Solipsismo judicial
O juiz solipsista, portanto, considera que sua consciência é muito mais importante do que os argumentos trazidos pelas partes, já que a interpretação e aplicação da lei ocorrem no modo solitário, tal como eremita na montanha.
A definição de solipsismo
judicial contraria o modelo constitucional de processo e o princípio da
legalidade, além de direcionar o discurso processual para vida nua, caracterizada como espaço argumentativo não
demarcado, criando um anarquismo metodológico na cognição jurisdicional.
O solipsismo judicial é modelo
de julgamento incompatível com o vigente Código de Processo Civil brasileiro e,
contraria, ainda, a legislação processual dos demais Estados democráticos. Onde
há especial destaque do princípio do contraditório e, possibilita a saudável
fiscalização recíproca dos atos processuais.
Enfim, o modelo constitucional
de processo proposto pelas Constituições democráticas não admite, segundo a
interpretação constitucional, a atuação solitária do magistrado, isto é, ao
juiz é vedado tratar como acessória ou eventual a colaboração das partes na
construção do provimento jurisdicional. E, a referida colaboração não se limita
à oportunidade de manifestação das partes e dos seus advogados, mas de, efetiva
e seriamente, levar em conta o argumento dos jurisdicionados.
Evidentemente que o debate a
respeito do autoritarismo não é recente, nem inédito. Afinal, desde os gregos
antigos, sofistas, socráticos ou não, passando pela Roma Antiga de Marco Túlio
Cícero, assim, como pensadores das Idades Média e Moderna, e mesmo nos
contemporâneos dias, temos notícias de reflexões sobre a tirania e a
democracia.
O estudos sobre o tema
ganharam novo impulso após a Segunda Grande Guerra Mundial, quando no mundo,
existiram interessados na consolidação do Estado de Direito Democrático,
passaram a se preocupar mais propriamente com tema, voltando-se,
principalmente, à Teoria do Direito, à Filosofia do Direito, ao Direito
Constitucional e, finalmente, ao Direito Processual.
Após a Segunda Guerra Mundial,
tais debates, que antes se restringiam quase sempre aos círculos intelectuais
mais restritos e eruditos, ganham um caráter mais prático, jurídico e político.
O que é perceptível na Itália, por meio da biografia do jurista Piero
Calamandrei, foi escritor, processualista, professor e ex-reitor da Università
degli Studi di Firenze que atuou na resistência contra o fascismo.
(MARINELLI, 2007) e, renunciando seu
cargo acadêmico, atuou politicamente na Assembleia Constituinte responsável
pela formação da Primeira Constituição Democrática Italiana de 1947.
Em sua trajetória, com as
restrições a liberdades impostas pelo fascismo, não obstante as críticas que se
pode fazer ao seu pensamento atualmente, Calamandrei procurou atacar o
argumento autoritário e ainda a questionar o próprio papel do Estado, dos
juízes, dos advogados e do processo, com especial atenção à relação existente
entre a liberdade e legalidade.
Segundo Calamandrei, a
democracia passaria pela aplicação do processo jurisdicional, sendo que o autor
italiano, em carta escrita a Niceto Alcalá-Zamora y Castillo onde questiona o
modo da atuação dos juízes, dos advogados e das partes na estrutura do
processo, indagando a lealdade processual deles e o equilíbrio entre a
liberdade e a autoridade.
No Brasil, o referido debate
acadêmico traduziu reflexos na prática forense e dos tribunais, com grande
ênfase, principalmente, após a Constituição Federal brasileira de 1988 em razão
das pesquisas sobre o princípio do contraditório que vai além do simples
direito de dizer, contradizer ou nada dizer e, além da simples e mera
bilateralidade de audiência.
E, graças também ao labor dos
processualistas tanto brasileiros como alienígenas, o contraditório passou a
ser encarado como garantia de cooperação das partes para a construção do
provimento jurisdicional, afastando, justamente, a noção de juiz solitário e
solipsista.
A decisão solipsista afronta
o princípio da legalidade e, encaminha o discurso processual para um
espaço sem norma jurídica, promovendo assim anarquismo metodológica na cognição
jurisdicional.
O solipsismo traduz-se em ser
sacralização da atividade judicante, no sentido de Agamben, ou seja, onde há
obscurecimento da atividade de julgar, tornando-a sagrada, e assim, inacessível
à crítica.
Estabelecendo crença de que o
juiz, por características que lhes são subjetivas e imanentes, seja capaz de
dizer o que é bom, justo e certo além de verdadeiro para o restante da
sociedade, especialmente, para aqueles que sofrerão os efeitos de suas decisões,
especialmente, os jurisdicionados.
A bilateralidade de audiência
significa inicialmente, conferir a oportunidade de manifestação ao autor e ao
réu. Todavia, a simples bilateralidade de audiência já não mais é capaz de
abrigar o sentido atualizado e contemporâneo dado ao princípio constitucional
do contraditório.
Não deixa, o solipsismo de
encarnar a vetusta ideia de justiça salomônica, como se cada juiz tivesse, tal
qual na passagem bíblica, recebido de Deus um dom especial para fazer justiça,
alçando-o a locus hermenêutico privilegiado e superior ao resto da população.
Infelizmente, a postura
solipsista é frequentemente adotada no ambiente forense, mesmo em países
democráticos, quando alguns julgadores utilizam frases e epítetos como "minha
íntima convicção, minha compreensão, não compreendo assim, decido conforme
minha consciência, conforme minha convicção e, etc." representando uma
intensa subjetividade do que a percebida no cogito ergo sum (penso, logo
existo) de Descartes, dada a falta de rigor metodológico de muitas dessas
afirmações, ainda que sejam alinhavadas com citações legais e indicações de
instrumento de prova, não raro, para mascarar a eterna subjetividade subjacente
à decisão em si.
Enfim, o solipsismo carrega
uma radicalização do eu, uma expansão da subjetividade, da solidão de decidir,
de imposição da subjetividade de um em detrimento do outro, fazendo com que a
interpretação da lei seja uma simples atividade de captação subjetiva do senso
de justiça por locutor autorizado.
O juiz solipsista, portanto,
considera que sua consciência é muito mais importante do que os argumentos
trazidos pelas partes, já que a interpretação e aplicação da lei ocorrem no
modo solitário, tal como eremita na montanha. À semelhança de Zaratustra[1] (Nietzsche, 2011), ou do
super-homem(übermensch) de Nietzsche, parece esperar que alguém lhe
dirija a pergunta capital: O que é a justiça?
O juiz solipsista é o mesmo
que despreza a prova produzida pelas partes na instrução do processo, é como se
esta não existisse nos autos do processo, assim, como é aquele que indefere
perguntas às testemunhas sem apresentar um motivo claro. É, o que despreza
absolutamente a interpretação da lei oferecida pelas partes sob o argumento de
que somente ele conhece o direito (jura novit curia).
No Brasil, alguns
processualistas são contra o solipsismo judicial, de forma explícita, entre os
quais destacam-se José Joaquim Calmon de Passos, Aroldo Plínio Gonçalves,
Rosemiro Pereira Leal e Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias.
Recentemente, há trabalhos
importantes que procuram combater a linha teórica do solipsismo judicial. Contemporaneamente,
Lenio Luiz Streck (2010) à semelhança dos doutrinadores retrocitados, vem
mostrando a correlação entre o solipsismo judicial e a Filosofia da
Consciência, quando in litteris afirmou:
Afirmou: “Despiciendo, nesta
altura, lembrar que,
quando critico o
‘solipsismo judicial’ ou, o que é a mesma coisa, as ‘decisões conforme a
consciência do julgador’, tenho em mente a tese de que as decisões judiciais
não devem ser tomadas a
partir de critérios
pessoais, isto é, a partir da
consciência psicologista. Insisto, pois,
que se trata
de uma questão
relacionada à superação do
paradigma daquilo que
se denomina de
‘filosofia da consciência”.
A justiça
e o Judiciário
não podem depender
da opinião pessoal que juízes e
promotores tenham sobre as leis ou os fenômenos sociais, até porque os sentidos
sobre as leis (e os fenômenos) são produtos de uma intersubjetividade, e não de um indivíduo isolado.
Diferentemente do que ocorre
no solipsismo judicial, o discurso processo não mais admite que os fundamento
das decisões judiciais se blindem da crítica, sob pena de não poder ser
adjetivado como democrático e nem reconhecido como justo.
O subjetivismo defendido pela
filosofia da consciência não se confunde com o ceticismo, porquanto este afirma
que não há verdade alguma, ideia
contrária ao subjetivismo, que defende a existência da verdade, mas com uma
limitação quanto a sua validade.
No Direito, considerar que a consciência pode definir um conceito jurídico seria retirar deste sua função – estabelecer parâmetros para a comunicação – em prol de uma discricionariedade[2] que afastaria a tradição linguística.
Em outras palavras, o sujeito,
na subjetividade de sua consciência, poderia, por exemplo, considerar que “lei”
não é o que conhecemos como “lei”, mas sim o que conhecemos como “sentença
judicial”. Assim, apossando-se do “conceito” “lei”, o sujeito não teria um
conceito, porquanto formado unicamente em sua consciência.
Por esse motivo, conforme
esclarece Streck (2013), “o solipsismo
judicial, o protagonismo e a prática de discricionariedades se enquadram
paradigmaticamente no ‘paradigma epistemológico da filosofia da consciência’.”
Não é possível exercer o
contraditório sob o argumento supostamente calcado na consciência, na moral e
na compreensão metajurídica dos interlocutores. E, sem contraditório, não
existe processo, mas apenas mero rito, mera forma sem conteúdo. Um zumbi
burocrático.
Afinal, sair do Direito para
ir argumentar, é, em verdade, excluir a fiscalização recíproca do discurso
processual retirando deste sua legitimidade democrática, afinal, é impossível
fiscalizar validamente um argumento extraído do juízo subjetivo.
São oportunos os excertos da
palestra do ministro Marco Aurélio em Coimbra, em 2015. Ao mesmo tempo em que
ele alertava para o fato de “o Brasil vive tempos estranhos com a perda de
princípios e a inversão de valores em meio a crises econômica, financeira e
política”, o Ministro Marco Aurélio vai ao âmago do problema, asseverando que
“é preciso que haja proteção à coisa julgada, à previsibilidade da Justiça”.
Bingo. E deixou claro que: “... os julgamentos não podem ser feitos conforme a
cabeça do juiz. De bem-intencionados, de salvadores da pátria, o mundo está
cheio.”
O juiz solipsista abandona
completamente a metodologia do devido processo legal, e, ipso facto, o
modelo constitucional de processo. E,
com inspiração e Feyerabend, a cognição jurisdicional não pode ser um lugar de
vale-tudo, com absoluta ausência da procedimentalidade democrática.
Porém, esse protagonismo do
magistrado no discurso processual é um legado das ideias defendidas pelo
jurista alemão Oskar Büllow, no final do século XIX cuja teoria do processo como relação jurídica surgiu na
Alemanha e se espalhou pelo Ocidente, chegando na Itália e aportando em nosso
país.
Na Itália, a influência de
Büllow é presente nos principais doutrinadores processualistas da primeira
metade do século XX, tais como, Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei e Liebman e,
no Brasil, muitos também suportaram a mesma influência, tais como Cândido
Rangel Dinamarco, Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, dentre outros.
Na linha
bülowiana, o processo
é visto como
um espaço discursivo
que conta com a
regência soberana
de um juiz
que possui virtudes,
sensibilidade, intuição e senso
de justiça pressupostamente superiores
às qualidades dos demais participantes do discurso.
Portanto, Oskar Büllow (Büllow,
2003; Gonçalves, 1992; Leal, A., 2008), um dos representantes da Escola (ou
Movimento) de Direito Livre[3], enxergava o juiz como uma
supra-parte, já que, segundo ele, os magistrados deveriam, contra o legalismo,
exercitar uma atividade salvadora e
criadora do Direito.
Como bem demonstrou André
Cordeiro Leal (2008), a Teoria do Processo como Relação Jurídica de Büllow é
uma teoria de caráter solipsista, sendo que esses traços de solipsismo são detectados em
diversos processualistas que, antes ou hoje, a adotam.
Apenas depois da Segunda
Guerra Mundial e com a formação das bases teóricas do Estado Democrático de
Direito é que fora possível questionar mais seriamente as ideias de Büllow, já
que as tentativas anteriores, tais como as de Goldschmidt (1936) não foram
capazes de abandonar o solipsismo judicial e o protagonismo do juiz no discurso
processual, poiss, para o referido processualista germânico, o magistrado não
estaria vinculado ao argumento trazido pelas partes aos autos e sequer seria
obrigado a fundamentar sua decisão.
De certo que a
constitucionalização do Direito Processual ocorrida na América Latina e Europa
exige o abandono e a represália ao solipsismo judicial, de forma a garantir a
participação efetiva das partes na construção de decisões judiciais. E,
passamos todos a nos deparar com a chamada crise da instrumentalidade do
processo.
O cenário processual civil
brasileiro ainda resta dominado pelo instrumentalismo e a combalida ideia de
instrumentalidade do processo que teve seu fôlego renovado pela cooperação. O
instrumentalismo não é apenas o discurso dominante, senão marcado por pretensão
de exclusividade.
O instrumentalismo é
refratário a natureza do processo tida como instituição de garantia. O
garantismo processual[4] enquanto fenômeno
processual como um todo (civil, penal, administrativo, eleitoral e, etc.)
postula o irrestrito acatamento da Constituição e, suas assertivas têm sido
corroboradas no Brasil.
Longe de se desprezar a longa
tradição existente no direito anglo-saxão, afirma-se que na vertente
romano-germânica, a constitucionalização do Direito Processual prosperou e
ganhou força, particularmente, na América Latina, e se iniciou, a partir da
década de 1940, por esforço de processuais-constitucionalistas
latino-americanos, isso sem desprezar a contribuição embrionária de certos
juristas europeus que promoveram a aproximação maior entre o Direito Processual
e o Direito Constitucional.
E, certos jurídicos, em face
de contingências históricas, chegaram a viver na América, tais como Hans
Kelsen, nos EUA, Niceto Alcalá-Zamora Y Castillo (no México) e Enrico Tullio
Liebman no Brasil, contribuindo para farto intercâmbio acadêmico com os colegas
latino-americanos.
Já no Velho Continente,
especialmente, na Itália, destacou-se os trabalhos de Calamandrei, Cappelletti,
Giuseppe Vignera, Ítalo Andolina, Massimo Luciani e Gustavo Zagrebelsky que, sem dúvida,
esboçaram a constitucionalização processual, sob a influência em geral do
direito anglo-saxão.
Em que pese a contribuição
valorosa dos mencionados juristas europeus e a tradição do common law, o
Direito Processual Constitucional, ganhou entre os teóricos da tradição
romano-germânica adeptos e mesmo os pioneiros como Eduardo J. Couture
(Uruguai), Héctor Fix-Zamudio (México), Domingo García Belaunde (Peru), José
Frederico Marques (Brasil)), Néstor Sagüés (Argentina) e José Alfredo Oliveira
Baracho (Brasil) dentre outros que se seguiram mais recentemente.
Pode-se dizer que o
modelo constitucional de
processo é formado pelo conjunto de normas constitucionais atinentes ao
processo e, desse modo, se cada país possui sua Constituição, é de se inferir
que cada país possui, igualmente, seu modelo constitucional de processo. Contudo,
como existem paradigmas constitucionais de Estado, estes também influenciam na
formação do modelo constitucional de processo.
Isso quer dizer que o modelo
constitucional de processo do Estado de Direito Liberal é diferente do modelo
do Estado de Direito Social, assim como é distinto do Estado de Direito
Democrático.
Dentre outros juristas,
Andolina e Vignera (1990) trataram do tema na famosa obra “Il modello
costituzionale del processo civile italiano”. A proposta de Andolina e
Vignera, como lembra Flaviane
Barros (2009), é
a de um
modelo constitucional de processo único e de tipologia plúrima,
sendo que na Constituição se encontraria a base principiológica que tornaria
possível enxergar o processo como garantia.
Entretanto, tal modelo, mesmo
sendo único, teria a capacidade de expandir-se, aperfeiçoar-se e
especializar-se, exigindo do intérprete sua compreensão a partir dos princípios
que o inspiram, levando em conta, ainda, as características específicas do
procedimento.
Não há dúvidas de que tais ideias influenciaram a criação do Código de Processo Civil (CPC[5]) de 2015, afinal, na Exposição de Motivos (BRASIL, 2010), há, inclusive, referência expressa à obra dos processualistas italianos antes citados
Hoje, costuma-se dizer que o
processo civil se constitucionalizou. Fala-se em modelo
constitucional do processo,
expressão inspirada na
obra de Ítalo Andolina e Giuseppe
Vignera, Il modello costituzionale del processo civile italiano: corso
di lezioni (Turim, Giapicchelli, 1990). O processo há de a ser examinado, estudado e compreendido à
luz da Constituição e de forma a dar o maior rendimento possível aos seus
princípios fundamentais.
Tanto que no bojo da Exposição
de Motivos do CPC Brasileiro, se vê a necessidade de harmonização da legislação
processual infraconstitucional às normas processuais constitucionais.
Ouso afirmar que o princípio
do contraditório corresponde ao eixo hermenêutico do CPC de 2015, afinal, a
legislação processual pátria está alinhada à Constituição e, impede as chamadas
decisões surpresa. É o que se percebe do artigo 10, que determina in
litteris:
A regra geral, portanto, é a
de se estabelecer o contraditório prévio ou antecedente, mas vale dizer que o
próprio CPC (parágrafo único do art. 9o) estabeleceu três hipóteses para as
quais são possíveis decisões liminares sem contraditório prévio, são elas: (i) tutela
provisória de urgência (art. 300); (ii) tutela de evidência (apenas nas
hipóteses dos incisos II e III do art. 311); e (iii) decisão da ação monitória
(art. 701).
Percebe-se que o
Brasil acolhe, portanto,
a ideia de
contraditório como garantia
de influência e não-surpresa sobre as decisões judiciais, mas é preciso
deixar claro que tal norma jurídica não é exclusividade brasileira. Antes do
Brasil, outros países já adotavam a mesma norma jurídica, podendo-se citar, por
exemplo, a Alemanha [§ 139 ZPO], a Itália (art. 183, CPC), a França (art. 16,
CPC), Portugal [art. 3º , CPC) e Áustria (§ 182a).
Já há, portanto, uma tradição
jurídica e um verdadeiro movimento científico comum por trás do princípio do
contraditório, sempre com o objetivo de assegurar a participação dos cidadãos
na construção do provimento judicial e, em última palavra, a democracia.
Frise-se, contudo, que a regra
geral para a aplicação do princípio do contraditório é a
do contraditório prévio
e, mesmo nas
ressalvas acima consideradas,
deve-se assegurar às partes o contraditório postecipado ou diferido, ou
seja, após a concessão da liminar, deve-se assegurar à parte interessada o
direito de questionar a decisão e, como foi utilizada a cognição sumária, via
de regra, será possível a revogação ou modificação da decisão liminar
prolatada. A regra geral do CPC brasileiro continua a ser a do contraditório
prévio ou antecedente, em oposição às decisões-surpresa
Ademais, vale dizer que,
segundo lógica já utilizada pelo sistema processual da Alemanha, de Portugal,
da França etc., lógica esta que inspirou os arts. 9o e 10 do CPC brasileiro, o
contraditório não gira, apenas, em torno de fatos, mas também em torno da
interpretação jurídica do texto normativo. Isso quer dizer que ao julgador
é vedado
interpretar e aplicar
a norma jurídica
solitariamente, devendo ouvir previamente as partes sobre o tema,
afinal, os brocardos da iuria novit curia ou da mihi factum dabo tibi
ius, devem ser, apenas, lembrança de um passado remoto, algo que deve
repousar nas catacumbas dos imperadores da Roma Antiga, porquanto incompatíveis
com o Estado Democrático de Direito.
Eis o motivo pelo qual soa
estranha a decisão do Superior Tribunal de Justiça que afirmou: “os fatos da
causa devem ser submetidos ao contraditório, não o ordenamento jurídico, o qual
é de conhecimento presumido não só do juiz (iura novit curia), mas de
todos os sujeitos ao império da lei, conforme presunção jure et de jure.
Vale lembrar que levar em
consideração o argumento das partes no momento da decisão, não quer dizer que o
magistrado deve concordar com a interpretação dada pelas partes.
Obviamente, quem decide é o
juiz e, portanto, pode, de forma fundamentada e com base no princípio da
reserva legal e com observância do devido processo legal, aceitar ou rejeitar
os argumentos e provas constantes nos autos.
Entretanto, o desprezo dos
argumentos e das provas trazido pelas partes, isso sim, configura ofensa ao
princípio do contraditório e, portanto, ao modelo constitucional de processo.
Que é traduzido com o significado semelhante ao juiz sabe o direito.
No campo jurídico, parêmia em que o juiz diria
à parte: dê-me os fatos que lhe dou o direito (tradução livre).
Perceba-se que o tema está
intimamente ligado às regras de fundamentação das decisões
judiciais presentes no
CPC brasileiro em
vigor (conforme art.
489 e, em especial, seu § 1º), haja vista que o
modelo de fundamentação indicado pela norma processual brasileira impede os
juízos solipsistas.
Italo Andolina (1997)
relacionou o poder de política ao poder das garantias, não se podendo destruir
a ideia de que o poder se liga à responsabilidade e, sobretudo, ao controle.
Ora, sendo assim, como
fiscalizar a atividade judicante solipsista? Como exercer o contraditório sobre
uma sentença solipsista que despreza
o argumento das
partes ou que
se funda, apenas,
em argumentos de cunho subjetivo, como o moral, a convicção íntima, a
intuição ou outro do gênero? Se todo poder emana do povo, como permitir que
este último seja afastado do
exercício da função
jurisdicional?
Já sabemos
que o discurso processual deve se basear no
princípio da objetividade argumentativa (MADEIRA, 2014a), justamente porque
argumentos de índole subjetiva impedem a comparticipação dos destinatários do
provimento jurisdicional.
É impossível ou extremamente
difícil exercer a fiscalização ou a contra-argumentação racional sobre
argumentos puramente morais, sensíveis, intuitivos, em resumo, subjetivas, pois
cada pessoa constrói tais atributos isoladamente, conforme a própria
experiência de vida. Não há, ao menos no plano jurídico e objetivo, uma moral,
uma sensibilidade, uma intuição, uma convicção e, uma melhor do que outra.
Não é acolhida a vontade
subjetiva no Estado Democrático de Direito e, ao mesmo tempo, não se pode
retirar do povo a possibilidade de controlar a atuação dos agentes públicos, já
que na democracia, todo poder emana do povo.
Não se pode negar a essência
humana do julgador, nem o valor da emoção, intuição, sensibilidade,
experiências pessoais e outra série de fatores de índole subjetiva.
O que se rejeita é adoção de tais critérios subjetivos como fundamento dos provimentos jurisdicionais, com exclusão do contraditório, algo que, explicitamente, não é permitido por grande parte do ordenamento jurídico dos países democráticos.
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WEBB, Eugene. Filósofos da
consciência: Polanyi, Lonergan, Voegelin, Ricoeur, Girard, Kierkegaard.
Tradução de Hugo Langone. Lisboa: Edições 70, 1986
WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER,
Theodor. Polémica sobre la “actio”. Trad. Tomás A. Banzhaf. Buenos
Aires: Europa-America, 1974.
WOLFF, Francis. Nascimento
da razão, origem da crise. In: a crise da razão. Adauto Novaes (org.). São Paulo: Companhia das Letras; Brasília:
Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996.
Notas:
[1] Zaratustra, também conhecido na versão grega de seu nome Zoroastres ou Zoroastro (Ζωροάστρης Zōroastrēs), foi um profeta e poeta nascido na Pérsia (atual Irã) no século VII a.C. Ele foi o fundador do Masdeísmo ou Zoroastrismo, religião adotada oficialmente pelo Império Aquemênida (558–330 a.C.) que pode ter sido a primeira religião monoteísta ética da história (existem debates acadêmicos inconclusivos sobre o assunto. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém (em alemão: Also sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen) é um livro escrito entre 1883 e 1885. pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que influenciou significativamente o mundo moderno. O livro foi escrito originalmente como três volumes separados em um período de vários anos. Depois, Nietzsche decidiu escrever outros três volumes, mas apenas conseguiu terminar um, elevando o número total de volumes para quatro. Após a morte de Nietzsche, ele foi impresso em um único volume. O livro narra as andanças e ensinamentos de um filósofo, que se autonomeou Zaratustra após a fundação do Zoroastrismo na antiga Pérsia. Para explorar muitas das ideias de Nietzsche, o livro usa uma forma poética e fictícia, frequentemente satirizando o Velho e Novo Testamento.
[2]
Questiona-se se nos atuais tempos pós-positivista se a discricionariedade ainda
seria um problema? E, quem nos pode responder é Ronald Dworkin e Robert Alexy
que são colocados em pé de igualdade ao desenvolverem a ponderação como método
para a aplicação dos princípios e pressupõe a inexorabilidade do juízo
discricional, intentando apenas racionalizá-lo. Dworkin é acesso a
discricionariedade tanto que desenvolve farta produção acadêmica nesse sentido.
Já Alexy reconhece que a discricionariedade é inexorável tanto que desenvolve
procedimento que, em tese, traria maior controle e certeza às decisões
judiciais.
[3]
O movimento para o Direito livre iniciou-se na Alemanha – por volta de 1903 -,
seu marco inicial foi uma conferência apresentada por Eugen Ehrlich – o tema
abordado era a luta pela ciência do Direito –, outro teórico com grande
contribuição para o movimento estudado em tela foi Herman Kantorowicz, este elaborou um manifesto no qual defendia o
movimento em estudo Em linhas gerais, a Escola do Direito Livre pregava a
liberdade do julgador para, mediante um caso concreto, buscar no Direito Livre
a decisão mais justa, podendo a mesma
estar de acordo ou não com os ditames do Direito estatal vigente.
[4]
O garantismo processual é uma posição doutrinária ortodoxa quanto à manutenção
irrestrita vigência da Constituição e, com ela, da ordem legal vigente no
Estado, assim prega que tal ordem se adeque com plenitude às normas
programáticas dessa mesma Constituição. Contemporaneamente, o garantismo busca
a manutenção da ordem constitucional do Estado, enfocando-se a estabilização e
segurança jurídica da jurisprudência pátria. Defende um jurisdição invariante e
que priorize a unificação jurisdição, lastreada no princípio da jurisdição una,
na qual os magistrados privilegiem as garantias processuais e julguem conforme
os ditames tanto infra como constitucionais.