“A Tempestade” de Shakespeare & o Direito

A Tempestade conta a história de um velho feiticeiro, ex-Duque de Milão exilado em uma ilha, juntamente com sua filha, que traz seus dois irmãos para a ilha por conta de uma tempestade elaborada exatamente para vingar e restaurar-se no poder. Analisamos o significado de golpe de Estado e seus reflexos jurídicos.

Fonte: Gisele Leite

Comentários: (0)




A virtude é superior à vingança. Eis, um trecho da peça “A tempestade”, de William Shakespeare. A arte é o maior recurso e a realização mais duradoura da humanidade, eis a indicação de uma das maiores historiadores Barbara Tuchman e, ainda, reconheceu que o bardo tinha grande domínio de linguagem bem como conhecimento da alma humana.

“The Tempest” é, possivelmente, a derradeira peça teatral escrita pelo autor. Segundo alguns, trata-se de um testamento[1] literário. Provavelmente, é a mais misteriosa de todas as grandes peça. Cogita sobre arte[2]? Autoridade? Colonialismo?  Conveniente citar Carlos Drummond de Andrade (In: O avesso das coisas: aforismos): "Todos têm interiormente uma ilha para refugiarem do próximo, mas nem todos sabem desfrutá-la. A ilha preserva a liberdade pelo isolamento, o que não é a solução.".

O enredo traz Próspero que era um sábio feiticeiro e sua filha Miranda que vivem numa ilha perdida. Tal ilha não recebera um nome, o que era exceção, pois em geral, o bardo indicava nominalmente os lugares. A ilha, enfim, é fruto da imaginação do autor.

Próspero confidencia à sua filha que no passado, era o Duque de Milão, porém, o título lhe fora usurpado por seu irmão Antônio, que o colocou juntamente com sua filha pequena no barco fadado a afundar.

Eles se salvam porque Gonçalo, um fidalgo encarregado de cumprir a cruel ordem apiedou-se de Próspero e da pequena Miranda. Gonçalo depositou, na embarcação, o mínimo suficiente para sobrevivência, o que incluía até livros.

A tempestade torna-se um centro prisional, local com elenco composto de detentos, concretizando uma vingança. Além de se libertar, ele conclui seu período de luto e, desse modo, liberta igualmente o espírito de Miranda. Tal como Félix e Próspero, todos temos as nossas ilhas, ou seja, um espaço onde projetamos nossos anseios e nossas angústias, a busca pelo autoconhecimento é o grande responsável pelo desencarceramento.

Durante a narrativa de Próspero à filha quando explicava como fora traído por seu irmão, com a ajuda do Rei de Nápoles. Próspero reconhece que a sabedoria tem maior importância do que o poder temporal.

Próspero, confessa, que dava maior valor aos livros de sua biblioteca do que o próprio ducado. Com seus sortilégios, cria uma tempestade, com o propósito de causar o naufrágio do navio que carregava o seu irmão traidor.

O navio passava pelas proximidades da ilha de Próspero. Na mesma embarcação estava o Rei de Nápoles, seu filho Ferdinando e Gonçalo (o mesmo bondoso nobre que havia possibilitado a sobrevivência de Próspero e Miranda).

Diante de tempestade, com o naufrágio, os tripulantes acabam de chegar à ilha de Próspero. Os náufragos se perdem, uns dos outros. O Rei de Nápoles crê que seu filho Ferdinando morreu no naufrágio. Porém, o príncipe está vivo e, chega sozinho, em um outro ponto da ilha, onde se encontrava Miranda, que até então, só havia um único homem na vida, seu pai. Quando avista Ferdinando, perde-se de amores.

De fato, Barbara Heliodora reitera que a peça é uma das romanescas do autor e foi pensada para espectadores de classes aristocráticas. Aliás, a hostilidade da Igreja em relação à atividade teatral e a perseguição das autoridades não era o único obstáculo enfrentado pelos profissionais do teatro naquele tempo e esse movimento contra o teatro não era exclusivo da igreja ou do governo.

Somado a isso, a peste bubônica, até então, endêmica, afetava em muito a vida teatral da cidade, pois durante os períodos de surto, os teatros eram obrigatoriamente fechados para que não houvesse aglomeração de pessoas. Em uma das epidemias entre 1592 a 1593, o que acarretou a interrupção das atividades teatrais.

Foi quando o autor se recusou a viajar em turnê pelo interior e, passou a dedicar-se à escrita de poemas. Escreveu dois longos poemas adequadamente elaborados sobre a mitologia clássica com pequenas inserções de erotismo e fizeram sucesso, e lhe valeram do Conde de Southhampton, a quem foram dedicados, bastante dinheiro para entrar de sócio da companhia teatral dos Lord Chamberlains's Men, com a qual passaria toda a sua vida profissional, a partir do momento da reabertura dos teatros.

Aos poucos, Shakespeare obteve posição respeitável na sociedade e manteve boas relações até com a Rainha Elizabeth I, encenando peças na corte e, eventualmente, em outros lugares sob o regime monárquico. Das peças encenadas figuram “Sonho de Uma Noite de Verão” e “A Tempestade” que foram revisadas especialmente para essas ocasiões.

Retomando para Heliodora, em “Falando de Shakespeare”, "Se o indivíduo fosse única e exclusivamente produto do meio, naturalmente a época elisabetana, por exemplo, teria fornecido à humanidade não um, mas dúzias de William Shakespeare”.

Em outras palavras, o gênio criativo do dramaturgo fez com que ele se sobressaísse em meio aos seus contemporâneos, sobretudo, ao apropriar-se de textos já existentes, tornando-os originalmente seus, e, por conseguintes, complexificando a tradição da adaptação.

Foram inúmeros os fatores que propiciaram um desenvolvimento frutífero da arte do dramaturgo e, apesar de suas obras serem consideradas universais - e muitos atribuem seu sucesso a esse fator, não se pode negar que Shakespeare é produto do seu tempo e do seu país.

Próspero mostra-se temeroso pelos sentimentos da sua filha por Ferdinando. Diante disso, pede que Ferdinando prove a sinceridade e a força de seu amor por Miranda, cumprindo tarefas tolas e humilhantes.

E, Ferdinando as executa, ciosamente, movido por sua paixão. Esse amante, segundo alguns estudiosos comprovam que a dedicação, transforma o trabalho em prazer. Afinal, tudo que se faz com amor ganha outra dimensão e alento.

Já Gonçalo comenta que seria a ilha se ele fosse rei. Não haveria comércio nem magistrado, letras, riqueza e pobreza. No ócio, o homem como mulher, mas puros e inocentes. Nada de soberania.

Enfim, nada de ordem, Estado de Direito[3]. Assim, o poder ilimitado seria entregue a todos. Seria possível? Sem contrato, sem propriedade, sem regras, nem juízes. Talvez a mensagem visasse o justo oposto.

Existe, realmente, um potencial trágico na relação existente entre o poder e a justiça. Deve-se entender a tragédia para além do gênero dramático-literário, trabalhando a tragédia como forma de pensar, sentir e representar a relação do homem com o mundo no qual está inserido.

O trágico, em verdade, é concepção antropológica e filosófica que pode ser expressa por meio de diversas formas artísticas, assim como pode ser percebido em outras esferas da existência humana. No trágico, é possível, inclusive,

encontrar um valor político e jurídico. Em Shakespeare, a justiça[4], seja a divina ou a dos homens, depende de uma relação de poder.

No caso da justiça divina, o que ocorre é uma adequação ou não aos desígnios do cosmos e a vontade de Deus. Já, no caso da justiça dos homens, a questão é outra: quem pode, legitimamente, executar a justiça? Só há justiça, se cogitarmos de relações de comando e obediência. Não pode haver poder legítimo onde não haja justiça, mas também, não há justiça sem a dimensão do poder.

O poder, sem justiça, é instrumento de arbitrariedades, desmandos e autoritarismo. E, a justiça sem poder, é vazia e inócua, não consegue concretizar os valores que deseja implementar.

O Professor e Doutor Tercio Sampaio Ferraz Jr., em livro de entrevistas com filósofos aduziu sobre a relação entre razão, comunicação e poder, in litteris:

          "Para mim, ao contrário, talvez a maior parte dos discursos humanos não seja racional. A racionalidade é apenas uma forma possível, entre outras de enfrentar a situação comunicativa, de enfrentar o jogo entre emissor e receptor, entre orador e ouvinte- um jogo que é, na verdade, um jogo de poder. Se existe aqui algum universal, seria essa relação de poder, que está longe de ser algo racional. Nesse jogo, o conceito não aponta para nenhum fechamento, e não existe um princípio de razão suficiente capaz de explicá-lo".

Para o bardo, o poder precisa ser justificado. Melhor, o poder tem algo a ver com a justiça. O campo de ação do poder é delimitado pelo justo. Em suas peças, a injustiça exercida por homens que detêm o poder nos agride e aponta para dimensão trágica em que a verdadeira ordem das coisas deve ser restabelecida, mesmo que isso signifique, coo sempre, aliás, o sacrifício do personagem trágico principal.

A filosofia do direito permeia toda a obra do bardo e, procura organizar e estabelecer as relações entre as discussões de caráter literário e as de caráter política. Analisando a dimensão trágica do poder e da justiça, enfocamos a arte como invenção de conceitos, e, desta forma, como entrada privilegiada para reflexão de caráter filosófico.

Quando Shakespeare morreu, um de seus contemporâneos, Ben Jonson, escreveu, um poema intitulado "To the Memory of my Beloved, the Author, Master William Shakespeare, and what he hath left us". Esse poema constava do prefácio do Primeiro Fólio das obras do bardo de 1623. No derradeiro verso, confessa: "Ele não era uma época, mas de todos os tempos.".

Em “A tempestade” constatamos a presença do prólogo, houve refinamento desse recurso ao longo da cronologia das obras, que desaparece, pelo contrário, perdura até a sua última peça. A tempestade relata a história e desventuras de Próspero, Duque de Milão, que era aficionado por seus livros e estudos de magia.

Seu irmão, Antonio, passa a auxiliá-lo em seus afazeres políticos, especialmente, os administrativos, ao perceber que o maior interesse do Duque não é governar. O que ele não previa era as intenções de sua irmão e, aproveitando-se da alienação do seu irmão ao governo, Antonio se une a inimigo político de Próspero, Alonso, o Rei de Nápoles, para arquitetar um golpe de Estado.

Um golpe de Estado é comumente definido como uma subversão da ordem institucional constituída de determinada nação. Essa subversão pode apresentar ou não características violentas. Como bem pontua a pesquisadora Mafalda Félix do Sacramento, em seu artigo “Os golpes de Estado[5] como principal meio de subversão”, em um golpe:

    […] não tem necessariamente de haver uma força de rebelião contra o governo. Acontece, por vezes, serem os próprios membros ou líderes do governo os que agem contra o sistema, de maneira a poderem aumentar o poder que têm sobre uma nação. A modo exemplificativo observamos o caso do Brasil no ano de 1937, com o governo de Getúlio Vargas, sendo que este declarou via rádio a implantação de um novo regime, ou até mesmo no caso do Peru, em 1992, onde o presidente Alberto Fujimori fez um golpe de Estado com o apoio das Forças Armadas, e dissolveu o Congresso; prendeu a maioria dos líderes partidários, censurou os meios de comunicações, e colocou o Exército nas principais ruas de Lima.”

Os exemplos citados por Sacramento, devemos assinalar que, no caso brasileiro, o próprio Getúlio Vargas, que também era civil, antes do golpe do Estado Novo, de 1937, e esteve à frente da Revolução de 1930, que foi um golpe contra a República Oligárquica com ajuda militar.

A Proclamação da República, em 1889, também foi um golpe contra o Império. Todos esses casos são exemplos de subversão da ordem institucional constituída, isto é, da estrutura de poder ordenada e garantida por leis e pela Carta Constitucional.

A expressão “golpe de Estado”[6] foi elaborada por um teórico político francês do século XVII chamado Gabriel Naudé. Em seu livro “Considérations politiques sur les coups-d'état” (Considerações políticas sobre os golpes de Estado), publicado em 1639, Naudé dá para golpe de Estado (coup d'État, em francês) a seguinte definição:

    […] ações audazes e extraordinárias que os príncipes se veem obrigados a executar no acontecimento de empreitadas difíceis, beirando o desespero, contra o

direito comum, e sem guardar qualquer ordem ou forma de justiça, colocando em risco o interesse de particulares pelo bem geral.

Alonso invade Milão, com a ajuda de Antonio e, o golpe se materialização, fazendo com que o Duque fosse deposto de seu cargo. E, assim Próspero e sua filha são colocados à deriva pelos golpistas num barco precário, com pouca comida, água e algumas roupas e alguns de seus livros mais estimados, que Gonçalo, o conselheiro de Alonso, fez questão de enviar.

Diferentemente do que se esperava, o barco não afunda e o ex-Duque e sua filha encontraram firme terra, numa ilha. Kott apresenta a defesa a existência de dois prólogos na peça. Nessa cena, Alonso, o rei, Antônio, irmão de Próspero, Sebastian, irmão de Alonso, Gonçalo, conselheiro do rei, Ferdinando, filho do rei Alonso, outros nobres e os membros de uma tripulação estão a bordo de uma nau em alto-mar enfrentando uma tempestade.

Essa tempestade é resultante da magia de Próspero, com auxílio do seu espírito Ariel; a tormenta foi provocada para atrair seus antigos inimigos àquela ilha doze anos depois do fatídico dia em que foi banido do seu ducado. Ponderando a cena e o conceito do termo, acreditamos que, de fato, ela constitua o prólogo da peça, ainda que não seja nomeada enquanto tal.

Próspero conta a Miranda os motivos que os levaram até aquela ilha, como em um monólogo. O ex-duque considera o momento da tormenta propício para explicar à sua filha o que os levara àquela ilha. Ao se justificar, ele transfere a responsabilidade de ter provocado uma tempestade à Miranda.

Conhecemos ainda as histórias de Ariel e Calibã. O primeiro, é o espírito que auxilia Próspero em sua magia e que é invisível a todos, exceto ao seu amo. O segundo, sofrera um golpe tal qual Próspero: Calibã era o rei da ilha até a chegada do mago, que toma o seu posto e o transforma em seu escravo. A história de

Calibã, nesse sentido, parece ser um reflexo da de Próspero, fruto dos muitos espelhos que Shakespeare insere no drama, considerando que ambos foram banidos dos seus reinos por outrem. Por fim, temos notícia da chegada do primeiro náufrago à ilha,

Ferdinando, e sabemos que os demais foram meticulosamente divididos em grupos para que não se encontrassem até o momento planejado por Próspero.

Retomando a fábula, observamos que os náufragos chegam à ilha em diferentes grupos: Ferdinando, sozinho, é o primeiro; depois temos Alonso, Antônio, Sebastian, Gonçalo e outros nobres no segundo grupo; já o terceiro é composto por Trínculo, um cômico, e Stephano, um criado bêbado. Próspero optou por dividi-los dessa maneira, pois tinha planos diferentes para cada grupo e eles não poderiam se encontrar para que esses objetivos se concretizassem.

Isso confere também o tom e o ritmo das cenas, considerando que elas são alternadas cada vez coma participação de um dos grupos. Próspero separa Ferdinando e Alonso para que ambos acreditem que o outro faleceu durante a tormenta. Ao chegar à ilha, Ferdinando ouve uma canção proferida por Ariel.

No decorrer da peça, notamos que Próspero faz Miranda e Ferdinando acreditarem que ele não faz gosto da união do casal – o que, na verdade, é um suposto incentivo, segundo o mago, para que a sua filha e o filho do rei de Nápoles lutem por esse amor.

No mesmo ato, na cena seguinte, Alonso, assim como Ferdinando, acredita veementemente que seu filho amado esteja morto após a chegada à ilha.  Estão reunidos nesse momento Alonso, Sebastian, Antônio, Gonçalo, Adrian, Francisco e outros nobres. O rei lamenta a perda do filho e seu irmão, com frieza, o culpa por esse acontecimento.

Em certo ponto da conversa entre os homens, todos adormecem, exceto Antônio e Sebastian, graças à magia de Ariel. Antônio, desse modo, tenta persuadir Sebastian a fazer com Alonso como fizera com Próspero: destronar o irmão para, então, tornar-se o novo rei[7].

Constatamos aqui mais uma manifestação da frivolidade de Antônio, que não demonstra arrependimento pelo ato cometido no passado contra o irmão e vai além, incentivando Sebastian a tomar a mesma atitude.

Sebastian, outrossim, age com frivolidade ao culpar o irmão pela perda do filho e ao aceitar as sugestões de Antônio para destruir e destronar Alonso. Há, nessa cena, um outro espelhamento no drama: tal qual Antônio conspirou contra seu irmão, Sebastian, com auxílio de Antônio, conspira contra Alonso.

Cabe destacar que Calibã[8] encontra Stephano e Trínculo pela primeira vez. Calibã fica obcecado pelo vinho oferecido por Stephano e, no furor do momento, faz uma proposta aos náufragos: se eles o ajudarem a derrubar Próspero, Calibã promete servir a Stephano como seu novo amo e mostrar-lhe as belezas da ilha. A conspiração se repete mais uma vez, nota-se a presença de espelhos.

Os temas da conspiração e do golpe de Estado são espelhados e refletidos diversas vezes, primeiramente, quando Antonio se junta a Alonso para destronar Próspero do ducado de Milão; segundo momento, em que Antonio sugere que Sebastian cometa um fratricídio para que herde o reino do seu irmão, e, por derradeiro, quando Calibã se junta a Stephano e Trínculo na tentativa de destruir Próspero e fazer com que Stephano se torne o novo reino.

Assim, a desventura de Próspero se repete, Calibã é destronado de um reinado que no passado lhe pertencera, tornando-se escravo de Próspero, o novo rei daquela ilha. A coerção também pode ser notada na trama de Ariel.

O espírito tinha sido aprisionado por Sycorax, antiga moradora da ilha e mãe de Calibã e, foi libertado por Próspero, que, por sua vez, o submete a um novo encarceramento, Ariel deve cumprir as ordens de Próspero até a final concretização de seus planos para que possa obter a sua liberdade.

Além das analogias e do espelhamentos, o bardo faz uso extensivo do recurso da peça dentro da peça, é uma espécie de mise en abyme. Não acreditamos que o recurso em questão seja uma substituição nos prólogos do dramaturgo, em alguns casos, esses dispositivos se confundem e, por outro lado, muitas vezes, ambos os dispositivos coexistem harmonicamente nas peças.

Ferdinando ao empunhar sua espada para enfrentar Próspero para ficar com sua admirada Miranda, é imobilizado por encantamento proferido pelo mago. Ariel faz com que outras personagens adormeçam a pedido de Próspero, já em outras, ordena que despertem a fim de que o curso dos planos do seu amo não seja comprometido, a exemplo em que Ariel faz com que Alonso e Gonçalo desadormeçam para impedir que o Rei de Nápoles seja morto por Sebastian e Antonio durante seu cochilo.

Por vezes, Próspero parece exercer funções de dramaturgo na peça, na medida em que ele mesmo redige a trama a partir de suas magias.

E, assim, escreve o destino dos grupos de náufragos e de todos os acontecimentos na ilha: os momentos nos quais personagens adormecem, despertam, ficam paralisados sob efeito de um encanto e, até mesmo, elogia a fala e ações de uma personagem, quando tudo acontece conforme planejado.

Nesse sentido, o drama representado na ilha seria como um ensaio ou encenação, e Próspero desempenharia algumas das funções do dramaturgo segundo Pavis, no verbete em atenção, ao intervir, elogiando os atores ou despedindo-se deles, por exemplo, lançando mão de sua magia, mudando o curso dos eventos ao seu alvedrio.

As analogias são múltiplas, no decorrer do drama, e não se limitam aos golpes de Estado e às coerções.

Miranda e Ferdinando vivem alheios aos acontecimentos da ilha de Próspero, e após o noivado da filha, Próspero reúne Alonso, Gonçalo, Sebastian, Antonio, Adrian e Francisco sob o encantamento de um círculo para a concretização final de seus projetos. Próspero demonstra desejo de justiça e perdão que parecem superar o sentimento de vingança.

Enfim, Próspero perdoa a todos que confabularam contra ele, Alonso que até demonstra arrependimento, Sebastian, Antonio, Gonçalo e outros homens. O mago os faz acreditar que perdera sua filha, assim como induziu Alonso a crer que perdera seu filho, Ferdinando.

No calor da discussão, o Rei de Nápoles, promete que, se os jovens estivessem vivos, herdariam o seu reinado. Próspero, então, revela que o casal está em outro plano, a jogar uma partida de xadrez, convencendo Alonso que fizera reviver Miranda e Ferdinando através de sua magia.

Há um sentimento de libertação na cena final da peça, conforme demonstra Gonçalo, sintetizando a essência desse encontro final na ilha. As personagens, em certa medida, são libertadas das prisões, e a ambição, coerção, violência e o poder.

Se não são todos que se libertam, não sabemos ao certo se Sebastian se arrepende ou não de tudo, ao menos todos os que são libertados pelo perdão de Próspero, voltam a se apropriar das mesmas posições que ocupavam no início do drama.

Notamos, um movimento de recuo para que se retorne ao prólogo, e a peça concretiza um movimento cíclico, e Shakespeare indica a noção de há um lugar pré-determinado para tudo e todos e de que esse lugar obedece a uma ordem dita natural.

A peça apresenta diferentes desfechos, e o desenlace da fábula principal, acontece em tom conciliatório na ilha, quando Próspero, perdoa a todos.

Referências

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999.

CAVALEIRI FILHO, Sergio. Direito, Justiça e Sociedade. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista18/revista18_58.pdf Acesso em 01.12.2021.

CASTRO, Alex. A tempestade, de Shakespeare. Disponível em: https://alexcastro.com.br/tempestade-shakespeare/ Acesso em 01.12.2021.

DE ANDRADE, Carlos Drummond. O avesso das Coisas. São Paulo: Editora Record, 2007.

FERNANDES, Cláudio. "O que é golpe de Estado?"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-e-golpe-estado.htm . Acesso em 01 de dezembro de 2021.

FERREIRA, Lorena Ribeiro. A Tempestade: de Shakespeare a Atwood. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/35381/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20A%20tempestade%20de%20Shakespeare%20a%20Atwood-%20Lorena%20Ribeiro.pdf .  Acesso em 01.12.2021.

KOTT, Jan. Shakespeare Nosso Contemporâneo. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: uma seleção. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradutor Maria Lúcia Pereira, J. Guinsburg, Rachel A. de B. Fuser, Eudinyr Fraga e Nanci Fernandes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008.

POSNER, Richard. A Law and Literature. Cambridge: Havard University Press, 1988.

ROSS, Alf. Direito e Justiça. São Paulo: Edipro, 2000.

SHAKESPEARE, W. A Tempestade. Tradução de Rafael Raffaelli. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/187470/A%20tempestade%20e-book.pdf?sequence=1&isAllowed=y   Acesso em 01.12.2021.

SHAKESPEARE, W. La Nuit des Rois: (Twelfth Night). Introdução, Tradução, Notas de Félix Carrère e Camille Chemin. Paris: Aubier-Montaigne, 1980.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Estado de Direito. Enciclopédia Jurídica da PUCSP. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/78/edicao-1/estado-de-direito Acesso em 01.12.2021.

Notas:


[1] O derradeiro testamento de William Shakespeare foi assinado em 25 de março de 1616, pouco menos de um mês antes de sua morte. A passagem mais conhecida é o legado à esposa de sua "segunda melhor cama". O conteúdo do testamento também foi estudado em busca de pistas sobre as crenças religiosas do autor, sua saúde e seu relacionamento com seus colegas no mundo do teatro de Londres.

[2]  A arte tem muito a revelar sobre o Direito, em razão de sua complexa compreensão do mundo. Ariano Suassuna, com sua rica e imensa capacidade literária enriqueceu a literatura e o teatro brasileiro ao apresentar obras como A Pena e a Lei e Auto da Compadecida.

[3] O conceito de Estado de Direito é relacionado ao poder do Estado. É quando esse poder, em relação às decisões que podem ser tomadas pelos governantes, é limitado pelo conjunto das leis, pelo direito. No Estado de direito uma decisão não pode ser contrária à legislação, ou seja, a lei não pode ser violada. A ideia de Estado de Direito, que tem origem na Idade Média, como forma de contenção do poder absoluto, ressurgiu nas últimas décadas como um ideal extremamente poderoso para todos aqueles que lutam contra o autoritarismo e o totalitarismo, transformando-se num dos principais pilares do regime democrático. Para os defensores de direitos humanos, o Estado de Direito é visto como uma ferramenta indispensável para evitar a discriminação e o uso arbitrário da força. Ao mesmo tempo, a ideia de Estado de Direito, ao ser renovada por libertários como Hayek em meados do século XX, passou a receber forte apoio das agências financeiras internacionais e instituições de auxílio ao desenvolvimento jurídico, como um pré-requisito essencial para o estabelecimento de economias de mercado eficientes. Do outro lado do espectro político, até mesmo os marxistas, que viam antigamente o Estado de Direito como um mero instrumento superestrutural, voltado à manutenção do poder das elites, começaram a vê-lo como um “bem humano incondicional”. Seria difícil encontrar qualquer outro ideal político louvado por públicos tão diversos. Porém, a questão é: estamos todos defendendo a mesma ideia? Obviamente não. Cada concepção de Estado de Direito, bem como as características que lhes são atribuídas refletem distintas concepções políticas ou econômicas que se busca avançar. No século XIX, o conceito clássico de Estado de Direito foi submetido a reavaliação e, pensadores como Max Weber, alertaram-nos sobre o processo de desformalização do Direito como consequência de transformações da esfera pública. Os trabalhos de Weber foram caracterizados por tensa luta política e intelectual sobre a capacidade de Rechtsstaat de se adequar aos novos desafios contemporâneos apresentados por socialdemocratas e representados por Franz Neumann. In: VIEIRA, Oscar Vilhena. Estado de Direito. Enciclopédia Jurídica da PUCSP. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/78/edicao-1/estado-de-direito  Acesso em 01.12.2021.

[4] Justiça é o poder de fazer valer o direito de alguém ou de cada um. Justiça também é o conjunto de órgãos que compõem o Poder Judiciário de um país.  Dentro deste Poder são encontradas cada uma das jurisdições encarregadas de distribuir a justiça. Na história do pensamento jurídico foram sustentadas várias teorias da Justiça.  Essas teorias distinguem-se com base na resposta que deram à pergunta:  qual é o fim último do Direito? As várias respostas a esta pergunta podem ser divididas em três grupos: 1) A Justiça é ordem. Esta teoria surge do fato de se considerar como fim último do Direito a paz social. Ela sustenta que os homens criaram o ordenamento jurídico para saírem do estado de anarquia e de guerra, no qual viveram no estado de natureza. O Direito natural fundamental que esta teoria deseja salvaguardar é o direito à vida. O Direito como ordem é o meio que os homens, no decorrer da civilização, encontraram para garantir a segurança da vida. Um exemplo desta concepção encontra-se na filosofia política de Hobbes. (BOBBIO, 2000, p. 116). 2) A Justiça é igualdade. Segundo esta concepção, que é a mais antiga e tradicional (deriva de Aristóteles na sua formulação mais clara), o fim do Direito é o de garantir a igualdade, seja nas relações entre os indivíduos (o que geralmente é chamado de justiça comutativa), seja nas relações entre o Estado e os indivíduos (o que é chamado, tradicionalmente, justiça distributiva). O Direito é aqui o remédio primeiro para as disparidades entre os homens, que podem derivar tanto das desigualdades naturais como das desigualdades sociais. Segundo esta teoria, não é suficiente que o Direito imponha uma ordem qualquer: é preciso que a ordem seja justa e por "justa" entende-se, de fato, fundada no respeito à igualdade. Se imaginarmos a Justiça tendo a espada e a balança, a teoria do Direito como ordem visa ressaltar a espada, e a do Direito com igualdade, a balança. O Direito natural fundamental que está na base desta concepção é o direito à igualdade. (BOBBIO, 2000, p. 117). 3) A Justiça é liberdade. Com base nesta concepção, o fim último do Direito é a liberdade (e entenda-se a liberdade externa). A razão última pela qual os homens se reuniram em sociedade e constituíram o Estado é a de garantir a expressão máxima da própria personalidade, que não seria possível se um conjunto de normas coercitivas não tutelasse, para cada um, uma esfera de liberdade, impedindo a violação por parte dos outros. O ordenamento jurídico justo é somente aquele que consegue fazer com que todos os membros consorciados possam usufruir de uma esfera de liberdade tal que lhes seja consentido desenvolver a própria personalidade segundo o talento peculiar de cada um, na mais ampla liberdade compatível com a existência da própria associação. Portanto, seria justo somente aquele ordenamento baseado na liberdade. Um exemplo de posicionamento desta concepção, no entender de Norberto Bobbio, é o pensamento jurídico de Emanuel Kant que visou teorizar a justiça como liberdade. (BOBBIO, 2000, p. 117-8).

[5] LEITE, Gisele. Nove golpes da história do Brasil: nada se cria, tudo se copia. Desde sua independência em 1822, o país galgou nove golpes de Estado. Mas, há quem argumente que foram dez, por conta do último com relação a Presidente Dilma. (In: Disponível em:https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/nove-golpes-da-historia-do-brasil-nada-se-cria-tudo-se-copia Acesso em 01.12.2021.).

[6] Os golpes de Estado mais famosos da história foram: Assassinato de Júlio César no Senado, ocorreu na República Romana, em 15 de março de 44 antes de Cristo; a Revolução Gloriosa que ocorreu em 1688, quando o parlamento inglês, bem como o povo, era de maioria calvinista, e estava insatisfeito com o rumo que o reino tomava, pois o monarca absolutista tomava medidas alinhadas ao catolicismo, sua religião; Dezoito de Brumário que deu início ao governo napoleônico, em 9 de novembro de 1799, quando Napoleão Bonaparte fechou a Assembleia do Diretório, por meio do exército que detinha, e inauguro o Consulado, no qual exerceu o cargo de Primeiro Cônsul; A queda do governo do Havaí, em 1893 quando a rainha foi derrotada por empresários descendentes de norte-americanos, que desejavam a anexação do território aos EUA, de modo que os impostos cobrados pelo reino na produção açucareira, em que eles investiam, não era um atrativo;  A marcha sobre Roma em 1922 determinou a ascensão do fascismo que ocorreu em 28 de outubro de 1922, que influenciou a queda da monarquia e, acarretou a nomeação de Benito Mussolini para ser Primeiro Ministro Italiano. Cera de 40 mil fascistas compareceram a marcha e, muitos estavam armados; Revolução de 1930 quando Getúlio Vargas, através de movimento armado e liderado pelos Estados de MG, ES e PB depôs o Presidente Washington Luís, e impediu a posse do Presidente eleito Júlio Prestes, e terminou a chamada República Velha (ou café-com-leite); Espanha, 1936 quando a direita articulou um golpe, o qual inicialmente não fora bem-sucedido. Mas, ocorreu polarização no país e, os defensores da república e os opositores dela, fenômeno que gerou uma guerra civil até 1939.  Quando o ditador Franco com apoio de exército nazistas e fascistas tomou o controle de todo país, somente em 1975, com a morte do Generalíssimo Franco é que se encerrou a fase ditatorial; o Golpe Militar de 1964 que ocorreu em primeiro de abril do referido ano, e instaurou uma ditadura militar que perdurou até 1985 e teve apoio de vários setores sociais como a burguesia paulista, a classe média urbana, os conservadores, a Igreja Católica e latifundiários; Ruanda, 1973, em 5 de julho, o chefe do Exército de Ruanda tomou o poder do país através de golpe militar, motivado pelo conflito entre as etnias hutu e tutsi. Depois, ocorreu uma guerra civil que desencadeou a morte do Chefe do Estado e, culminou em genocídio ruandês; Chile, 1973, 11 de setembro houve a derrubada do governo democraticamente eleito de Salvador Allende, financiada pelo governo norte-americano, pela CIA e organizações terroristas fascistas chilenas. E, Augusto Pinochet proclamou-se como presidente e resultou numa ditadura que só foi encerrada em 1989; Revolução Iraniana de caráter conservador ocorreu em 1979, quando fundamentalistas religiosos, com apoio de comunistas, quem perseguiram após tomada de poder, derrubaram a monarquia do Xá Mohammed Reza Pahlevi; Egito em 2013. O presidente Mohammed Morsi fora deposto pelos militares egípcios em 3 de julho de 2013. Desde 2012, grandes protestos tomaram as ruas das maiores cidades do país, nas quais se opõe ao então Chefe de Estado.

[7] Para apresentar um ponto de vista diferente do comum e encarnar essa carga do ―espírito cômico, Shakespeare recorre ao personagem do Bobo. Ele ensina de modo humorístico, as virtudes da tolerância e a alegria de amar seu próximo. O espírito cômico demonstra ainda, pelo exemplo do bufão, que a vida exige uma continua atenção, um estado de alerta, de excitação. [...] Ele nos ensina, enfim, que a vida não pode incluir de sabedoria apenas a medida onde o ser humano torna- se uma simples testemunha deste teatro que é o mundo, mas se mistura, como um ator, a seu movimento, recebendo, com vigilância, a variedade infinita e sobretudo o espírito cômico que constitui a principal atração do espetáculo (CARRÈRE e CHEMIN, in: Shakespeare, 1980:62).


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Golpe de Estado Perdão Traição Tragédia Testamento Literário

Deixe o seu comentário. Participe!

colunas/gisele-leite/a-tempestade-de-shakespeare-o-direito

0 Comentários

Conheça os produtos da Jurid