Limites do humor
Um pungente questionamento nos acomete: Existem limites para o humor? O texto aponta desde as premissas filosóficas como sociológicas, a questão sobre a relação e importância do humor. E, em recente episódio capitaneado por Will Smith, na entrega do Oscar de 2022, novamente, nos faz repensar os fundamentos de ser engraçado e aceitável.
Para
falarmos de humor, entendo conveniente indicar a origem que remonta a Gilles
Lipovetsky é um filósofo francês, professor de Filosofia da Universidade de
Grenoble, considerado como teórico da hipermodernidade[1]
(termo criado por ele para definir a atual sociedade humana, demonstrando a
exacerbação dos valores criados pela modernidade, tais como liberdade,
igualdade e outros).
Gilles[2]
em suas principais obras, e em particular a “A Era do Vazio : Ensaios
Sobre o Individualismo
Contemporâneo” (“o Luxo
eterno”, “O império do efêmero” e, ainda “Os tempos hipermodernos”) analisa
sociedade pós-moderna, marcado pelo desinvestimento público, pela perda de
sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas, e notabilizada
pela cultura aberta que tenta dar um clima “cool”
nas relações humanas, buscando o predomínio da tolerância, hedonismo,
personalização dos processos de socialização e a coexistência pacífico-lúdica
dos antagonismos – violência e convívio, modernismo e ambientalismo e consumo
desenfreado.
A
lógica bipolar que se traduz num humor de humilhação e arrogância e que torna
escatológico o rir. E transforma o politicamente incorreto em absolutamente
indispensável para o script.
O humor que é capaz de esculachar a orfandade no dia das mães, de meritizar o estuprador... e, quiçá ser incentivador de crimes sexuais, além de incorrer em machismo démodé ou em pedofilia galante, só para não perder a oportunidade da piada. Não é humor... infelizmente é apenas um apelo gritante por maior atenção na mídia.
O
humor e isso inclui seu limite, exige reflexão, já apontava Luigi Pirandello
pois afasta o emocional e lança o olhar crítico e cônico incidente no objeto...
vindo a mergulhar em raízes filosóficas e mesmo filológicas. O riso, por vezes,
significa a síncope da emoção, e o lampejo da razão que desnuda a mecânica
grotesca dos ciclos vitais.
O
humor que reforça o preconceito ou o elitismo não é humor... atropela a
dignidade humana e, sem esta, não há como achar graça de nada...não sei se
lembram, do primo rico e do primo pobre que eram representados por Paulo
Gracindo e Brandão Filho que já em seu tempo era considerado politicamente
incorreto e aos poucos foi mostrando o lado negro da miséria e o comprometimento
do Estado na manutenção da mesma.
E,
também não significa censura, o fato de se restringir a liberdade de expressão
que fere a dignidade da pessoa humana, os valores morais e sociais, como a
família, a maternidade, a criança e, enfim, a reserva moral da sociedade.
Aliás,
convém ressaltar sempre que não existem liberdades absolutas, assim como não
existem direitos fundamentais absolutos e irrestritos. Sempre far-se-á
ponderabilidade em prol de valores que norteiam toda a tutela jurídica sobre a
vida humana, sobre a família, e, enfim, sobre a sociedade.
Outra
coisa muito atentatória aos limites do humor é a vaidade, principalmente, se
esta demonstra apenas um grande ego vazio e ingênuo. O humor tem efetiva função
de protesto, de exposição e de inquirição. E não mera autopromoção e autoestima.
A exposição ao ridículo pode trazer a lume a
realidade dos fatos, mas ridicularizar o trem de Auschwitz significa
menosprezar o seu significado, a agudeza do significado que foi o genocídio
submetido aos judeus e, mesmo o fato de ser judeu, não o credencia à imunidade
e nem ao mau gosto.
Ainda
que pensemos na relação umbilical entre humor etnia[3]
e na tradição do humor judaico, e só para citar como exemplos temos: o Jerry
Seinfeld, Woody Allen e Billy Cristal, cada cultura reage particularmente a
esse tipo de humor. E quanto maior o grau de cultura e civilidade as reações
não beiram a ironia cáustica e corrosiva.
Mas
talvez um mero meio defensivo de satirizar a própria sorte( ou será azar).
Em
verdade, o humor é preâmbulo da comédia, mas com essa não se confunde. A grande
ironia do humor que atribuem ao stand up
é no exercício solitário e desafiador do comediante, aliás, foi precursor no
Brasil José de Vasconcelos, e criou o espetáculo solo e preconizou o humor de
cara limpa.
O
stand up comedy não conta piadas ou
anedotas conhecidas ou desconhecidas de seus ouvintes. O texto é originalmente
calcado e construído através de observações feitas cotidianamente, e requer uma
lapidação de sessenta a setenta minutos do material humorístico, principalmente
por ser um estilo difícil de execução e domínio, pois o comediante está despido
de personagens, apresentando apenas suas idéias sobre as coisas do mundo, sobre
o que se passa pela sociedade...
Expõe
o seu olhar crítico sobre o lado engraçado do cotidiano.
E
eis, aí, um grande filão, pois a prova de fogo é enfrentar um heckler[4],
ou seja, um membro da audiência que por algum motivo reage ou interage com o show, mas em geral de forma não muito
amistosa, podendo até vir a responder de forma maior e mais contundente
desviando a platéia do entretenimento.
No
Brasil, o stand up comedy começa
fazer sucesso principalmente por introduzir um humor contundente e adolescente,
incrementado pelas redes sociais, mas ainda me pergunto: existem limites?
A
hipermodernidade que foi a grande inspiradora desse humor, conhece limites?
Existem regras para fazer rir, para fazer refletir e, finalmente, para
continuarmos humanos e humanizantes? Afinal, seu próprio idealizador, Gilles
Lipovetsky afirmou que a hipermodernidade nunca existiu, apesar de ser termo
muito popular.
Bem,
não será desacatando jornalistas, cantoras, pais, mães e órfãos ou judeus que
descobriremos... Mas há uma certeza de que a fama efêmera do escândalo provinciano
e pequeno burguês irremediavelmente passa... como também passa, a carruagem do
tempo a nos lembrar dos valores eternos.
Recentemente,
o Will Smith deu um tapa e Chris Rock durante a apresentação do Oscar de 2022.
Inicialmente, o público acreditava que fosse apenas mais uma encenação da
cerimônia, mas tratava-se de uma agressão real em face de uma piada sobre a doença
da esposa de Will. Algumas pessoas comentaram ainda que a relação entre dois já
não era boa, tanto que o mesmo comediante teria passado dos limites nas piadas
direcionadas a Will e Jada.
Will
Smith após ser premiado como melhor ator do Oscar de 2022, subiu ao palco e,
agradeceu o apoio de sua família e, ainda pediu desculpas para Academia em face
da agressão proferida contra Chris Rock. Em seu discurso foi até as lágrimas,
mas, um questionamento ainda nos assola: vale tudo em prol do humor? Qualquer
piada é válida, principalmente, quando atinge a dignidade humana?
Enfim,
erraram todos, o comediante e o melhor ator de 2022. Inclusive a Academia do Oscar
ao programar a cerimônia. A propósito, a cerimônia de entrega do Oscar já
registra franca decadência de público e de atenção. Mas, tudo seria resolvido
se mantivessem o tom sofisticado e formal, sem lugar, para humor descabido ou graça desnecessária.
Enfim, as suscetibilidades contemporâneas encontram-se exacerbadas... todo
cuidado é pouco.
Não queremos viver no caos e nem na selva. Existem valores éticos que não morreram como o respeito humano e o pluralismo. E o humor pode ser salvo por ser a crítica engraçada da história ou estória dos homens, repleta de paradoxos, competitividade e valores humanísticos e democráticos. Afinal, não se compra a felicidade e nem a dignidade.
Referências
LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos.
São Paulo: Barcarolla, 2004.
_______________. ROUX,Elysette. O Luxo Eterno - Da idade dosagrado
ao tempo das marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
_______________. A Terceira Mulher. Acesso em
12/10/2011. In: http://pt.scribd.com/doc/15487395/A-terceira-Mulher
FRAGA, Celso. Somos hipermodernos.
Tradução de Vanise Dresch. Acesso em: 12/10/2011. In: http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/cibercidades/lipovetsky.pdf
ROGAR, Silvia. Entrevista: Gilles Lipovetsky. Beleza para todos. Veja On-line 25/09/2002. Acesso em: 12/10/2011.
In: http://veja.abril.com.br/250902/entrevista.html
Notas:
[1]
A Hipermodernidade não significa uma
contestação da modernidade, pois apresenta características similares em relação
aos seus princípios, como ênfase no progresso técnico científico, na
valorização da razão humana e no individualismo. A modernidade foi
conceptualizada como a superação dos setores modernos sobre os setores
tradicionais, por meio do progresso técnico, da industrialização e na
valorização do indivíduo
[2]
O francês Gilles
Lipovetsky, é um dos nomes mais criativos e polêmicos do pensamento filosófico
contemporâneo. Foi ativista dos movimentos que culminaram no maio de 1968, teve
participação importante na reformulação do ensino de filosofia na França e,
atualmente, trabalha para o programa europeu de unificação escolar. Reconhecido
como um intelectual "sério", causou polêmica quando lançou O
Império do Efêmero, em 1987.
[3]
"O que define a
hipermodernidade não é exclusivamente a autocrítica dos saberes e das
instituições modernas; é também a memória revisitada, a remobilização das
crenças tradicionais, a hibridização individualista do passado e do presente.
Não mais apenas a desconstrução das tradições, mas o reemprego dela sem
imposição institucional, o eterno rearranjar dela conforme o princípio da
soberania indiviudal"(Lipovetsky, 2004:98)
[4] Heckler é um termo de origem inglesa, usado para definir uma pessoa que interrompe locutores para discutir ou fazer perguntas embraçosas. No tempo dos shows de vaudeville ou de teatro de rvista, os falsos heckler eram introduzidos nas apresentações, brincando com a quarta parede, criando uma interação com o público. Na comédia, se tornaram comuns os dules de piados e com pessoas, por vezes, repleto de insultos.