Contra só se for do contra
Por Paulo Schwartzman.
Olá leitores, tudo bem? Na coluna dessa semana vamos abordar um tema que, a despeito de muito antigo, incrivelmente ainda não está sedimentado na cabeça de alguns, espero que poucos, operadores do Direito, qual seja, o vocábulo utilizado para introduzir a pessoa do réu em uma ação.
Para aqueles que não estão familiarizados com a ciência processual a locução escorreita pela melhor doutrina (Chiovenda, Liebman e Dinamarco, para citar apenas alguns) é “em face de”. Logo, dizemos que uma ação é proposta “em face de” Fulano, e não “contra” Fulano, assim como leigamente vezeiro.
Certo, mas qual o sentido disso? E qual o problema em usar a expressão contrária?
Explico.
Como já deveria ser do conhecimento de todo bom operador do Direito, o direito de ação é exercido “contra” o Estado, não o réu. Nesse sentido, acaso um desavisado, por exemplo, propusesse uma demanda “contra” uma parte nada mais ele estaria fazendo que atestar sua falta de conhecimento processual, pois a ação é direito cujo titular passivo é o Estado, não a parte contrária (perdão pelo trocadilho).
Ah, mas e o fato de que os interesses são contrapostos? Isso não poderia justificar o “contra”? Não. A própria ideia de lide como pretensão qualificada por ter sido deduzida em juízo e resistida já dá conta da contraposição. O uso de “contra” é, pois, um erro, uma vez que atrelado fatalmente a uma má compreensão de um termo técnico.
Nesse mesmo sentido, inclusive, as justificativas baseadas no sentido meramente vernacular, do dicionário. Ora, nem vou gastar muita linha com isso, uma vez que é de fácil compreensão que num processo as palavras têm sentido técnico. O contrário seria como sustentar o uso da palavra “contestar” no lugar de “recorrer”, uma possibilidade para o leigo, mas uma aberração para o jurista.
Logo, a ação é proposta contra o Estado com relação a alguém, ou como ficou mais popular em terrae brasilis, “em face de alguém”. Para expressar esse ponto, o brilhante doutrinador Dinamarco pontifica: “Por isso é lícito dizer que a demanda é proposta com relação a alguém, ou, conforme locução italiana muito usual e bastante expressiva, em face do demandado (nei suoi confronti)” (2014, p. 52).
No mesmo livro ainda é destacado que a titularidade passiva do direito de ação é obviamente do Estado (idem ibidem, mesmo autor, mesma obra), sendo mesmo um erro crasso, pelo menos em minha opinião como estudioso do processo, um professor ensinar a seus alunos tal aberração jurídica após anos de avanço da ciência processual. Entendemos que efetivamente tal pode ser feito por aqueles que não são vezeiros na ciência processual, mas para estes vale o ditado popular comumente atribuído a Abraham Lincoln: “É melhor calar-se e deixar que as pessoas pensem que você é um idiota do que falar e acabar com a dúvida.”
No mais, a depender da complacência (no caso daqueles que sabem a origem da cisão entre os vocábulos) ou incompetência (no caso daqueles que vão na onda de achar que as palavras não possuem um sentido técnico) do doutrinador, é possível que este até permita o uso do “contra”, isso porque o uso da palavra está profundamente arraigado na cultura jurídica pátria. Dinamarco, nessa linha do hábito do uso da palavra contra, não considera o erro como grosseiro por si só, pois não indicaria cabalmente que o interlocutor tem ciência de adotar os conceitos superados (idem ibidem).
Fora isso, defesa doutrinária do uso do “contra” é literalmente fazer-se de contrário por birra. Uma verdadeira afronta a todos os avanços da ciência processual, e um retorno nefasto a tempos em que o direito de ação era visto como igual, ou pelo menos imanente, ao direito material.
Por fim, quando olhamos para Código de Processo Civil, vemos que ele, como bela colcha de retalhos que é, por vezes usa a expressão “em face de” (ex: arts. 343, §5º; 381, §4º; 513, §5º, 557; e 700, §6º, do CPC), e por outras usa o errôneo “contra” (ex: arts. 144, IX, 343, §3º, 486, 3º, do CPC) que, ao que tudo indica, parece ter sido colocado na lei muito mais em seu sentido leigo que técnico (vide no caso do art. 343).
Dito isso, narro que tive o desprazer de presenciar uma professora sustentando exatamente o contrário nessa semana, em pleno setembro de 2022, e, não fosse o bastante, em vez de reprimida pelo erro grosseiro, a manifestação foi apoiada por outra professora nessa mesma aula. Ora, isso é um retrocesso palpável para o status que o processo civil alcançou no Brasil. Agora, e mais do que nunca, é importante que firmemos a ciência processual em bases sólidas, até porque se deixarmos que forasteiros da técnica processual deturpem o uso correto de vocábulos eminentemente técnicos, não saberemos qual vai ser a próxima obscenidade que será ensinada e, pior, aplaudida.