Solipsismo judicial

O juiz solipsista, portanto, considera que sua consciência é muito mais importante do que os argumentos trazidos pelas partes, já que a interpretação e aplicação da lei ocorrem no modo solitário, tal como eremita na montanha.

Fonte: Gisele Leite

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A definição de solipsismo judicial contraria o modelo constitucional de processo e o princípio da legalidade, além de direcionar o discurso processual para vida nua,  caracterizada como espaço argumentativo não demarcado, criando um anarquismo metodológico na cognição jurisdicional.

O solipsismo judicial é modelo de julgamento incompatível com o vigente Código de Processo Civil brasileiro e, contraria, ainda, a legislação processual dos demais Estados democráticos. Onde há especial destaque do princípio do contraditório e, possibilita a saudável fiscalização recíproca dos atos processuais.

Enfim, o modelo constitucional de processo proposto pelas Constituições democráticas não admite, segundo a interpretação constitucional, a atuação solitária do magistrado, isto é, ao juiz é vedado tratar como acessória ou eventual a colaboração das partes na construção do provimento jurisdicional. E, a referida colaboração não se limita à oportunidade de manifestação das partes e dos seus advogados, mas de, efetiva e seriamente, levar em conta o argumento dos jurisdicionados.

Evidentemente que o debate a respeito do autoritarismo não é recente, nem inédito. Afinal, desde os gregos antigos, sofistas, socráticos ou não, passando pela Roma Antiga de Marco Túlio Cícero, assim, como pensadores das Idades Média e Moderna, e mesmo nos contemporâneos dias, temos notícias de reflexões sobre a tirania e a democracia.

O estudos sobre o tema ganharam novo impulso após a Segunda Grande Guerra Mundial, quando no mundo, existiram interessados na consolidação do Estado de Direito Democrático, passaram a se preocupar mais propriamente com tema, voltando-se, principalmente, à Teoria do Direito, à Filosofia do Direito, ao Direito Constitucional e, finalmente, ao Direito Processual.

Após a Segunda Guerra Mundial, tais debates, que antes se restringiam quase sempre aos círculos intelectuais mais restritos e eruditos, ganham um caráter mais prático, jurídico e político. O que é perceptível na Itália, por meio da biografia do jurista Piero Calamandrei, foi escritor, processualista, professor e ex-reitor da Università degli Studi di Firenze que atuou na resistência contra o fascismo. (MARINELLI, 2007)  e, renunciando seu cargo acadêmico, atuou politicamente na Assembleia Constituinte responsável pela formação da Primeira Constituição Democrática Italiana de 1947.

Em sua trajetória, com as restrições a liberdades impostas pelo fascismo, não obstante as críticas que se pode fazer ao seu pensamento atualmente, Calamandrei procurou atacar o argumento autoritário e ainda a questionar o próprio papel do Estado, dos juízes, dos advogados e do processo, com especial atenção à relação existente entre a liberdade e legalidade.

Segundo Calamandrei, a democracia passaria pela aplicação do processo jurisdicional, sendo que o autor italiano, em carta escrita a Niceto Alcalá-Zamora y Castillo onde questiona o modo da atuação dos juízes, dos advogados e das partes na estrutura do processo, indagando a lealdade processual deles e o equilíbrio entre a liberdade e  a autoridade.

No Brasil, o referido debate acadêmico traduziu reflexos na prática forense e dos tribunais, com grande ênfase, principalmente, após a Constituição Federal brasileira de 1988 em razão das pesquisas sobre o princípio do contraditório que vai além do simples direito de dizer, contradizer ou nada dizer e, além da simples e mera bilateralidade de audiência.

E, graças também ao labor dos processualistas tanto brasileiros como alienígenas, o contraditório passou a ser encarado como garantia de cooperação das partes para a construção do provimento jurisdicional, afastando, justamente, a noção de juiz solitário e solipsista.

A decisão solipsista  afronta  o princípio da legalidade e, encaminha o discurso processual para um espaço sem norma jurídica, promovendo assim anarquismo metodológica na cognição jurisdicional.

O solipsismo traduz-se em ser sacralização da atividade judicante, no sentido de Agamben, ou seja, onde há obscurecimento da atividade de julgar, tornando-a sagrada, e assim, inacessível à crítica.

Estabelecendo crença de que o juiz, por características que lhes são subjetivas e imanentes, seja capaz de dizer o que é bom, justo e certo além de verdadeiro para o restante da sociedade, especialmente, para aqueles que sofrerão os efeitos de suas decisões, especialmente, os jurisdicionados.

A bilateralidade de audiência significa inicialmente, conferir a oportunidade de manifestação ao autor e ao réu. Todavia, a simples bilateralidade de audiência já não mais é capaz de abrigar o sentido atualizado e contemporâneo dado ao princípio constitucional do contraditório.

Não deixa, o solipsismo de encarnar a vetusta ideia de justiça salomônica, como se cada juiz tivesse, tal qual na passagem bíblica, recebido de Deus um dom especial para fazer justiça, alçando-o a locus hermenêutico privilegiado e superior ao resto da população.

Infelizmente, a postura solipsista é frequentemente adotada no ambiente forense, mesmo em países democráticos, quando alguns julgadores utilizam frases e epítetos como "minha íntima convicção, minha compreensão, não compreendo assim, decido conforme minha consciência, conforme minha convicção e, etc." representando uma intensa subjetividade do que a percebida no cogito ergo sum (penso, logo existo) de Descartes, dada a falta de rigor metodológico de muitas dessas afirmações, ainda que sejam alinhavadas com citações legais e indicações de instrumento de prova, não raro, para mascarar a eterna subjetividade subjacente à decisão em si.

Enfim, o solipsismo carrega uma radicalização do eu, uma expansão da subjetividade, da solidão de decidir, de imposição da subjetividade de um em detrimento do outro, fazendo com que a interpretação da lei seja uma simples atividade de captação subjetiva do senso de justiça por locutor autorizado.

O juiz solipsista, portanto, considera que sua consciência é muito mais importante do que os argumentos trazidos pelas partes, já que a interpretação e aplicação da lei ocorrem no modo solitário, tal como eremita na montanha. À semelhança de Zaratustra[1] (Nietzsche, 2011), ou do super-homem(übermensch) de Nietzsche, parece esperar que alguém lhe dirija a pergunta capital: O que é a justiça?

O juiz solipsista é o mesmo que despreza a prova produzida pelas partes na instrução do processo, é como se esta não existisse nos autos do processo, assim, como é aquele que indefere perguntas às testemunhas sem apresentar um motivo claro. É, o que despreza absolutamente a interpretação da lei oferecida pelas partes sob o argumento de que somente ele conhece o direito (jura novit curia).

No Brasil, alguns processualistas são contra o solipsismo judicial, de forma explícita, entre os quais destacam-se José Joaquim Calmon de Passos, Aroldo Plínio Gonçalves, Rosemiro Pereira Leal e Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias.

Recentemente, há trabalhos importantes que procuram combater a linha teórica do solipsismo judicial. Contemporaneamente, Lenio Luiz Streck (2010) à semelhança dos doutrinadores retrocitados, vem mostrando a correlação entre o solipsismo judicial e a Filosofia da Consciência, quando in litteris afirmou:

Afirmou: “Despiciendo,  nesta  altura,  lembrar  que,  quando  critico  o  ‘solipsismo judicial’ ou, o que é a mesma coisa, as ‘decisões conforme a consciência do julgador’, tenho em mente a tese de que as decisões judiciais não devem ser  tomadas  a  partir  de  critérios  pessoais,  isto é, a partir da consciência psicologista.  Insisto,  pois,  que  se  trata  de  uma  questão  relacionada à  superação  do  paradigma  daquilo  que  se  denomina  de  ‘filosofia  da consciência”. 

A  justiça  e  o  Judiciário  não  podem  depender  da  opinião pessoal que juízes e promotores tenham sobre as leis ou os fenômenos sociais, até porque os sentidos sobre as leis (e os fenômenos) são produtos de uma intersubjetividade,  e não de um indivíduo isolado.

Diferentemente do que ocorre no solipsismo judicial, o discurso processo não mais admite que os fundamento das decisões judiciais se blindem da crítica, sob pena de não poder ser adjetivado como democrático e nem reconhecido como justo.

O subjetivismo defendido pela filosofia da consciência não se confunde com o ceticismo, porquanto este afirma que não há verdade alguma,  ideia contrária ao subjetivismo, que defende a existência da verdade, mas com uma limitação quanto a sua validade.

No Direito, considerar que a consciência pode definir um conceito jurídico seria retirar deste sua função – estabelecer parâmetros para a comunicação  – em prol de uma discricionariedade[2] que afastaria a tradição linguística.

Em outras palavras, o sujeito, na subjetividade de sua consciência, poderia, por exemplo, considerar que “lei” não é o que conhecemos como “lei”, mas sim o que conhecemos como “sentença judicial”. Assim, apossando-se do “conceito” “lei”, o sujeito não teria um conceito, porquanto formado unicamente em sua consciência.

Por esse motivo, conforme esclarece Streck (2013),  “o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de discricionariedades se enquadram paradigmaticamente no ‘paradigma epistemológico da filosofia da consciência’.”

Não é possível exercer o contraditório sob o argumento supostamente calcado na consciência, na moral e na compreensão metajurídica dos interlocutores. E, sem contraditório, não existe processo, mas apenas mero rito, mera forma sem conteúdo. Um zumbi burocrático.

Afinal, sair do Direito para ir argumentar, é, em verdade, excluir a fiscalização recíproca do discurso processual retirando deste sua legitimidade democrática, afinal, é impossível fiscalizar validamente um argumento extraído do juízo subjetivo.

São oportunos os excertos da palestra do ministro Marco Aurélio em Coimbra, em 2015. Ao mesmo tempo em que ele alertava para o fato de “o Brasil vive tempos estranhos com a perda de princípios e a inversão de valores em meio a crises econômica, financeira e política”, o Ministro Marco Aurélio vai ao âmago do problema, asseverando que “é preciso que haja proteção à coisa julgada, à previsibilidade da Justiça”. Bingo. E deixou claro que: “... os julgamentos não podem ser feitos conforme a cabeça do juiz. De bem-intencionados, de salvadores da pátria, o mundo está cheio.”

O juiz solipsista abandona completamente a metodologia do devido processo legal, e, ipso facto, o modelo constitucional de processo.  E, com inspiração e Feyerabend, a cognição jurisdicional não pode ser um lugar de vale-tudo, com absoluta ausência da procedimentalidade democrática.

Porém, esse protagonismo do magistrado no discurso processual é um legado das ideias defendidas pelo jurista alemão Oskar Büllow, no final do século XIX cuja teoria  do processo como relação jurídica surgiu na Alemanha e se espalhou pelo Ocidente, chegando na Itália e aportando em nosso país.

Na Itália, a influência de Büllow é presente nos principais doutrinadores processualistas da primeira metade do século XX, tais como, Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei e Liebman e, no Brasil, muitos também suportaram a mesma influência, tais como Cândido Rangel Dinamarco, Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, dentre outros.

Na  linha  bülowiana,  o  processo  é  visto  como  um  espaço  discursivo  que conta  com  a  regência   soberana  de  um  juiz  que  possui  virtudes,  sensibilidade, intuição  e  senso  de  justiça  pressupostamente  superiores  às  qualidades  dos demais participantes do discurso.

Portanto, Oskar Büllow (Büllow, 2003; Gonçalves, 1992; Leal, A., 2008), um dos representantes da Escola (ou Movimento) de Direito Livre[3], enxergava o juiz como uma supra-parte, já que, segundo ele, os magistrados deveriam, contra o legalismo, exercitar  uma atividade salvadora e criadora do Direito.

Como bem demonstrou André Cordeiro Leal (2008), a Teoria do Processo como Relação Jurídica de Büllow é uma teoria de caráter solipsista, sendo que esses  traços de solipsismo são detectados em diversos processualistas que, antes ou hoje, a adotam.

Apenas depois da Segunda Guerra Mundial e com a formação das bases teóricas do Estado Democrático de Direito é que fora possível questionar mais seriamente as ideias de Büllow, já que as tentativas anteriores, tais como as de Goldschmidt (1936) não foram capazes de abandonar o solipsismo judicial e o protagonismo do juiz no discurso processual, poiss, para o referido processualista germânico, o magistrado não estaria vinculado ao argumento trazido pelas partes aos autos e sequer seria obrigado a fundamentar sua decisão.

De certo que a constitucionalização do Direito Processual ocorrida na América Latina e Europa exige o abandono e a represália ao solipsismo judicial, de forma a garantir a participação efetiva das partes na construção de decisões judiciais. E, passamos todos a nos deparar com a chamada crise da instrumentalidade do processo.

O cenário processual civil brasileiro ainda resta dominado pelo instrumentalismo e a combalida ideia de instrumentalidade do processo que teve seu fôlego renovado pela cooperação. O instrumentalismo não é apenas o discurso dominante, senão marcado por pretensão de exclusividade.

O instrumentalismo é refratário a natureza do processo tida como instituição de garantia. O garantismo processual[4] enquanto fenômeno processual como um todo (civil, penal, administrativo, eleitoral e, etc.) postula o irrestrito acatamento da Constituição e, suas assertivas têm sido corroboradas no Brasil.

Longe de se desprezar a longa tradição existente no direito anglo-saxão, afirma-se que na vertente romano-germânica, a constitucionalização do Direito Processual prosperou e ganhou força, particularmente, na América Latina, e se iniciou, a partir da década de 1940, por esforço de processuais-constitucionalistas latino-americanos, isso sem desprezar a contribuição embrionária de certos juristas europeus que promoveram a aproximação maior entre o Direito Processual e o Direito Constitucional.

E, certos jurídicos, em face de contingências históricas, chegaram a viver na América, tais como Hans Kelsen, nos EUA, Niceto Alcalá-Zamora Y Castillo (no México) e Enrico Tullio Liebman no Brasil, contribuindo para farto intercâmbio acadêmico com os colegas latino-americanos.

Já no Velho Continente, especialmente, na Itália, destacou-se os trabalhos de Calamandrei, Cappelletti, Giuseppe Vignera, Ítalo Andolina, Massimo Luciani  e Gustavo Zagrebelsky que, sem dúvida, esboçaram a constitucionalização processual, sob a influência em geral do direito anglo-saxão.

Em que pese a contribuição valorosa dos mencionados juristas europeus e a tradição do common law, o Direito Processual Constitucional, ganhou entre os teóricos da tradição romano-germânica adeptos e mesmo os pioneiros como Eduardo J. Couture (Uruguai), Héctor Fix-Zamudio (México), Domingo García Belaunde (Peru), José Frederico Marques (Brasil)), Néstor Sagüés (Argentina) e José Alfredo Oliveira Baracho (Brasil) dentre outros que se seguiram mais recentemente.

Pode-se dizer que o modelo  constitucional  de  processo é formado pelo conjunto de normas constitucionais atinentes ao processo e, desse modo, se cada país possui sua Constituição, é de se inferir que cada país possui, igualmente, seu modelo constitucional de processo. Contudo, como existem paradigmas constitucionais de Estado, estes também influenciam na formação do modelo constitucional de processo.

Isso quer dizer que o modelo constitucional de processo do Estado de Direito Liberal é diferente do modelo do Estado de Direito Social, assim como é distinto do Estado de Direito Democrático.

Dentre outros juristas, Andolina e Vignera (1990) trataram do tema na famosa obra “Il modello costituzionale del processo civile italiano”. A proposta de Andolina e Vignera, como  lembra  Flaviane  Barros  (2009),  é  a  de  um  modelo  constitucional  de processo único e de tipologia plúrima, sendo que na Constituição se encontraria a base principiológica que tornaria possível enxergar o processo como garantia.

Entretanto, tal modelo, mesmo sendo único, teria a capacidade de expandir-se, aperfeiçoar-se e especializar-se, exigindo do intérprete sua compreensão a partir dos princípios que o inspiram, levando em conta, ainda, as características específicas do procedimento.

Não há dúvidas de que tais ideias influenciaram a criação do Código de Processo Civil (CPC[5]) de 2015, afinal, na Exposição de Motivos (BRASIL, 2010), há, inclusive, referência expressa à obra dos processualistas italianos antes citados

Hoje, costuma-se dizer que o processo civil se constitucionalizou. Fala-se em  modelo  constitucional  do  processo,  expressão  inspirada  na  obra  de Ítalo Andolina e Giuseppe Vignera, Il modello costituzionale del processo civile italiano: corso di lezioni (Turim, Giapicchelli, 1990). O processo há de  a ser examinado, estudado e compreendido à luz da Constituição e de forma a dar o maior rendimento possível aos seus princípios fundamentais.

Tanto que no bojo da Exposição de Motivos do CPC Brasileiro, se vê a necessidade de harmonização da legislação processual infraconstitucional às normas processuais constitucionais.

Ouso afirmar que o princípio do contraditório corresponde ao eixo hermenêutico do CPC de 2015, afinal, a legislação processual pátria está alinhada à Constituição e, impede as chamadas decisões surpresa. É o que se percebe do artigo 10, que determina in litteris:

A regra geral, portanto, é a de se estabelecer o contraditório prévio ou antecedente, mas vale dizer que o próprio CPC (parágrafo único do art. 9o) estabeleceu três hipóteses para as quais são possíveis decisões liminares sem contraditório prévio, são elas: (i) tutela provisória de urgência (art. 300); (ii) tutela de evidência (apenas nas hipóteses dos incisos II e III do art. 311); e (iii) decisão da ação monitória (art. 701).

Percebe-se que  o  Brasil  acolhe,  portanto,  a  ideia  de  contraditório  como  garantia  de influência e não-surpresa sobre as decisões judiciais, mas é preciso deixar claro que tal norma jurídica não é exclusividade brasileira. Antes do Brasil, outros países já adotavam a mesma norma jurídica, podendo-se citar, por exemplo, a Alemanha [§ 139  ZPO], a  Itália (art. 183, CPC), a França (art. 16, CPC), Portugal [art. 3º , CPC) e Áustria (§ 182a).

Já há, portanto, uma tradição jurídica e um verdadeiro movimento científico comum por trás do princípio do contraditório, sempre com o objetivo de assegurar a participação dos cidadãos na construção do provimento judicial e, em última palavra, a democracia.

Frise-se, contudo, que a regra geral para a aplicação do princípio do contraditório é  a  do  contraditório  prévio  e,  mesmo  nas  ressalvas  acima  consideradas,  deve-se assegurar às partes o contraditório postecipado ou diferido, ou seja, após a concessão da liminar, deve-se assegurar à parte interessada o direito de questionar a decisão e, como foi utilizada a cognição sumária, via de regra, será possível a revogação ou modificação da decisão liminar prolatada. A regra geral do CPC brasileiro continua a ser a do contraditório prévio ou antecedente, em oposição às decisões-surpresa

Ademais, vale dizer que, segundo lógica já utilizada pelo sistema processual da Alemanha, de Portugal, da França etc., lógica esta que inspirou os arts. 9o e 10 do CPC brasileiro, o contraditório não gira, apenas, em torno de fatos, mas também em torno da interpretação jurídica do texto normativo. Isso quer dizer que ao julgador é  vedado  interpretar  e  aplicar  a  norma  jurídica  solitariamente,  devendo  ouvir previamente as partes sobre o tema, afinal, os brocardos da iuria novit curia ou da mihi factum dabo tibi ius, devem ser, apenas, lembrança de um passado remoto, algo que deve repousar nas catacumbas dos imperadores da Roma Antiga, porquanto incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.

Eis o motivo pelo qual soa estranha a decisão do Superior Tribunal de Justiça que afirmou: “os fatos da causa devem ser submetidos ao contraditório, não o ordenamento jurídico, o qual é de conhecimento presumido não só do juiz (iura novit curia), mas de todos os sujeitos ao império da lei, conforme presunção jure et de jure.

Vale lembrar que levar em consideração o argumento das partes no momento da decisão, não quer dizer que o magistrado deve concordar com a interpretação dada pelas partes.

Obviamente, quem decide é o juiz e, portanto, pode, de forma fundamentada e com base no princípio da reserva legal e com observância do devido processo legal, aceitar ou rejeitar os argumentos e provas constantes nos autos.

Entretanto, o desprezo dos argumentos e das provas trazido pelas partes, isso sim, configura ofensa ao princípio do contraditório e, portanto, ao modelo constitucional de processo. Que é traduzido com o significado semelhante ao juiz sabe o direito.

 No campo jurídico, parêmia em que o juiz diria à parte: dê-me os fatos que lhe dou o direito (tradução livre).

Perceba-se que o tema está intimamente ligado às regras de fundamentação das  decisões  judiciais  presentes  no  CPC  brasileiro  em  vigor  (conforme  art.  489  e,  em especial, seu § 1º), haja vista que o modelo de fundamentação indicado pela norma processual brasileira impede os juízos solipsistas.

Italo Andolina (1997) relacionou o poder de política ao poder das garantias, não se podendo destruir a ideia de que o poder se liga à responsabilidade e, sobretudo, ao controle.

Ora, sendo assim, como fiscalizar a atividade judicante solipsista? Como exercer o contraditório sobre uma sentença solipsista  que  despreza  o  argumento  das  partes  ou  que  se  funda,  apenas,  em argumentos de cunho subjetivo, como o moral, a convicção íntima, a intuição ou outro do gênero? Se todo poder emana do povo, como permitir que este último seja  afastado  do  exercício  da  função  jurisdicional? 

Já  sabemos  que  o  discurso processual deve se basear no princípio da objetividade argumentativa (MADEIRA, 2014a), justamente porque argumentos de índole subjetiva impedem a comparticipação dos destinatários do provimento jurisdicional.

É impossível ou extremamente difícil exercer a fiscalização ou a contra-argumentação racional sobre argumentos puramente morais, sensíveis, intuitivos, em resumo, subjetivas, pois cada pessoa constrói tais atributos isoladamente, conforme a própria experiência de vida. Não há, ao menos no plano jurídico e objetivo, uma moral, uma sensibilidade, uma intuição, uma convicção e, uma melhor do que outra.

Não é acolhida a vontade subjetiva no Estado Democrático de Direito e, ao mesmo tempo, não se pode retirar do povo a possibilidade de controlar a atuação dos agentes públicos, já que na democracia, todo poder emana do povo.

Não se pode negar a essência humana do julgador, nem o valor da emoção, intuição, sensibilidade, experiências pessoais e outra série de fatores de índole subjetiva.

O que se rejeita é adoção de tais critérios subjetivos como fundamento dos provimentos jurisdicionais, com exclusão do contraditório, algo que, explicitamente, não é permitido por grande parte do ordenamento jurídico dos países democráticos.

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Notas:

[1] Zaratustra, também conhecido na versão grega de seu nome Zoroastres ou Zoroastro (Ζωροάστρης Zōroastrēs), foi um profeta e poeta nascido na Pérsia  (atual Irã) no século VII a.C. Ele foi o fundador do Masdeísmo ou Zoroastrismo, religião adotada oficialmente pelo Império Aquemênida (558–330 a.C.) que pode ter sido a primeira religião monoteísta ética da história (existem debates acadêmicos inconclusivos sobre o assunto. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém (em alemão: Also sprach Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen) é um livro escrito entre 1883 e 1885.  pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que influenciou significativamente o mundo moderno. O livro foi escrito originalmente como três volumes separados em um período de vários anos. Depois, Nietzsche decidiu escrever outros três volumes, mas apenas conseguiu terminar um, elevando o número total de volumes para quatro.  Após a morte de Nietzsche, ele foi impresso em um único volume. O livro narra as andanças e ensinamentos de um filósofo, que se autonomeou Zaratustra após a fundação do Zoroastrismo na antiga Pérsia. Para explorar muitas das  ideias de Nietzsche, o livro usa uma forma poética e fictícia, frequentemente satirizando o Velho e Novo Testamento.

[2] Questiona-se se nos atuais tempos pós-positivista se a discricionariedade ainda seria um problema? E, quem nos pode responder é Ronald Dworkin e Robert Alexy que são colocados em pé de igualdade ao desenvolverem a ponderação como método para a aplicação dos princípios e pressupõe a inexorabilidade do juízo discricional, intentando apenas racionalizá-lo. Dworkin é acesso a discricionariedade tanto que desenvolve farta produção acadêmica nesse sentido. Já Alexy reconhece que a discricionariedade é inexorável tanto que desenvolve procedimento que, em tese, traria maior controle e certeza às decisões judiciais.

[3] O movimento para o Direito livre iniciou-se na Alemanha – por volta de 1903 -, seu marco inicial foi uma conferência apresentada por Eugen Ehrlich – o tema abordado era a luta pela ciência do Direito –, outro teórico com grande contribuição para o movimento estudado em tela foi Herman Kantorowicz,  este elaborou um manifesto no qual defendia o movimento em estudo Em linhas gerais, a Escola do Direito Livre pregava a liberdade do julgador para, mediante um caso concreto, buscar no Direito Livre a decisão mais justa,  podendo a mesma estar de acordo ou não com os ditames do Direito estatal vigente.

[4] O garantismo processual é uma posição doutrinária ortodoxa quanto à manutenção irrestrita vigência da Constituição e, com ela, da ordem legal vigente no Estado, assim prega que tal ordem se adeque com plenitude às normas programáticas dessa mesma Constituição. Contemporaneamente, o garantismo busca a manutenção da ordem constitucional do Estado, enfocando-se a estabilização e segurança jurídica da jurisprudência pátria. Defende um jurisdição invariante e que priorize a unificação jurisdição, lastreada no princípio da jurisdição una, na qual os magistrados privilegiem as garantias processuais e julguem conforme os ditames tanto infra como constitucionais.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Solipsismo Ativismo Judicial Judicialização da Política Jurisprudência STF CPC/15

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