Constitucionalidade de lei estadual em tempo de pandemia
O julgamento da constitucionalidade da Lei 5.145/2020 do Estado do Amazonas reacende o debate sobre o Estatuto de Patrimônio Mínimo e a necessidade de preservação da dignidade da pessoa humana como vetor hermenêutico para as relações jurídicas mesmo na órbita privada.
Há uma lei do Estado do Amazonas que
proíbe o corte de energia elétrica durante a pandemia de coronavírus é
constitucional e, tal decisão fora proferida pelo STF, por maioria de votos,
através de sessão virtual encerrada no último dia 28 de maio de 2021.
A lei avaliada é a de número 5.145/2020 e, fora questionada pela Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) sob a alegação de que a lei infraconstitucional teria invadido indevidamente a competência da União para legislar sobre o direito civil, explorar serviços e instalações da energia elétrica[1] e, promover a defesa contra a calamidade pública[2].
Oportunamente, o relator, o Ministro
Marco Aurélio ainda destacou que o texto constitucional brasileiro vigente não
cria impedimento para a elaboração de legislação estadual ou distrital que,
ainda, preservando o núcleo relativo as normas gerais editadas pelo Congresso
Nacional, venha complementá-las e, não as substituir.
E, aduz o Ministro Marco Aurélio que a
jurisprudência do STF considera legítima e válida a complementação ocorrente no
âmbito regional, da legislação editada pela União, com o fito de ampliar a
proteção do consumidor (a quem se reconhecer presumidamente a vulnerabilidade),
e preservar assim o fornecimento de serviço público.
Novamente, para o referido relator
quando for atendida a razoabilidade, e, considerando-se a gravidade da crise
sanitária, é constitucional a legislação estadual que proíba o corte de
fornecimento de energia elétrica residencial, mesmo no caso de inadimplência, e
ainda que determine o parcelamento do débito.
A propósito, a matéria decidida não é
nova, pois o Plenário do STF já proclamou como legítima a complementação legislativa
em âmbito regional, basta reler os Precedentes das ações diretas de
inconstitucionalidade 5.745, relator do acórdão foi o Ministro Luiz Edson
Fachin, publicado no Diário da Justiça Eletrônico em 16.09.2019 e, ainda, a
ADIn 5.940, relator do acórdão, Min. Fachin[3] publicado no Diário de
Justiça em 03.02.2020.
Cumpre assinalar que restaram vencidos o
Ministro Dias Toffoli e, ainda, o atual Presidente do STF, o Ministro Luiz Fux.
E, de acordo com a divergência, o texto constitucional vigente reservou à
União, em caráter privativo, a competência para legislar sobre energia.
Portanto, admitir a atuação legislativa dos Estados sobre a matéria, ainda que
em função da crise sanitária, apesar de ser louvável, é permitir que interfiram
em contratos não firmados por estes.
O Ministro Alexandre de Moraes seguiu o relator com ressalva de entendimento quanto à possibilidade de a AGU se pronunciar contrariamente à constitucionalidade de normas questionadas em sede de controle concentrado[4]. Acompanharam o relator e a ressalva de Moraes os ministros Nunes Marques, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski. (ADIn 6588).[5]
A partir desta decisão da Suprema Corte
ofereceu-se maior tranquilidade jurídica aos consumidores amazonenses[6], garantindo o fornecimento
contínuo de água e luz para as unidades consumidoras inadimplentes e, que estão
enfrentando uma crise econômica sem precedentes, pois muitos, perderam a única
fonte de renda e não possuem a menor condição de pagar as contas, daí,
ressalta-se a importância da lei amazonense.
A presente decisão do STF, no meu
modesto entendimento, vem na esteira do mesmo entendimento expresso pelo
Plenário do STF, por unanimidade, que confirmou o entendimento de que as
medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória 926/2020 para o enfrentamento
da atual pandemia não afastam a competência concorrente nem a tomada de
providências normativas e administrativas pelos Estados, pelo Distrito Federal
e pelos municípios. E, a decisão fora tomada em 15 de abril de 2020, em sessão
realizada por videoconferência, no referendo da medida cautelar deferida em
março pelo Ministro Marco Aurélio na ADIn 6341.
Ratificou-se, portanto, a necessidade de se preservar o patrimônio mínimo para a preservação da dignidade humana, valor de especial importância para o direito brasileiro, notadamente, a ordem constitucional vigente[7].
Há ainda outras três Ações Diretas de
Inconstitucionalidades (ADIn) ajuizadas contra as leis estaduais editadas para
regulamentar situações relacionadas à pandemia.
Como a ADIn 6493, de relatoria do
Ministro Gilmar Mendes, onde se questiona a Lei 11.716/2020 do Estado da
Paraíba, que proíbe que as operadoras de planos de saúde no estado se recusem a
prestar serviços a pessoas suspeitas ou contaminadas pela Covid-19 em razão de
prazo de carência contratual.
A ação é da União Nacional das
Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas), que representa as operadoras de
planos de saúde do Brasil. O relator já apresentou voto no sentido de declarar
a inconstitucionalidade da lei, com o fundamento de que a matéria é de
competência privativa da União e está disciplinada por lei federal.
Na ADI 6432, de relatoria da ministra
Cármen Lúcia, ajuizada pela Associação Brasileira de Distribuidores de Energia
Elétrica (Abradee), o objeto é a Lei
1.389/2020 do Estado de Roraima, que proíbe o corte de energia elétrica em
residências por inadimplência enquanto perdurar o estado de emergência no
estado.
Em seu voto, já lançado no sistema, a
relatora julga improcedente a ação, declarando as normas constitucionais. Para
a Ministra Cármen Lúcia, os dispositivos tratam de relação de consumo, matéria
de competência concorrente da União, dos estados e do Distrito Federal.
Também deverá ser analisado, na sessão virtual, o agravo regimental na ADI 6526, ajuizada pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape) contra os artigos 7º e 8º da Lei Complementar 173/2020, que instituiu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus[8]. Os dispositivos alteraram a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) para estabelecer limites de gastos das unidades da federação com pessoal.
O ministro Alexandre de Moraes, relator
do processo, extinguiu a ação por falta de legitimidade ativa da Anape, por
entender que a norma não tem relação direta com interesses típicos da classe
profissional representada. Contra essa decisão, a associação interpôs o agravo
regimental. O relator apresentou voto pelo desprovimento do recurso.
Enfim, mais uma vez a Suprema Corte brasileira atua como guardiã da Constituição Federal de 1988, onde o princípio da preservação da dignidade humana se apresenta como principal vetor hermenêutica da ordem jurídica pátria, especialmente, nas relações jurídicas privadas.
Referências
CAVALCANTE, Márcio André Lopes
Cavalcante. VADE MECUM DE JURISPRUDÊNCIA. Dizer o Direito. 8ª edição. Salvador:
Editora JusPODIVM, 2020.
DOS SANTOS, Eduardo; E TRESSA, Simone
Valadão Costa. A Teoria do Patrimônio Mínimo e o Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana. Disponível em: https://www.passeidireto.com/arquivo/91082661/a-teoria-do-patrimonio-minimo-e-o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana-eduard Acesso em 06.6.2021.
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico
do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO,
Rodolfo. Manual de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2017.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito
Civil Brasileiro. Volume 1. Parte Geral. 10ª edição. São Paulo: Editora
Saraiva, 2012.
QUARESMA, Heloisa Helena. Estatuto
Jurídico do Patrimônio Mínimo, 2010. Disponível em: https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=3451.
Acesso em 20.05.2021.
SCHREIBER, Anderson. Manual de
Direito Civil Contemporâneo. 3ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
_________________, TARTUCE, Flávio;
SIMÃO, José Fernando; DE MELO, Marco Aurélio Bezerra; DELGADO, Mário Luis. Código
Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense,
2021.
TARTUCE, Flavio. Manual de Direito
Civil: volume único. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO,
2017.
SALOMÃO, Luis Felipe; TARTUCE, Flávio. Direito
Civil Diálogos entre a Doutrina e a Jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2010.
Notas:
[1]
A energia elétrica tem a natureza jurídica de um bem imaterial de caráter
difuso de uso comum do povo. Mesmo a energia elétrica gerada por meio de outros
bens ambientais como madeira, gás, etc., também tem a mesma natureza jurídica
pelos mesmos motivos. Por conseguinte, quando o Código Penal Brasileiro
equipara a energia elétrica a coisa móvel, e quando o Código Tributário
Nacional igualmente a considera como produto industrializado, na realidade
estão fazendo uma comutação redutora, pois simplificam o tema ao encarar a
eletricidade como simples coisa, quando, na verdade, ela antes se acomoda no
quadro de uma relação jurídica
[2]
Com essa medida, o governo pode aumentar gastos, liberando recursos, parcelando
dívidas, atrasando a execução de gastos e até autorizando saque antecipado do
FGTS para a população. O executivo fica
liberado de atingir a meta fiscal prevista para o ano, como prevê a lei de
responsabilidade fiscal, em vigor desde o ano 2000. O estado de calamidade
pública é diferente de uma situação de emergência, que seria declarada em casos
menos graves. Qual a diferença entre o estado de calamidade pública e Situação
de Emergência? A principal diferença entre as duas situações é a intensidade,
ou seja, o grau de gravidade da situação. O estado de emergência é uma situação
anormal, provocada por desastre, como enchentes, por exemplo; os danos são
menos graves, e mais simples de serem resolvidos. Já o estado de calamidade, é mais sério e
compromete bastante a capacidade de resposta do ente, seja ele estadual ou
Municipal, que o decretou. Por fim, o estado de calamidade pública decretado
por vários estados, entre eles o nosso, e municípios, não deve gerar alarme,
pois nada mais é que uma forma de destinar recursos diferentes, para combater
de uma maneira mais rápida e eficiente a situação que nos encontramos.
[3]
Desenvolveu com ciosa competência, o Ministro do STF e Professor Dr. Luiz Edson
Fachin, a teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, que procura
garantir um mínimo de patrimônio com base no ordenamento jurídico, isto é, deve
a pessoa humana ter o mínimo existencial como forma de garantir-lhe a
dignidade. Ressalve-se que tal teoria não visa atacar a propriedade privada nem
o direito creditício, mas afastar o caráter eminentemente patrimonial das
relações jurídicas privadas. O intuito é remodelar estes institutos e
adequá-las às novas premissas do Direito Civil, determinando que eles não se
sobreponham à dignidade do indivíduo. os conceitos e julgados do STF, é
possível concluir que, a Teoria do Patrimônio Mínimo é de extrema relevância
para a garantia de direitos essenciais, emanando da Constituição Federal e
ampliando seus reflexos no ordenamento jurídico positivado, sendo fundamental a
atenção e cuidado com a manutenção desses direitos, sempre com o objetivo
constitucional de garantir os Direitos Fundamentais do cidadão.
[4] Para Alexandre de Moraes, “controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a Constituição, verificando seus requisitos formais e materiais.”. Em suma, no controle concentrado, não há que se observar qualquer interesse subjetivo, haja vista não haver partes envolvidas no processo, nem tampouco um caso concreto onde o controle se faria de modo incidental. Neste sentido, ao contrário do controle difuso, o controle concentrado abstrato possui natureza objetiva.
[5]
Como se sabe, o direito brasileiro consagra, como regra, a teoria da nulidade
do ato inconstitucional. Contudo, a doutrina constitucional majoritária, a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e, tempos depois, a legislação
passaram a reconhecer a necessidade de se modular os efeitos temporais da
decisão que declara a inconstitucionalidade de atos normativos, relativizando a
teoria da nulidade em nome de outros valores constitucionais, como boa-fé,
segurança jurídica e interesse social. Ao lado dessas duas teorias, há outras
ideias também associadas, como as de inconstitucionalidade e
constitucionalidade supervenientes. No primeiro caso, o fenômeno se apresenta
quando um ato normativo originariamente compatível com Constituição se torna
com ela incompatível após a ordem constitucional sofrer alguma alteração, seja
por emenda seja por mutação constitucional. Entretanto, de longa data, o STF
entende que essa situação não é de inconstitucionalidade, mas de revogação. A
segunda ideia reflete uma possibilidade oposta. Uma lei antes inconstitucional
pode vir a se tornar compatível com a constituição após esta ser alterada. Trata-se da chamada constitucionalização
superveniente, fenômeno que o STF não reconhece.
[6]
A secretária-executiva da Comissão Econômica para América
Latina e Caribe (Cepal), Alicia Bárcena, disse que as mulheres e os novos
pobres serão os mais prejudicados pelos efeitos econômicos e sociais da
pandemia do novo coronavírus.
[7]
O longo lockdown acompanhado de sanções penais imposto na Itália
provavelmente viola disposições constitucionais daquele país. A decretação de
regulamentos de emergência pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, sem consulta
ao Parlamento nacional, também representa uma possível violação às leis
constitucionais de Israel. Na Rússia, o governo aumentou o uso da tecnologia
para a vigilância da população e foram aprovadas normas severas contra notícias
falsas sobre o vírus, que podem representar um aumento da perseguição aos meios
independentes de comunicação e, assim, uma violação à liberdade de imprensa. Na
Hungria, a concessão de poderes quase ilimitados ao Presidente Viktor Orbán
talvez seja, até o momento, o exemplar mais significativo desse conjunto de
decisões provavelmente inconstitucionais tomadas mundo afora como medidas de
enfrentamento da pandemia.
[8]
LEI COMPLEMENTAR Nº 173, DE 27 DE MAIO DE 2020 Estabelece o Programa Federativo
de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), altera a Lei
Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, e dá outras providências. Disponível
em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-complementar-n-173-de-27-de-maio-de-2020-258915168i
Acesso em 6.6.2021. De acordo com o texto da lei,
a União entregará, na forma de auxílio financeiro, aos estados, ao Distrito
Federal e aos municípios, em quatro parcelas mensais e iguais, R$ 60 bilhões
para serem aplicados em ações de enfrentamento à Covid-19 e na mitigação de
seus efeitos financeiros. Desse valor, R$ 10 bilhões são exclusivamente para
ações de saúde e assistência social. O projeto ainda suspende as dívidas
de estados e municípios com a União, inclusive os débitos previdenciários
parcelados pelas prefeituras que venceriam este ano.