de lesa majestade, previsto nas Ordenações Filipinas, foi a “devassa”, que não assegurava direito de defesa e contraditório.
Durante o malfadado processo, todos os acusados ficaram
incomunicáveis e a defesa só poderia se manifestar ao final, após o
encerramento dos autos de devassa.
Em maio de 1789, Tiradentes e os outros inconfidentes foram presos durante a devassa, em uma espécie de prisão cautelar. Foram instaurados dois procedimentos: um em Minas Gerais e outro no Rio de Janeiro.
Em razão do conflito de jurisdição, a coroa instalou no Brasil
um Tribunal de Alçada, representando a casa de suplicação – a mais alta Corte
da Coroa portuguesa.
O procedimento transcorreu de forma rígida e inquisitorial, sem defesa. No quarto interrogatório de Tiradentes, ele confessou ser o idealizador da Inconfidência, eximindo as demais pessoas da autoria intelectual da tentativa de levante contra a Coroa.
No total foram trinta e quatro pessoas processadas, todas
defendidas pelo mesmo advogado: José de Oliveira Fagundes, nomeado pelo
Tribunal de Alçada. A principal tese da defesa é que o crime jamais se
materializou, não passando de uma ideia que nunca ocorreu.
Com relação a Tiradentes, o advogado[2]
alegou que, embora tenha confessado, ele não tinha nenhuma condição material de
colocar o plano em prática – estaria, portanto, comprovada sua insanidade,
visto que confessou algo que não ocorreu.
Vinte e quatro foram considerados culpados e condenados. As
penas variavam de pena de morte, castigo corporal e pena de degradado
(banimento da terra de origem), além de confisco de bem. Todas as penas de
morte, por sua vez, foram alteradas para banimento - exceto a de Tiradentes.
Ele foi enforcado e 21 de abril de 1792 no Campo da Lampadosa, no RJ, onde atualmente fica a praça Tiradentes.
A sentença dos inconfidentes saiu em 1792 e determinava a pena de morte por enforcamento a dez pessoas. Entretanto, por intermédio da Rainha D. Maria I, nove dos envolvidos na Inconfidência foram perdoados e condenados ao degredo (expulsos do Brasil), enquanto a sentença de morte foi mantida para apenas um: Tiradentes.
Afinal, ele era o único dos inconfidentes que não pertencia à elite econômica de Minas Gerais; também ele foi o único que não negou o seu envolvimento com a conspiração nem demonstrou arrependimento; ele era o propagandista do movimento, isto é, tinha um papel muito importante, o que o tornava uma figura a ser castigada.
O dia de sua execução, 21 de abril, é feriado nacional. A cidade mineira de Tiradentes, antiga Vila de São José do Rio das Mortes, foi renomeada em sua homenagem. Seu nome está inscrito no Livro dos Heróis da Pátria somente desde 21 de abril de 1992.
Não foi a morte que o transformou em um herói. Enforcado, ele virou símbolo da causa republicana na década de 1870. Em 1890, dois meses após a Proclamação da República, Marechal Deodoro estabeleceu 21 de abril como feriado.
Em 1946, Tiradentes passou a ser considerado patrono das polícias. Já em 1965, no governo Castello Branco, a Lei 4.897 o considerou patrono da nação brasileira. Em 1989, Tiradentes tornou-se herói da pátria e até sofreu a comparação com Jesus Cristo .
A imagem[3]
de Tiradentes como herói foi construída com a Proclamação da República. Os
republicanos desejavam exaltar as figuras de republicanos brasileiros em
contraposição aos tempos de monarquia e, por causa disso, Tiradentes foi
escolhido pelo caráter da sua condenação. Republicano convicto, Tiradentes foi
exaltado como um mártir do movimento republicano e, portanto, um herói
nacional.
A pena de morte no Brasil passou por várias mudanças ao longo da
história.
As Ordenações Filipinas, que vigoraram por quase duzentos anos no Brasil, da
era colonial até o fim do Império, previam várias modalidades de pena
capital, detalhadas conforme o crime e suas circunstâncias.
Eis algumas:
Morte Natural por Enforcamento: Era a forma mais comum de
execução, usada para diversos crimes, incluindo traição e homicídio.
Morte Natural de Fogo: Consistia em queimar o condenado vivo até
que fosse transformado em pó. Era frequentemente reservada para crimes
considerados particularmente hediondos, como heresia.
Morte Natural Cruelmente: Nesta forma, o condenado era morto de
acordo com as diretrizes sádicas da decisão, ao bel prazer dos juízes e
carrascos[4].
Isso poderia incluir desmembramento, esquartejamento, ou outras formas de
tortura antes da morte, dependendo da gravidade do crime.
Morte Natural para Sempre: Após ser executado, geralmente por
enforcamento, o corpo do condenado era exposto publicamente, e seus ossos eram
recolhidos e levados em procissão anualmente, no dia 1º de novembro.
Com a independência do Brasil, sobreveio a Constituição de 1824, que previa, no art. 179, item 19, a proibição de açoites, torturas, marca de ferro quentes e todas as demais penas cruéis.
No entanto, continuaram a entender que a pena capital não se enquadrava no conceito de penas cruéis, e por isso ela continuou a ser aplicada.
Já o Código Criminal de 1830 manteve a pena de morte, determinando que seria aplicada por enforcamento, proibida a execução aos sábados, dias santos ou de festa nacional. Também proibia a aplicação em mulher grávida, devendo aguardar quarenta dias após o parto para a execução.
O Código Penal de 1890, editado logo após o golpe que derrubou o império, já não mais previa a pena de morte, o que foi uma antecipação à Constituição da República de 1891, que formalizou essa abolição, tornando o Brasil um dos primeiros países das Américas a eliminar a pena capital em tempos de paz. A exceção era para crimes militares em tempo de guerra.
A punição com a morte, em longo período histórico, era executada
através da crucificação, sendo esta a forma de aplicação da pena de morte
mais conhecida e popular a seu tempo. A Bíblia registra que Jesus Cristo foi
morto pelos romanos pela crucificação.
Já no primeiro código de leis que se conhece, o Código
de Hamurabi, esta forma de punição estava presente, servindo como
pena para punir autores de diversos crimes.
A pena de morte foi muito empregada pela
humanidade, inclusive persistindo até os dias atuais, uma
vez que se encontra presente na legislação de vários países.
Portugal foi o pioneiro na mudança da previsão legal desta
punição, pois, no ano de 1867, após uma reforma penal, aboliu a
pena de morte para crimes civis. Vale
ressaltar que a última pena capital aplicada
em solo português foi anterior à sua abolição, em 1849, servindo
de exemplo para todo o mundo e, principalmente, para a Europa.
Desta forma, na União Europeia - bloco econômico do
continente europeu —dos vinte e sete Estados-membros, nenhum
deles tem, ainda, em seu ordenamento jurídico, a pena de morte
legalizada.
A Constituição brasileira de 1946 aboliu a possibilidade de
pena de morte para crimes políticos e comuns, o que se mantém até os dias
atuais.
O que poucos sabem, é que existe uma exceção:
a Constituição de 1988, no art. 5, inciso 47, alínea “a” prevê a
possibilidade de pena de morte apenas em caso de guerra declarada.
XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos
termos do art. 84, XIX.
O Código Penal Militar brasileiro vigente estipula mais de três dezenas de crimes que se sujeitam à pena capital, como, por exemplo, traição, covardia qualificada, espionagem e violência contra superior.
Na pouco provável aplicação da pena de morte em solo brasileiro, a execução se dará por fuzilamento, na forma do art. 56 do Código Penal Militar.
Atualmente, a pena de morte é um tema que raramente surge na discussão política brasileira, visto que há um consenso sobre sua proibição. Foi uma realidade durante o período colonial e parte do Império, o Brasil moderno se posiciona firmemente contra sua aplicação, exceto sob circunstâncias muito específicas e extremas relacionadas a conflitos armados.
A China, maior país em número de habitantes, é considerada pela Anistia Internacional o país que mais aplica a pena de morte em todo mundo.
Os dados oficiais do uso desta pena inexistem ou são desconhecidos, pois são classificados como segredos de Estado, mesmo assim, acredita-se que a China utiliza a pena capital, milhares de vezes, todos os anos. Por este motivo, os números levantados e apresentados pela ONU não os incluem sistematicamente.
Convém ressaltar que Tiradentes é o único brasileiro que tem sua data de morte como feriado nacional.
Atualmente, o Brasil é signatário de tratados internacionais de direitos humanos que condenam a pena de morte, como o Pacto de San José da Costa Rica, reforçando seu compromisso com a abolição.
Referências
DORIA, Pedro. 1789: A história de Tiradentes, contrabandistas, assassinos e poetas que sonharam a Independência do Brasil. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017.
D’ÚRSO, Luiz Flávio Borges; D’URSO, Luiz Eduardo Filizzola. A humanidade deve manter a pena de morte? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/340199/a-humanidade-deve-manter-a-pena-de-morte Acesso em 19.4.2024.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
FERNANDES, Avani F. (org.) Tiradentes – a luz da Inconfidência Mineira. São Paulo: Editora Paratexto, 2022.
FIGUEIREDO, Lucas. O Tiradentes: Uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier. eBook Kindle São Paulo: Cia. Das Letras, 2018.
MAXWELL, Kenneth. O Livro de Tiradentes. Tradução de Maria Lúcia Machado e Luciano Vieira Machado. São Paulo: Penguim Cia, 2013.
PEREIRA,
José Valente. A Defesa, A Sentença e
o Advogado de Tiradentes.
Disponível em: https://www2.alerj.rj.gov.br/biblioteca/assets/documentos/pdf/publicacoes/livros/defesaTiradentes.pdf Acesso em 19.4.2024.
PINTO, G. Hercules. A Vida de Tiradentes. Rio de Janeiro: Editora Alba, 1962.
Redação Migalhas. Tiradentes teve um julgamento justo? Reflexões sob a ótica do Direito atual Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/405771/tiradentes-teve-um-julgamento-justo-reflexoes-pelo-direito-atual Acesso em 19.4.2024.
RIBEIRO, Darcy. Tiradentes. São Paulo: Global, 2016
SILVA, Daniel Alves. Brasil Escola. Tiradentes.
Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/biografia/tiradentes-biografia.htm Acesso em 19.4.2024.
[1] Apesar de
ser mineiro, foi no Rio de Janeiro que Tiradentes entrou em contato com as ideias
revolucionárias iluministas e se dedicou a melhorias urbanas na cidade, idealizando
o abastecimento regular para a população, a construção de moinhos e serviços de
barcas de transporte de passageiros. Ele foi enforcado no Rio de Janeiro, na atual
Praça Tiradentes.
[2] José Oliveira Fagundes. Ele foi o
advogado de Tiradentes e de todos os demais participantes do movimento que
buscava a libertação do Brasil do jugo português. Ele merece todas as
homenagens. Era carioca, nascido em 1752, formado pela Universidade de Coimbra
em 1778, e, no Rio, pela sua coragem e cultura jurídica, passo a ser um dos mais conceituados causídicos,
não sendo bem-visto pelo Vice-Rei Conde de Resende. Foi contratado pela Santa
Casa da Misericórdia para defender Tiradentes.
[3] Diferente
do que mostram as imagens dos livros didáticos,
Tiradentes nunca usou barba e cabelos longos. Por ser militar, o máximo que
poderia usar era um discreto bigode. Na hora do enforcamento, ele estava de
cabelo raspado e barba feita. Após
o enforcamento, o corpo de Tiradentes
foi separado em quatro partes que foram expostas no caminho entre Rio de
Janeiro e Minas Gerais. Sua cabeça ficou à
mostra em um poste, em praça pública. Na terceira noite, foi roubada e nunca
mais foi encontrada.
[4] O
escravizado Jerônimo Capitânia tornou-se carrasco oficial quando trocou sua
pena de morte por uma pena de prisão perpétua, ao ter sido encarregado de matar
Tiradentes.