Etiologia da negligência infantil
É perversa a situação dos negligentes que foram negligenciados e abandonados à própria sorte e, que sofrem e fazem sofrer, perfazendo um ciclo cruel e inexorável, gerando desproteção e desumanização crescente. A proteção da família e dos vulneráveis correspondentes às crianças e adolescentes é uma responsabilidade da sociedade e do Estado. A falta de políticas públicas capazes de atender as necessidades sociais revelam também a negligência do Estado com a questão.
A
negligência infantil produzida no país reflete as questões de gênero e classe
social o que podem interferir na interpretação das famílias. Essa negligência é
uma das mais recorrentes violências cometidas e, que afronta a proteção
integral da infância deferida pela ordem constitucional vigente e pelo ECA bem como
pelas demais legislações infraconstitucionais.
Observa-se
que as situações nomeadas como negligência são diversas e submetidas as mais
diferentes caracterizações, muitas vezes, controversas, por se fulcrarem em
meros juízos subjetivos e muitas vezes condenatórios em face de determinados
perfis de famílias.
Ora a
família é negligente e, ora é negligenciada e, em muitos casos, vivencia-se as
duas situações simultaneamente.
A
prescrição positivada no ordenamento pátrio sobre a proteção integral durante o
período da infância e adolescência reforça a responsabilização do Estado, da
sociedade e, ainda, da família. No entanto, muitas famílias acusadas de
negligentes são culpabilizadas e, nesse contexto estão as mulheres pobres ou em
situação de miséria e, suas respectivas famílias que são as mais
criminalizadas.
Sem
esquecer que nas áreas da saúde e de proteção aos direitos dos vulneráveis,
notadamente, no período da primeira infância, a legislação pátria pune as
práticas de ausência ou omissão de cuidados, em geral, em que a violência se
comunga com a violação de direitos. Eis que tanto o texto constitucional vigente
como também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assim enfatizam.
Lembremos
que as mudanças sociais, igualmente, se refletem nas famílias bem como
instituições sociais, onde as relações de poder e dominação presentes nos
processos de judicialização de suas vidas. E, assim, a família pobre galga novo
status a de família negligente.
A
família é chamada a proteger em decorrência da visão naturalizada de que esta é
sua função primeira, e se assim não ocorre, é taxada de disfuncional, sendo responsável
pela a maior vulnerabilidade de seus membros e, sendo considerada como
negligente.
Convém
destacar a conceituação de negligência que é a ação e omissão de responsáveis
quanto aos cuidados básicos na atenção, como a falta de alimentação, escola,
cuidados médicos, roupas, recursos materiais e/ou estímulos emocionais, necessários
à integridade física e psicossocial da criança e do adolescente, ocasionando
prejuízos ao desenvolvimento.
Isto
caracteriza o abandono, que pode ser parcial ou total. No parcial coloca a
criança e adolescente em situação de risco; no total elas ficam desamparadas e
ocorre o afastamento total da família[1].
A
negligência ao ser definida demonstra clara preocupação com os danos físicos,
sociais e psicológicos das situações vivenciadas na infância, sendo uma das
modalidades de violência doméstica. Essas questões familiares são permeadas por
questões de gênero e classe social que precisam mesmo ser debatidas para
efetivarmos a real proteção social das crianças.
A
problematização sobre as próprias condições sociais, estruturais, culturais e,
principalmente, econômicas que tanto impactam na oferta e manutenção do que é
atribuído como cuidado.
Sendo
questionada se a falta ou simples omissão dos mesmos cuidados que é, normalmente,
considerada como negligência familiar não seria, em verdade, o reflexo de
escassos investimentos nas políticas de proteção aos direitos das crianças e adolescentes
e de suas respectivas famílias.
Aliás,
diante da realidade brasileira, a negligência dos pais e a terceirização a
criação e educação dos filhos também é responsável por evidenciar as
desigualdades agudas, na medida em que os recursos necessários para haver um
cuidado integral dos vulneráveis não estão disponíveis para todas as camadas sociais.
Essa negligência reflete também quando a criança não consegue vaga escolar
somente em local distante de sua residência, ou ainda, em local perigoso.
Outro fenômeno
é a feminização da negligência na infância, pois não ocorre como fato
atribuível a todos os membros da família, mas sim, em geral atribuída às
mulheres posto que sejam reincidentes alvos de discriminação e exclusão social.
Historicamente,
as mulheres são responsáveis pelo espaço privado, pois além de gerar e gestar a
prole, sua maternidade inclui o cuidado integral com a criança, principalmente,
nos primeiros anos de vida. Ainda que na atualidade possam ser constatadas
mudanças gradativas nos padrões de masculinidade.
Ainda
assim, poucos homens se responsabilizam por seus filhos, especialmente, nos
cuidados referentes à alimentação, higiene, segurança, educação e, mesmo, no
acompanhamento escolar e de saúde. Ideologicamente, em grande parte, é creditado
a manutenção financeira da casa e da família, apesar de estarmos em pleno
século XXI.
Aliás,
quanto menor for a criança, maior será a responsabilização da mãe e, assim
patologiza-se todos os tipos de negligências.
Apesar
da conquista pública as mulheres que lhes permitiram maior independência e
igualdade em face dos homens, as mulheres ainda possuem maior responsabilidade,
apesar de não receberem o devido suporte e reconhecimento de toda a sociedade.
Precisamos
atentar para o contexto sociocultural machista (ainda prevalente) e, no que
tange ao poder familiar, no ECA, indica-se que deve ser exercido de forma
igualitária pelo pai e mãe, e no passado, o vetusto pátrio poder, onde outrora
somente o pai era o detentor do poder sobre os filhos, fora substituído pelo
poder familiar.
Com o
advento do Código Civil brasileiro de 2002, em seu artigo 1.565 observou-se
significativa diferença ao afirmar que homens e mulheres assumem mutuamente a
condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos de família
sendo a direção da sociedade conjugal exercida pelo homem e pela mulher, sempre
no fiel interesse do casal e dos filhos.
Deve-se
frisar que a negligência na infância é justificativa usada para destituição do
poder familiar[2]
e, não raramente as crianças são recolhidas em instituições para devido
acolhimento, ou com outros cuidadores, em razão de negligência direcionada por
seus responsáveis.
As
famílias abandonadas também abandonaram e abandonam seus filhos que são vítimas
dos mesmos processos de exclusão e alheamento, e que sofrem abusos físicos e
psicológicos pois são desassistidas pela sociedade e pelo o Estado.
Por
derradeiro, é relevante pautar no debate e elucidação da negligência na
infância o lugar da mulher e mãe a fim de desconstruir a ideia de que seja a
mãe, a única responsável pelos cuidados com a família e filhos, cuidando de
suas obrigações, bem como a visão deturpada do super pai quando o mesmo cuida
da própria prole.
Uma
questão angustiante se propõe e, ainda, permanece sem resposta: quem cuidará
dos negligentes que foram também negligenciados?
Referências
BRASIL.
Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado
Federal, 1988.
_______.
ECA - Estatuto da Criança e Adolescente. Brasília: Senado Federal, 1990.
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T.; PEREIRA, A. Da negligência aos negligenciados: práticas arbitrárias no
acolhimento institucional e o abandono na maioridade. Anais... IV Jornada
Internacional de Políticas Públicas. São Luís, MA, 2013.
Notas:
[1]
Não há legislação específica que tipifique a negligência ou o abandono afetivo
como ilícitos civis passíveis de sanção.
O Código Penal prevê a punição para maus-tratos, com aumento de pena
quando o crime é praticado contra menores de 14 (quatorze) anos. Entretanto, dadas as situações da vida diária
que desaguam no Poder Judiciário por meio de litígios, os tribunais vêm estabelecendo parâmetros que estão repensando
essa situação.
[2]
A reiterada negligência dos pais nos cuidados com a prole viola os direitos da
criança e conduz à situação excepcional de destituição do poder familiar. O
Ministério Público ajuizou procedimento de acolhimento institucional cumulado
com busca e apreensão e destituição do poder familiar em favor de uma criança
de 2 anos de idade que se encontrava em situação de vulnerabilidade, cujos
irmãos já haviam sido transferidos para abrigo social pelas mesmas razões. O
pleito de destituição do poder familiar foi deferido pelo Juízo sentenciante e
a criança foi recebida em família substituta. Os genitores apelaram.
Sustentaram que nunca desistiram da filha nem praticaram condutas que
justificassem a perda do poder familiar. Ao analisarem o recurso, os
Desembargadores consignaram que o poder familiar é o conjunto de direitos e
obrigações exercidos pelos pais e está relacionado ao dever de sustento dos
filhos, à assistência moral, emocional e educacional por meio do convívio, da
interação e da responsabilidade (artigos 227 da Constituição Federal, 1.634 do
Código Civil e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente). Destacaram que, de
acordo com o relatório do Conselho Tutelar, o núcleo familiar é acompanhado desde
2012 e, no início de 2017, o órgão recebeu denúncias de agressão física e
psicológica perpetradas pelos apelantes contra os filhos, uso imoderado de
bebida alcoólica na residência, choro constante de criança e menores em idade
escolar ainda não matriculados na rede de ensino. Além disso, o Conselho
relatou que, no mesmo ano, os recorrentes foram denunciados pela morte de outra
filha (de 2 meses de idade) decorrente de intoxicação por paracetamol após
queda violenta sem que os pais tivessem providenciado o atendimento médico
adequado. O Colegiado entendeu que os fatos narrados demonstram a conduta
reiterada dos recorrentes em negligenciar os cuidados com a prole, o que foi
corroborado pela instituição acolhedora ao informar que, mesmo após um mês de
admissão da criança, os genitores não haviam ido visitá-la. Os Julgadores
concluíram que o histórico de maus-tratos, a vulnerabilidade social e a conduta
omissa dos apelantes expuseram os menores a situações de risco e violaram
direitos fundamentais das crianças, motivo pelo qual não possuem condições de
garantir a proteção integral da filha. Nesse contexto, a Turma registrou que a
decisão do Juízo a quo baseou-se não apenas na falta de recursos materiais dos
genitores, mas em “elementos situacionais e estruturais da família e da
indisponibilidade de os pais se organizarem física e mentalmente para assumir
responsavelmente os cuidados da filha”, e, assim, negou provimento ao recurso.
Acórdão 1255448, 00064398920188070013, Relator Des. JOÃO EGMONT, 2ª Turma
Cível, data de julgamento: 10/6/2020, publicado no PJe: 22/6/2020.