O Supremo e a guerra fiscal

Proposta de Súmula Vinculante 69 extrapola jurisprudência vigente  

Fonte: Jota.info

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Súmulas vinculantes correspondem a enunciados que devem refletir o entendimento do Supremo Tribunal Federal, consolidado depois de reiteradas decisões, acerca da validade, da aplicação, da interpretação e da eficácia de normas jurídicas. Não podem, assim, ser aprovadas enquanto existirem questões essenciais pendentes, que demonstrem que a controvérsia acerca da interpretação da norma ainda não foi dirimida integralmente pelo mais alto colegiado do país.

Esse é justamente o caso da proposta de Súmula Vinculante nº 69 – PSV 69, a qual foi objeto de matéria deste respeitável veículo de imprensa em 2 de outubro de 2014. No texto publicado, foi divulgado que o Pleno do STF, em breve, deverá apreciar a referida proposição, a qual prevê que“qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, credito presumido, dispensa de pagamento ou outro beneficio fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional”.

Em que pese o respeito pela opinião do Ministro Gilmar Mendes, autor da proposta, não há dúvidas de que o referido enunciado não reúne os requisitos para ser aprovado pelo Plenário.

O primeiro óbice decorre da circunstância de ainda estar pendente de julgamento a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 198 – ADPF 198, na qual se discute justamente o tema que agora se pretende sumular de maneira vinculante por meio da PSV 69. Nessa arguição, em síntese, sustenta-se a não recepção dos artigos 2º, § 2º, e 4º, da Lei Complementar nº 24/1975, que exigem decisão unânime dos estados-membros e do DF para concessão de benefícios relacionados ao ICMS. Alega-se que a previsão da unanimidade de decisão viola os princípios democrático, federativo e da proporcionalidade. Apesar de o texto da súmula não dispor acerca do modo de aprovação de convênios no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ, é certo que ele termina por legitimar o atual procedimento que se encontra previsto na referida lei complementar, que pressupõe a unanimidade da deliberação, quórum não previsto no artigo 155, § 4º, XII, ‘g’, da CF/88, já que implicará a nulidade de todos os benefícios até o momento concedidos.

Vale notar que a Constituição não encampou a regra da unanimidade em qualquer dos seus dispositivos. Não há essa exigência para a aprovação de leis ou emendas. Nem no âmbito da Suprema Corte há necessidade de quórum unânime para a definição dos mais importantes temas constitucionais. Isso ocorreu por uma simples razão: a exigência da unanimidade impede a realização da plena democracia, pois apenas um único sujeito passa a impedir a mudança de vontade dos demais, contrariando a expressão da maioria, normalmente obtida após inúmeros debates e discussões sobre o tema. É o que se critica, por exemplo, no formato de decisões do Conselho de Segurança da ONU. A prevalecer tal requisito, subverte-se a ideia majoritária e se reconhece a constitucionalidade da ditadura da minoria, quando uma única vontade passa a ter a supremacia e o poder de decisão, de modo totalmente incompatível e inconciliável com o princípio democrático.

Aliás, na obra Constitutional Strategies, o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley, Robert Cooter, aponta as deficiências de um sistema baseado na regra da unanimidade:

“O poder de barganha depende das consequências da falha na negociação. Se uma negociação é frustrada, cada parte deve fazer o seu melhor sem a cooperação dos demais. As partes que se beneficiam menos da cooperação terão o maior poder de barganha.

Como uma parte pode ter êxito sem a cooperação das demais depende da regra da ação coletiva. Primeiramente, considere a regra da unanimidade. Negociações frustradas na regra da unanimidade paralisam as ações coletivas. Consequentemente, quando barganham sob a regra da unanimidade, as regiões e as coletividades com menor necessidade de cooperação podem demandar as melhores condições.[…] A força da negociação está nas mãos dos membros potenciais de uma coalizão majoritária. Quando se negocia sob uma regra de maioria, as regiões e as localidades dentro da coalizão interna podem demandar melhores condições de cooperação dos externos”.

Nessa linha, Cooter afirma que “um regime federal que logre ter êxito sob a regra da unanimidade deve possuir poucos membros, enquanto um exitoso regime federal que seja governado pela regra da maioria pode possuir vários membros”.

A lógica de Cooter é plenamente aplicável ao que vem ocorrendo no Brasil, na prática, no âmbito do CONFAZ. Os Estados mais desenvolvidos, portadores de melhor infraestrutura e do maior número de empresas e, portanto, naturalmente mais atrativos, sempre se insurgem contra os requerimentos de concessão de qualquer incentivo apresentado pelos Estados mais pobres.

A irracionalidade do sistema é tão grande que mesmo em casos em que a concessão do incentivo do ICMS não tem o condão de gerar guerra fiscal, ainda assim há Estados que se manifestam contrariamente, sem qualquer justificativa plausível. Isso ocorreu, por exemplo, em relação ao pleito do Distrito Federal de conceder a isenção do ICMS “nas operações internas que destinem óleo diesel a empresas de ônibus e micro-ônibus destinados ao transporte público coletivo urbano do Distrito Federal”. A despeito de o benefício ter por objeto evitar o aumento das tarifas cobradas pela prestação do serviço de transporte coletivo urbano, o CONFAZ rejeitou a celebração de um convênio que o contemplasse. Veja-se que, em virtude de expressa regra constitucional — alínea ‘b’ do inciso X do § 2º do art. 155 da Constituição Federal —, a totalidade do ICMS incidente sobre as operações de óleo diesel pertence integralmente ao Distrito Federal. Não há, dessa forma, qualquer prejuízo em relação ao princípio da não-cumulatividade na concessão da isenção. Além disso, cuida-se de hipótese em que se mostra impossível causar guerra fiscal, uma vez que se está diante de mercado de prestadores de serviço público regulado, qual seja, o de transporte coletivo urbano, sob o regime de concessão e permissão, puramente local. O fato de a isenção ser concedida não acarretará a migração de empresas de transporte coletivo de outros Estados para o Distrito Federal, porquanto se trata de um serviço regulado. Logo, a concessão desse tipo de benefício, ainda que em relação ao ICMS, não tem o condão de promover a guerra fiscal.

Neste caso, o Distrito Federal, mesmo diante da rejeição do convênio, editou a Lei Distrital nº 4.242/2008, a qual foi impugnada via ação direta julgada improcedente perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Cumpre ressaltar que contra essa decisão, o Ministério Público do DF interpôs o Recurso Extraordinário nº 634.427/DF, o qual não foi conhecido por decisão do Ministro Celso de Mello.

Outro exemplo de precedente em que se validou a concessão de benefício fiscal concedido sem a anuência do CONFAZ ocorreu no julgamento da ADI nº 3.421/PR. Na ocasião, o STF assentou a orientação de que não exige consenso a outorga de benefício a igrejas e templos de qualquer crença para excluir o ICMS nas contas de serviços públicos de água, luz, telefone e gás. O Ministro Marco Aurélio, autor do voto condutor, destacou que “a proibição de introduzir-se benefício fiscal sem o assentimento dos demais estados tem como móvel evitar competição entre as unidades da Federação e isso não ocorre na espécie”.

É certo, assim, que o texto proposto na PSV 69 atingirá até a concessão de incentivos do ICMS que não causam guerra fiscal. Daí a razão pela qual extrapola a jurisprudência do STF, sendo este o segundo óbice para a aprovação do verbete.

Diante desse quadro, a pergunta que carece de resposta é se o critério de unanimidade para aprovação de convênios pelo CONFAZ tem contribuído para atender ao objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais ou tem operado como mais um mecanismo de manutenção do status quo, no qual há profundas desigualdades regionais?

Não há dúvidas de que tal indagação deveria ser respondida pelo STF antes da aprovação do texto da PSV 69.

Por Flavio Jardim

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