Cidadania na encruzilhada

A encruzilhada traduz que o cidadão se torna cada vez mais um consumidor, distanciado das preocupações coma política e com os problemas coletivos. Lembremos que a construção da cidadania se refere intimamente com a relação de pessoas com o Estado e, com a nação. Afinal, as pessoas se tornam cidadãs à medida que passam a se sentir parte de uma nação e de um Estado. Evidenciou-se essa encruzilhada da cidadania no Brasil pós-pandêmico[1] (Covid-19), e percorrendo um ciclo exaustivo vastas parcelas do povo voltaram a viver em condição subalterna de cidadania.

Fonte: Gisele Leite

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Com grande esforço para haver reconstrução da democracia no Brasil, é notável a semântica que ganhou a palavra "cidadania". Essa palavra caiu nas graças e na boca do poco. E, substituiu o povo na retórica contemporânea. Como disse nosso saudoso historiador imortal José Murilo de Carvalho: Cidadania virou gente e, nossa Constituição Federal de 1988 galgou a alcunha de Constituição Cidadã. É certo que vige certa ingenuidade nesse afã. Sonhava-se que a redemocratização se traduziria rapidamente em felicidade nacional. Afinal, o direito do voto jamais fora tão disseminado e, as coisas caminharam...

De fato, cidadania em nosso país é algo bem complexo e, no campo da previdência social, a situação se agrava. Houve uma elevação de aposentadoria dos trabalhadores rurais com o piso de um salário-mínimo. E, a introdução de renda mensal vitalícia para idosos e deficientes, mas sua implementação tem sido muito restrita. E, o crucial problema reside nos benefícios previdenciários, particularmente, quanto aos valores das aposentadorias.

Em 2002, o Brasil era o oitavo país do mundo em termos PIB (produto interno bruto).  Brasil ocupou a quarta posição num ranking de 48 países que já divulgaram o crescimento de suas economias nos três primeiros de 2023. O crescimento brasileiro ficou acima da média do grupo de nações que integram o ranking, cujo crescimento foi de 0,2%. O levantamento foi feito pela agência de classificação de risco Austin Rating em 2023.

Informou José Murilo de Carvalho, in litteris:

      "A desigualdade é sobretudo de natureza regional e racial.  Em 1997, a taxa de analfabetismo no Sudeste era de 8,6%; no Nordeste, de 29,40/0. O analfabetismo funcional no Sudeste era de 24,5%; no Nordeste era de 50%, e no Nordeste rural, de 72%; a mortalidade infantil era de 25% no Sudeste em 1997, de 59% no Nordeste, e assim por diante. O mesmo se dá em relação à cor. O analfabetismo em 1997 era de 9,0% entre os brancos e de 22% entre negros e pardos; os brancos tinham 6,3 anos de escolaridade; os negros e pardos, 4,3; entre os brancos, 33,6% ganhavam até um salário mínimo; entre os negros, 58% estavam nessa situação, e 61,5 % entre os pardos; a renda média dos brancos era de 4,9 salários mínimos; a dos negros, 2,4, e a dos pardos, 2,2. Esses exemplos poderiam ser multiplicados sem dificuldade.  A escandalosa desigualdade que concentra nas mãos de poucos a riqueza nacional tem como consequência níveis dolorosos de pobreza e miséria. Tomando-se a renda de 70 dólares - que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera ser o mínimo necessário para a sobrevivência - como a linha divisória da pobreza, o Brasil tinha, em 1997, 54% de pobres. A porcentagem correspondia a 85 milhões de pessoas, numa população total de 160 milhões. No Nordeste, a porcentagem subia para 80%. A persistência da desigualdade é apenas em parte explicada pelo baixo crescimento econômico do país nos últimos vinte anos."

Sofremos por ter direitos civis retardatários e, que foram estabelecidos antes do regime militar e depois recuperados depois de 1985. Entre esses cumpre destacar a liberdade de expressão, de imprensa e de organização. E, a Constituição Cidadã inovou criando ainda o habeas data, em face do qual qualquer pessoa pode exigir do governo acesso às informações existentes sobre esta nos registros públicos, ainda as de caráter confidencial.

Também criou o mandado de injunção, que permite recorrer à justiça para exigir cumprimento de dispositivos constitucionais que ainda não foram regulamentados.

Igualmente definiu o racismo como crime inafiançável e imprescritível e tortura como crime não anistiável além de inafiançável. E, seguindo a senda regulamento a Defesa do Consumidor em 1990, com CDC (Código de Defesa e Proteção do Consumidor) e, em 1996 criou o Programa Nacional De Direitos Humanos, que prevê várias medidas práticas destinadas a proteger tais direitos. E, também se deu a criação dos Juizados Especiais Cíveis que originariamente se chamou de Juizados de Pequenas Causas (Cíveis e Criminais).

Os direitos integrantes da cidadania no país, são ainda os civis que apresentam as maiores deficiências não só em conhecimento, como em extensão e garantias. Enfim, a precariedade do conhecimento dos direitos civis, e, dos políticos e sociais ficou demonstrada por várias pesquisas. A falta de garantia dos direitos civis pode ser mensurada por pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

E, em 1988, cerca de 4,7 milhões de pessoas de dezoito anos ou mais envolveram-se em conflitos, e, apenas 62% dessas recorreram à justiça para dirimi-los. A maioria preferiu nada fazer. A falta de garantia dos direitos civis se verifica sobretudo no que se refere à segurança individual, à integridade física, ao acesso à justiça. O rápido crescimento das cidades transformou o Brasil em país predominantemente urbano em poucos anos.

Em 1960, a população rural ainda superava a urbana. Em 2000, 81% da população já era urbana. Junto com a urbanização, surgiram as grandes metrópoles. Nelas, a combinação de desemprego, trabalho informal e tráfico de drogas criou um campo fértil para a proliferação da violência, sobretudo na forma de homicídios dolosos.

 Os índices de homicídio têm crescido sistematicamente. Na América Latina, o Brasil só perde para a Colômbia, país em guerra civil. Vige pequena parcela da população brasileira que realmente conta com a proteção da lei mesmo nos maiores centros urbanos.

Do ponto de vista da garantia dos direitos civis, os cidadãos brasileiros podem ser divididos em classes. Há os de primeira classe, os privilegiados, os "doutores”, que estão acima da lei, que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e do prestígio social. Os "doutores" são invariavelmente brancos, ricos, bem vestidos, com formação universitária.

São empresários, banqueiros, grandes proprietários rurais e urbanos, políticos, profissionais liberais, altos funcionários. Frequentemente, mantêm vínculos importantes nos negócios, no governo, no próprio Judiciário. Esses vínculos permitem que a lei só funcione em seu benefício. Em um cálculo aproximado, poderiam ser considerados "doutores" os 8% das famílias que, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1996, recebiam mais de vinte salários-mínimos.

Enfim, para estes, as leis ou não existem ou podem ser dobradas. E, para essa elite privilegiada, existe uma grande massa composta de cidadãos simples de segunda classe, que estão submetidos aos rigores da lei. Frequentemente, ficam à mercê a repressão de polícia e de outros agentes da lei que definem na prática que direitos serão ou não respeitados. Os cidadãos simples poderiam ser localizados nos sessenta e três por cento das famílias que recebem entre dois a vinte salários-mínimos.

Enfim, como nos ensinou o historiador imortal José Murilo de Carvalho, só temos uma cidadania na encruzilhada, existem inegáveis progressos, mas foram lentos e não escondem o longo e extenso caminho a ser trilhado. A história confirma que não há um só caminho para cidadania e, sim, percursos distintos como foram os casos no Reino Unido, em França e Alemanha.

Em nossa engatinhante democracia evidencia-se a valorização do Executivo ao lado da desvalorização do Legislativo. O desprestígio generalizado dos políticos perante a população é mais acentuado quando se trata de vereadores, deputados e senadores. Além da cultura política estatista, ou governista, a inversão favoreceu também uma visão corporativista dos interesses coletivos. Não se pode dizer que a culpa foi toda do Estado Novo.

A governabilidade brasileira contemporânea fica à mercê de negociações feudais que lotearam o governo, em cargos e interesses a fim de garantir maioria no Congresso Nacional. Negocia-se o certo pelo incerto apoio devidamente financiado. Com isso os direitos sociais são precarizados e, reduzir o déficit fiscal é um desafio para a manutenção do Estado do Bem-Estar Social.

Novamente, nos ensina José Murilo de Carvalho, in verbis:

         "O pensamento liberal renovada volta a insistir na importância do mercado como mecanismo autorregulador da vida econômica e social e, como consequência, na redução do papel do Estado. Para esse pensamento, o intervencionismo estatal foi um parêntese infeliz na história iniciado em 1929, em decorrência da crise das bolsas, e terminado em 1989 após a queda do Muro de Berlim.

Nessa visão, o cidadão se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupações com a política e com os problemas coletivos. Os movimentos de minorias nos Estados Unidos contribuíram, por sua vez, para minar a identidade nacional ao colocarem ênfase em identidades culturais baseadas em gênero, etnia, opções sexuais etc. Assim como há enfraquecimento do poder do Estado, há fragmentação da identidade nacional".

A cidadania pretendida pelo Brasil é inspirada no Ocidente e, apesar de alguns êxitos, há um sentimento de perplexidade e frustração. E novos desafios questionam o tradicional papel do Estado bem como do neoliberalismo.

Para o aperfeiçoamento da cidadania brasileira precisamos de maior capacidade do sistema representativo de produzir resultados que acarretem a redução da desigualdade e o fim da divisão dos brasileiros em classes sociais apartadas pela educação, renda e cor.

Referências:

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

Nota:

[1] O Brasil pós-pandêmico é mais pobre do que o de 2015 (PIB per capta caiu 38% no período — de 12 mil para 7,5 mil dólares), menos educado (o país caiu do 4º para o 7º decil no ranking da educação da OCDE) e mais conectado (o acesso à internet pulou de 57% para 70% da população com mais de dez anos).


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Cidadania Pós-pandemia Direitos Civis Estado Neoliberalismo

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