Entre a cultura e a crueldade
Por Paulo Schwartzman.
Olá leitores, tudo bem? Tomei
conhecimento por uma cara amiga de uma situação que vale a discussão nessa
coluna durante a semana passada e agora trago a vocês para reflexão e
ponderação. Quais os limites para o “entretenimento” humano?
Todos sabemos da importância
da diversão para a humanidade, sendo mesmo o lazer um direito social de segunda
dimensão (para usar a clássica divisão feita por Karel Vasak). Inclusive, o
direito ao lazer foi previsto na Constituição de nossa República em seu texto
originário (art. 6º, “caput”, da CR). Nota-se, também, que o lazer ganha mais
respaldo normativo ainda quando aliado à culturalidade, esta que veio
resguardada pelo art. 215 e seguintes da Constituição.
Estabelecida essa premissa, a
de que o lazer é direito fundamental do ser humano, e a de que o lazer
qualificado pela culturalidade tem ainda mais força, fazemos uma indagação: há
limites para isso? E mais, se há um limite, qual seria este?
Moralmente falando acredito
ser óbvia a reposta. Com efeito, é insustentável dizer que o lazer não obedece
a parâmetros mínimos de julgamento moral, de modo a ser facilmente limitado
quando ultrapassa os limites da moral.
E juridicamente? Pois bem caro
leitor, juridicamente falando é pacífico que não há direito absoluto em nosso
ordenamento, nem mesmo a vida (ex: legítima defesa, aborto legal) ou a
propriedade (ex: usucapião, função social). Logo, o lazer não poderia “passar
por cima” de outros direitos constitucionais. Ou será que conseguiria?
A resposta aqui é negativa, no
entanto não é tão simples. Explico.
Os direitos constitucionais
devem ser harmonizados e concertados (com “c” mesmo, pois aqui é como se eles
formassem um arranjo) de forma a soar bem. Assim como em uma apresentação de
uma orquestra não se pode ter instrumentos que tocam em dissonância, no
ordenamento devemos buscar manter a coesão normativa de modo a um direito não
aniquilar outro.
Um dos direitos que limita as
manifestações culturais de lazer é o direito dos animais, que no Brasil ainda integra
o direito ao meio ambiente equilibrado (art. 225 da Constituição). Digo “ainda”
uma vez que já existem ordenamentos que preveem certa autonomia do Direito
Animal.
Inclusive, dentro do Brasil,
cito a normativa do Estado de Santa Catarina (Lei 17.485/18, que pode ser
acessada aqui[1]) que
já reconheceu (pelo menos!) os cães, gatos e cavalos como sujeitos de direito.
Foi um avanço protetivo, porém aplicável somente às espécies acima, e somente
em território catarinense. E mesmo esse avanço é passível de críticas técnicas,
uma vez que a competência para legislar sobre capacidade civil é da União, e
não dos Estados.
Independentemente do quanto
colocado, a questão é que a relação entre o bem-estar animal e o direito ao
lazer emanado das manifestações culturais já é batalha antiga no Direito
Brasileiro. Não caberia a esta brevíssima coluna detalhar todas as nuances que
podem ser percebidas nesse quesito, por essa razão me limitarei a informar que,
após um longo período de prevalência do bem-estar animal, formou-se um cenário
caótico no sentido de que, após a Emenda Constitucional 96/2017 (uma clara
reação à jurisprudência [preponderantemente formada com a ADI 5.728/DF] que
tinha se formado no STF de que a vaquejada seria inconstitucional por maus
tratos aos animais) por força da Constituição não será a prática envolvendo
animais considerada maus tratos se ela for uma manifestação cultural e
regulamentada por lei específica que trate do bem-estar animal.
Afora evidente possibilidade
de a própria emenda ser inconstitucional por tender a abolir o direito dos
animais, uma vez que este último é cláusula pétrea do ordenamento, vamos tentar
analisar sob a perspectiva da constitucionalidade (ainda que ficta) dessa
emenda. Passamos a fazê-lo agora.
Certo, temos aqui quase que a
renovação da história de caráter eminentemente anedótico do Prefeito Minervo
Pimentel, que queria revogar a “Lei da Gravidade”, uma vez que esta estava a impedir
a construção de uma caixa d’água no lugar de seu interesse, mas encontrou
dificuldade, pois não sabia se a lei era de esfera municipal, estadual ou
federal. Inclusive, para ver essa inusitada notícia, aperte aqui[2].
O que eu quero dizer é, não
basta a Constituição falar que não há crueldade, precisamos que de fato ela não
esteja presente. Com efeito, fosse o contrário a fome estaria extinta com mera
emenda constitucional que abolisse a fome.
Todo esse introito para
analisarmos a situação dos rodeios da cidade de Caçapava. Ora, recentemente a
cidade mencionada teve aprovada sua Lei de nº 5.969/22, a qual eleva os rodeios
ao status de manifestação cultural e prega que os animais devem ser bem
tratados, para conferir a íntegra da lei, veja aqui[3].
Alguns pontos que rodeiam a questão
são dignos de nota. Senão vejamos.
Primeiro, que o rodeio em si,
à semelhança da vaquejada, produz intenso sofrimento animal. Nesse sentido, a ativista
da causa animal Mariana Bedesco Zampieri cita diversos estudos feitos que
indicam lesões ligamentares, ósseas e musculares; formação de úlceras
gástricas; problemas cardíacos; aumento do risco de hemorragia pulmonar e
intensa sensação de dor, uma vez que a depender da força uma puxada forte no
freio ou bridão pode gerar um impacto de 300 kg/cm² na boca do equino.
Ou seja, se vemos pelo lado da
crueldade, temos que reconhecer que ela está presente, uma vez que após as
informações acima beira o impossível não se condoer com a situação a que os
cavalos são submetidos. Nesse sentido, claro é que a mera existência dos
rodeios implica maus tratos.
De outra banda, o que temos é
uma manifestação cultural que está sim arraigada nos gostos e na cultura local,
gerando inclusive empregos e tributos que podem ser revertidos em favor da
população. Tanto o é que a lei foi aprovada com celeridade na Câmara Municipal,
o que elevou os rodeios ao patamar formal de “cultura local”.
Algumas questões tomam forma:
dá pra sopesar cultura e crueldade? A que custo as tradições devem ser
mantidas? Não seria agora a hora perfeita para revermos a ideia de rodeio em si
e toda a crueldade que sua existência envolve? Qual o preço da crueldade?
Se o engenho humano conseguiu
levar o ser humano à Lua, com toda a certeza será possível encontrar uma
maneira de por fim ao sofrimento animal. Basta querer.
Notas:
[1]
Conteúdo disponível em: <http://leis.alesc.sc.gov.br/html/2018/17485_2018_Lei.html>.
Acessado realizado em: 02/08/2022.
[2]
Conteúdo disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_08&pagfis=21053&url=http://memoria.bn.br/docreader#>.
Acesso realizado em: 03/08/2022.
[3]
Conteúdo disponível em: <https://ecrie.com.br/sistema/conteudos/arquivo/a_25_0_1_02082022083908.pdf>.
Acesso realizado em: 03/08/2022.