Ministro Sálvio de Figueiredo homenageia Antonio Cançado Trindade

A questão foi abordada pelo ministro Sálvio de Figueiredo no discurso em homenagem ao professor Antônio Augusto Cançado Trindade, atualmente presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede na Costa Rica.

Fonte: Notícias do Superior Tribunal de Justiça

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"Será mesmo que existe justiça social quando países riquíssimos esbanjam dinheiro para subsidiar produtores ineficientes, alijando deste modo, dos seus e de outros mercados, produtores eficientes dos países menos ricos?" A questão foi abordada pelo ministro Sálvio de Figueiredo no discurso em homenagem ao professor Antônio Augusto Cançado Trindade, atualmente presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede na Costa Rica.


Trindade é autor da obra "O direito internacional em um mundo em transformação", escolhida pela Academia Brasileira de Letras Jurídicas para receber a medalha-mérito Pontes de Miranda. A honraria da ABLJ premia autores brasileiros de obras de real merecimento no critério de pureza de linguagem e capacidade de comunicação do direito.


Segundo o ministro Sálvio, o conceito de justiça social entre as nações, que moveu a organização das Nações Unidas e suas agências especializadas, bem como as relações bilaterais de alguns países ricos, foi se deteriorando progressivamente, até se tornar um "farrapo desbotado", no qual é difícil vislumbrar o desenho original. "O descaso com o meio ambiente é outro exemplo. O Direito Internacional contido nos tratados internacionais para a proteção do meio ambiente choca-se com a ignorância, o egoísmo, a cegueira intencional dos que trocam o dever de fazer algo em prol das gerações futuras pelos votos que esperam angariar nas próximas eleições", criticou o ministro.


Sálvio afirmou também que a obra de Trindade examina com maestria a questão do emprego da força a título de "guerra preventiva", com mortandade indiscriminada de civis e a destruição da infra-estrutura do país "suspeito". "Todo esse debate deve, em meu entender, ser redirecionado, de um pretenso dever de ingerência ao direito à assistência humanitária das populações afetadas", acredita o autor.


"Como encontrar uma solução para o fato de que os poucos que detêm armas de destruição em massa ? e se recusam a submeter-se a inspeções internacionais ? procuram impedir que outros façam, sem policiamento, pesquisas sobre o uso pacífico da energia nuclear", questionou. "Estamos voltando à época em que a força ditava o direito? Ou será que entramos numa era orwelliana, em que todos são iguais, só que alguns são mais iguais"?, preocupa-se.


Ao finalizar a homenagem a Trindade, o ministro ressaltou, no entanto, que a resposta às sérias inquietações que a conjuntura mundial suscita não pode ser de desânimo. "Deve-se ler ?O Direito internacional em um mundo em transformação? com o otimismo e sobretudo com a esperança de seu autor, ?sua incontornável necessidade do sonho?", observou o vice-presidente. "Porque, como disse a grande idealista que foi Eleanor Roosevelt, ?o futuro pertence àqueles que crêem na beleza de seus sonhos?", finalizou Sálvio de Figueiredo.


Rosângela Maria
(61) 319-6394


A seguir a íntegra do discurso do vice-presidente



O Imperador Justiniano I, "o Grande", deixou o legado de importantes conquistas militares à frente do Império Romano do Oriente e, paralelamente, patrocinou a compilação e a reorganização das leis romanas ao editar o Corpus Iuris Civile.
Todavia, a par dessas notáveis realizações, Justiniano desmereceu o epíteto de "o Grande", já que fechou a Academia de Atenas apenas dois anos depois do início de seu longo reinado, como uma das expressões de sua inflexível política religiosa. O Imperador atribuía aos filósofos atenienses a pecha do paganismo, sem aperceber-se da valia e da consistência do corpo de doutrina moral que ali se professava.


Quase dez séculos se passaram até o renascimento das Academias, já na Itália quatrocentista, primeiramente dedicadas ao helenismo e à filosofia e depois à filologia e à arqueologia, enlevadas pela efervescência e redescoberta da cultura clássica.


As novas Academias assumiram feição diversa daquelas socráticas e platônicas, passando a reunir pessoas com interesses comuns ? todas habilitadas a oferecer uma contribuição útil -, além de mestres e alunos em atividade de ensino.


Estavam lançadas, assim, as bases da Academia moderna, centros de intercâmbio de experiências e idéias sobre as preocupações e os anseios de todos os que não se contentam em ser levados pelos acontecimentos ou em apenas reagir ? e pensam, indo, a exemplo do homem renascentista, muito além de sua atividade específica.


Nesse contexto de produção e reexame do conhecimento, inquietação e enriquecimento intelectual, para benefício de seus membros e da sociedade, nasceu a Academia Brasileira de Letras Jurídicas, que, nas palavras do Grande Benemérito Reginaldo de Souza Aguiar, "não é apenas mais uma associação em que seus membros se reúnem para especulações sobre temas jurídicos. Ela é uma célula viva e atuante da sociedade..." , "refúgio para almas sensíveis", na expressão de José Renato Nalini, para quem as Academias "mesclam a rotina das incessantes requisições da vida contemporânea com a incontornável necessidade do sonho" .


Dentro dessa perspectiva é que se homenageia com a Medalha-Mérito Pontes de Miranda a Antônio Augusto Cançado Trindade por mais uma de suas excelentes obras, O Direito Internacional em um mundo em transformação.
Aliás, por um momento pus-me a pensar nas semelhanças entre o homenageado e Pontes de Miranda, a despeito das diferentes épocas de suas profícuas existências. Além de serem ambos participantes ativos em foros internacionais e autores de rica produção jurídica, unem-se pela magnitude da qualificação intelectual e pelo elevado quilate dessa produção, na qual não se sabe o que mais admirar, se o esmero dos conceitos, a densidade do pensamento ou a fluência das idéias expostas com raro brilho e desenvoltura.O livro agraciado situa-se nesse contexto, por sua alta qualidade, pelas idéias vigorosas e pelo estilo convincente e formoso de quem sabe escrever com arte e técnica primorosa, a prender a atenção do leitor, qualquer que seja ele, versado ou não em Direito.


II


O País, sem embargo de algumas ondas políticas aqui e ali, a exemplo das anunciadas invasões no campo e da violência urbana, vive momento de tranqüilidade democrática. O Judiciário, no entanto, passa por uma fase em que se discute a possibilidade de mudanças institucionais, notadamente em pontos essenciais à sua atuação e aprimoramento, como o seu anunciado controle e a criação da Escola Nacional da Magistratura.


O primeiro, o controle das atividades do Judiciário, vem despertando intranqüilidade, estando, pois, a merecer ponderações que ultrapassam a conjuntura para atingir a missão institucional desse Poder. É de relembrar-se que a conduta disciplinar e os procedimentos administrativos e financeiros praticados pelos juízes e auxiliares da Justiça encontram na Constituição e nas leis mecanismos importantes de fiscalização. As Corregedorias dos Tribunais, as Cortes de Contas federal e estaduais, a par da abrangente função institucional do Ministério Público e da Ordem dos Advogados, constituem instrumentos elevados de controle; além deles, o embate próprio dos autos de processo, no qual o contraditório e a ampla defesa permitem o acompanhamento diuturno das atividades de juízes, tribunais e serventuários.
Não se está a acobertar falhas, nem a ingenuamente defender a perfeição do sistema atual. Evidencia-se a necessidade de aperfeiçoamento. Todavia, a complexidade dos problemas não autoriza críticas levianas nem conclusões irrefletidas, muito menos se pode aquiescer com medidas conjunturais e pouco eficazes. As irregularidades que ultimamente vêm acometendo o Judiciário, como os casos de corrupção e venda espúria de decisões judiciais, não justificam, por si só, a substituição de um sistema por outro, nem estão a merecer providências açodadas.

Externo ou interno, por um único órgão ou por vários, por magistrados apenas ou também por membros de outras instituições do sistema judiciário, ou, até mesmo, por cidadãos estranhos a este, o controle ? antes de ser concretizado ? exige mais apurada reflexão. O que não se pode aceitar, definitivamente, é o desvio das discussões para a trilha do cerceamento da liberdade, não se pode descuidar da precípua missão do Judiciário, qual seja, a de julgar conforme as leis e com independência, longe da conveniência e dos juízos próprios da política partidária.


A conquista do Estado democrático de Direito ? paradigma hoje estampado na Constituição ? custou ao Brasil longos períodos de sombra e instabilidade. A plenitude da democracia, como já disseram os clássicos e continuam a dizê-lo os modernos, só se alcança com uma Justiça apta a alcançar a todos e a fazer de todos verdadeiros cidadãos. Guardião das liberdades e dos direitos fundamentais da pessoa humana, o Judiciário não pode sofrer influência política no mérito de seus julgamentos.


A questão do controle do Judiciário, infelizmente, politizou-se, e isso tem prejudicado uma abordagem serena. É verdade que a recente divulgação de condutas ilícitas de alguns magistrados contribuiu para o acirramento do debate. Seria mais do que razoável, todavia, aguardar-se o fim das investigações e eventuais julgamentos antes de extrair conclusões apressadas.


A denúncia de hoje não pode tornar-se, necessariamente, punição amanhã, sobretudo no Estado de Direito. Se pensarmos com desprendimento, chegaremos à conclusão de que o processo ordenado, conduzido dentro dos parâmetros legais, é uma garantia para os cidadãos. O linchamento pelos meios de comunicação pode aumentar a circulação dos jornais e os níveis de audiência televisiva, mas não significa a melhor concretização do justo. Sem o devido processo legal, há sempre o risco de prejulgamento, de condenação sumária, de temerário exercício punitivo.

Além do mais, o Judiciário já demonstrou amplamente não ceder ao corporativismo cego de que alguns o acusam, como atestam os vários processos contra juízes, desembargadores e Ministros em andamento nos foros competentes.
A Constituição diz que os três Poderes da União são independentes e harmônicos entre si. A matéria é de alta relevância e reconheço que nem mesmo existe unanimidade dentro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal ao qual pertenço. Artigo do Ministro Carlos Velloso publicado em 14 de fevereiro informou que, no Supremo, 7 Ministros rejeitam o controle externo, enquanto 4 o aceitam. No Superior Tribunal de Justiça, em reunião da Corte Especial realizada em 16 de fevereiro, 20 Ministros declararam-se contrários à idéia, 6 a favor e um contra qualquer tipo de controle, seja interno, seja externo.


Ressalte-se que nos países em que existe o Conselho da Magistratura, ele foi introduzido para reforçar os poderes do Judiciário, seja porque era dependente do Executivo, seja por qualquer outra deficiência estrutural inexistente no Brasil. Entre nós, o Poder Judiciário sempre exerceu sua independência em harmonia com as demais funções estatais e invocar um órgão de controle a cada vez que uma decisão desagrada um círculo de poder é comprometer o futuro da nossa recém-conquistada democracia.



III


Em relação à Escola Nacional da Magistratura, que todos queremos como ponto culminante de um sistema nacional de formação do juiz, para formular o novo modelo de julgador a que o País aspira ? trabalhador, sério e sensível à realidade social -, assim como seu continuado aperfeiçoamento profissional. É de lembrar-se que ela ainda teria por alvo servir de órgão de planejamento permanente, centro polarizador de experiências bem sucedidas e de idéias renovadoras e múltiplas, próprias de uma sociedade em evolução e plural, a exemplo do que ocorre em outros países, órgão hoje já defendido entre nós por autorizadas vozes de importantes setores da vida judiciária.


Sabemos do lamentável estado do conhecimento jurídico no Brasil. A profusão das verdadeiras fábricas de diplomas, abertas, como sabido, com o beneplácito dos órgãos responsáveis, resulta em serem lançados nas ruas, não raro, profissionais despreparados, às vezes inaptos a redigir na língua materna, e ? os fatos não mentem ? em grande proporção incapazes de passar no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Nosso eminente Presidente da Academia, no boletim de agosto de 2003, com sua reconhecida autoridade, já afirmava que "o Exame da OAB tem índices de reprovação à beira dos cinqüenta por cento dos bacharéis candidatos a advogado; e o ensino jurídico se degrada dia a dia, o que nenhum professor nega...".


Um levantamento divulgado pela Ordem dos Advogados no início deste ano é apavorante. Existem no Brasil 726 cursos de Direito, formando 70.000 bacharéis por ano! O número de faculdades aumentou em mais de quatro vezes num período de doze anos e apenas 28% dos cursos de Direito foram considerados de boa qualidade. São dados inquietantes para o futuro das profissões jurídicas no Brasil.


Dependem de análise nos órgãos competentes cerca de 450 pedidos de instalação de novas Faculdades de Direito. Esse elevado número de escolas não preocuparia, se apenas refletisse a intenção de cada brasileiro conhecer melhor os seus direitos e seus deveres. Lamentavelmente, no entanto, acena-se para a juventude com uma profissão, com uma carreira e essa promessa não é cumprida por aqueles que enxergam na atividade educacional das ciências jurídicas uma iniciativa empresarial como outra qualquer.


Na Introdução ao seu livro, o Professor Cançado Trindade fala do desinteresse pelo ensino do Direito Internacional, "que deixou de ser, a partir de meados dos anos setenta, matéria integrante do currículo mínimo obrigatório das Universidades públicas brasileiras" , e assinala que "em muitas Universidades nacionais continua sendo perfeitamente possível graduar-se em Direito sem jamais tê-la sequer cursado" . Às suas palavras ouso acrescentar que o descaso alcança o ensino de todo o Direito e não só do Direito Internacional.


A experiência profissional e a observação da realidade da Justiça brasileira nas últimas quatro décadas formaram-me a convicção, partilhada com o Professor Sidnei Beneti, respeitado Desembargador do Estado de São Paulo e uma das maiores autoridades brasileiras nos meios internacionais, de que a criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados permitirá aprimorar a qualidade dos juízes brasileiros, preparando-os para exercer plenamente suas funções.


Neste passo, a responsabilidade primeira pela adequada formação de juízes é do Poder Judiciário, ao qual a Constituição cometeu tarefas muito mais abrangentes do que a mera dicção da lei. Como acentua José Renato Nalini, uma das vozes mais respeitadas no tema, o juiz do futuro precisará ser polivalente. Será harmonizador da sociedade, solucionador dos conflitos, arquiteto de uma comunidade fundada na pacífica solução das controvérsias. Avançar, resgatar déficits passados e encarar o desafio de satisfazer as necessidades contemporâneas é responsabilidade social das lideranças do Judiciário brasileiro.

A importância da formação dos juízes sobressai no cenário que se vem traçando na sociedade atual. Os conflitos de interesses, que antes se projetavam no plano estritamente individual, tomam novas feições, multiplicam-se e tornam-se cada vez mais complexos. O mundo globalizado e as constantes inovações tecnológicas, aliadas à contínua ampliação do acesso à Justiça, fruto saudável da maturidade democrática, impõem ao Direito novas necessidades e crescentes responsabilidades. O juiz não pode mais aquietar-se passivamente ante a realidade, que está a exigir-lhe postura ativa e comprometida com o fortalecimento da cidadania.


As confluências dos direitos fundamentais, a exigir do Estado prestações materiais e positivas, os interesses difusos e coletivos, a dinâmica das relações de consumo, a disciplina das condutas praticadas em redes de computadores e na internet, as relações contratuais internacionais, entre vários outros temas de vanguarda e também polêmicos, começam a ser levados ao Judiciário, exigindo pronta solução. Bastaria lembrar a tutela do meio ambiente, que o constituinte confiou não só ao Poder Público, mas também à sociedade, para reconhecer as responsabilidades das atuais gerações em relação à sua descendência. Os direitos transgeracionais reclamam um novo juiz.


Para responder a essa demanda, torna-se imprescindível a formação inicial e continuada dos julgadores como parte de um planejamento permanente das atividades do Judiciário. Reporto-me às palavras de quase três décadas atrás, quando, ao apontar as qualidades do juiz ideal, disse aos recém-empossados na Magistratura mineira que ele haveria de ser

"honesto e independente;
humano e compreensivo;
firme e corajoso;
sereno e dinâmico;
culto e inteligente;
justo, sobretudo".

A conjugação dessas qualidades depende de condições físicas, mentais, humanas, vocacionais, morais e sociais. Depende também, e notadamente, de formação sólida e específica para o desempenho da função jurisdicional.


O desenho final da Escola da Magistratura deve contar com as experiências brasileiras, ainda que incipientes, e, sobretudo, com os modelos de formação de outros países, como França, Portugal, Espanha, Canadá, Itália, Alemanha, Holanda, Japão, de cujas realidades nos poderemos valer para construirmos uma Escola adequada às necessidades brasileiras.


Ela produzirá uma teoria sobre a Justiça humana, muito mais sensível às aspirações de uma cidadania imersa numa realidade complexa. Realidade paradoxal, pois de um lado estão o hedonismo, o consumismo, o egoísmo potencializado ao egoísmo desenfreado, mas, de outro, o clamor por uma convivência mais ética e mais fraterna. O juiz será o ponto de equilíbrio nesse caos valorativo, o propiciador do convívio fundado na dignidade humana e no respeito às diferenças.
Devemos dirigir nossos esforços a fim de encontrar a alternativa mais adequada de preparação, formação contínua e aperfeiçoadora da magistratura do século XXI, artífice da paz e da solidariedade, responsável pela edificação de um novo e mais consistente pacto de convivência entre as pessoas.


Senhores acadêmicos, se toquei nesses dois temas foi porque sei que este é um foro no qual eles têm repercussão e podem levar a uma troca de opiniões inteligente e frutífera.


Os juízes, inquietos na sua vocação de transformar o mundo, aguardam a contribuição da comunidade jurídica, da intelectualidade e da lucidez pátria, para desenvolver o ambicioso projeto de reinvenção da Justiça. Vamos, todos juntos, formulá-lo e realizá-lo.


IV


Os Judiciários de vários países já se deram conta de que a crescente internacionalização das relações de toda ordem está a exigir deles um esforço de aproximação, com vistas a melhor entendimento mútuo.


Essa universalização manifesta-se através dos indivíduos que saem de seus países em números cada vez maiores para trabalhar, estudar ou simplesmente morar em outro país. Com isso, aumenta a quantidade de casos em que Justiças de dois ou mais países são instadas a resolver conflitos de família e sucessão, entre outros da ordem do Direito Privado.
Manifesta-se também pela intensificação dos investimentos além-fronteiras nacionais, pelo crescimento do comércio internacional e pelos fluxos de capital, especulativo ou não, que se movimentam de país a país, em segundos e em montantes quase inimagináveis.

Noutro campo, a globalização se expressa na atuação do crime organizado e das organizações terroristas, auferindo lucros, planejando e executando ações criminosas e contribuindo para o aumento da circulação internacional de capital.
Essas recentes e significativas mudanças no mundo levaram o Superior Tribunal de Justiça a estreitar seus contatos com os Judiciários de outras nações, sobretudo as de línguas espanhola e portuguesa. O intercâmbio nos tem sido valioso do ponto de vista do conhecimento jurídico, mas igualmente importantes são os benefícios derivados dos contatos pessoais com os membros desses Judiciários.


Achei útil trazer ao conhecimento da Academia essa experiência do Superior Tribunal de Justiça, porque ela é recente e, a meu ver, promete grande expansão nos anos vindouros.



V


Com sua vênia, falarei agora do nosso homenageado, o Eminente Professor Cançado Trindade.


No início da minha carreira no magistério, tive o prazer e a honra de ser professor universitário de Antônio Augusto Cançado Trindade, nascido em Belo Horizonte, mas de espírito e projeção internacionais, jurista ilustre que vem colhendo merecidos louros desde a sua juventude.


Em 1977 ele já defendia, na dignamente vetusta Universidade de Cambridge, tese pela qual recebeu o Doutorado e o prestigioso Prêmio Yorke.


Desde 1999 preside a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da qual se tornou Juiz em 1995.
A lista das atividades e das honrarias recebidas pelo ainda jovem Cançado Trindade é longuíssima:
- Professor titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio-Branco, onde leciona desde 1978;
- Professor visitante em algumas das principais Universidades dos continentes europeu e americano e das mais conceituadas instituições acadêmicas no campo do Direito Internacional;
- Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores (1985-1990);
- Delegado do Brasil a conferências das Nações Unidas e outras de caráter internacional;
- Diretor-Executivo do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (1994-1996), cujo Conselho Diretor integra;
- Criador do programa de direitos humanos do Instituto Interamericano de Direitos Humanos em Havana;
- Membro do Conselho Diretor do Instituto Internacional de Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo, onde tem lecionado anualmente desde 1988;
- Doutor honoris causa por universidades do Chile e do Peru;
- Recipiente de honrarias de várias outras Universidades brasileiras e estrangeiras.

Enfim, para não me estender em demasia, mencionarei apenas mais uma das atividades do Professor Cançado Trindade: sua vasta obra literária no campo do Direito Internacional Público e do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Com 30 livros e cerca de 360 outros títulos ? entre monografias, artigos e contribuições a livros ? publicados em numerosos países, aproximadamente 200 pareceres na condição de Consultor Jurídico do Itamaraty e de inúmeros Votos como Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Antônio Augusto Cançado Trindade tem sido um trabalhador infatigável, dedicado à divulgação da doutrina e da jurisprudência atuais nos campos do Direito Internacional e dos Direitos Humanos, porque, conforme assinala na Introdução a O Direito Internacional em um mundo em transformação, "Os instrumentos jurídicos, tanto nacionais como internacionais, porquanto encerram valores, são produto de seu tempo. E se interpretam e se aplicam no tempo. Encontram-se, pois, em constante evolução."


O Professor Cançado Trindade é nome que enriquece as letras jurídicas no plano mundial. Já não se confina aos contrafortes deste seu país de nascimento e militância cultural. É justificadamente considerado não só um julgador de raras habilitações, mas também um especialista nas áreas em que atua com prioridade: o Direito Internacional e os Direitos Humanos, nos quais se mostra insuperável e tem obtido o reconhecimento mundial.


Presidente reconduzido por unanimidade da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede na Costa Rica, após ter sido Presidente do Instituto Interamericano dos Direitos Humanos, tem em seu currículo as mais elevadas condecorações, por sua atuação e pelas suas idéias.


O Professor Cançado Trindade tem dado aos juristas de todo o mundo a valiosíssima contribuição de seus ensinamentos fundados na intensa atuação e evolução que marcam sua vida profissional. Evolução que o homenageado fez questão de deixar clara em seu livro, pois, ao reunir escritos elaborados nos últimos 25 anos, preservou-os, como explica, "na medida do possível, tais como originalmente preparados e divulgados, sem maiores alterações ou atualizações." E pouco adiante acrescenta: "Desse modo, pude manter os 23 estudos virtualmente inalterados, revelando a evolução nas mais distintas áreas do Direito Internacional no período 1976-2001, e ao mesmo tempo assegurar a coesão do livro como um todo."

A propósito do prestígio internacional de Antônio Augusto Cançado Trindade, recordo-me de uma passagem ocorrida em Portugal, quando se comemoravam os 500 anos do descobrimento do Brasil. A Universidade de Coimbra, para realçar a data, comunicou-nos, através do Professor Gomes Canotilho, que outorgaria cinco títulos de Doutor honoris causa a professores brasileiros.


O ilustre jurista português consultou-me, como representante brasileiro, quanto a nomes a serem agraciados. Disse-me, então, S. Exa., no seu estilo sóbrio, ser admirador de Cançado Trindade, indagando-me da possibilidade de incluir seu nome entre os cinco que receberiam o título. Respondi-lhe que eu teria motivos até pessoais, na qualidade de seu mestre, para indicá-lo, mas que não o faria em face da preferência da Congregação da referida Universidade por Professores mais idosos; ora, o Professor Cançado Trindade não estava entre esses, sendo ainda muito jovem. Ao lamento do Professor Canotilho, lembrei-lhe a seguir que desse requisito o tempo se encarregaria.


O episódio, aliás, lembrou-me a pitoresca passagem envolvendo um Colega nosso desta Academia, Carlos Mário Velloso, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal e seu ex-Presidente, quando de sua nomeação para Juiz Federal. Surpreso com a juventude do candidato, o Presidente Castello Branco perguntou se não era ele muito jovem para o posto, quando ouviu de um dos presentes a observação de que desse requisito o tempo se encarregaria, o que o tranqüilizou.


Também o Professor Canotilho, rindo da graça do precedente brasileiro, se deu por satisfeito, acrescentando: "Então, vamos deixá-lo para uma próxima oportunidade."


VI


A extensão dos ramos do Direito Internacional versados por Cançado Trindade reflete a complexidade crescente das relações internacionais e, como conseqüência, a rápida evolução desse ramo do Direito. Fontes modernas do Direito Internacional, tratados internacionais e suas conseqüências para os Estados signatários, Direito do Mar, Direitos Humanos, emprego da força e proibição de seu uso no Direito Internacional, a responsabilidade dos Estados para com o meio ambiente, todas essas questões vêm tratadas com profundidade por alguém que as conhece em primeira mão.

E quanto há, para refletirmos, nas lições que nos oferece Cançado Trindade!


O que vemos no cenário mundial não é muito animador; pareceria, mesmo, que o progresso feito na maior parte da segunda metade do século XX está a perder-se, não obstante a multiplicação do número de conferências, tratados e declarações. Até a defesa dos direitos humanos, pelos quais o Presidente Carter, dos Estados Unidos, foi grande propugnador, está sendo invocada pelo seu país para justificar guerras e invasões.
Erodiu-se, quase totalmente, o conceito de não-ingerência nos assuntos internos de cada país. Novamente, a erosão começou com um propósito louvável, nos idos da década de 50 ? a questão do tratamento, sob o regime do apartheid da África do Sul, dos cidadãos de origem indiana ou paquistanesa ? e prosseguiu com a luta pelo respeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Como se vê, nem sempre é impróprio dizer que o caminho para o inferno é pavimentado de boas intenções: uma vez posto de lado, por razões tão nobres, o princípio da não-ingerência foi sendo enfraquecido, até chegarmos aos extremos de hoje, a que voltarei adiante.


O conceito de justiça social entre as nações, que nas décadas de 1950, 1960 e 1970 moveu a Organização das Nações Unidas e suas agências especializadas, bem como as relações bilaterais de alguns países ricos com os demais, foi-se esgarçando progressivamente, até não ser hoje mais que um farrapo tão desbotado que mal se pode nele vislumbrar o desenho original.


O conceito sobrevive nos países ricos, é verdade, mas pelo simples motivo de que, aplicando-se apenas aos cidadãos do país, é politicamente impossível eliminá-lo por completo sem perder a próxima eleição. No tocante, contudo, a justiça social para os demais países, hoje pareceria ingenuidade esperá-la.


Será mesmo que existe justiça social quando países riquíssimos esbanjam dinheiro para subsidiar produtores ineficientes, deste modo alijando, dos seus e de outros mercados, produtores eficientes dos países menos ricos?
O descaso com o meio ambiente é outro exemplo. O Direito Internacional contido nos tratados internacionais para a proteção do meio ambiente choca-se com a ignorância, o egoísmo, a cegueira intencional dos que trocam o dever de fazer algo em prol das gerações futuras pelos votos que esperam angariar para a próxima eleição. E as boas intenções defrontam-se, ainda, com a incúria, a inércia, o descaso demonstrado pelas autoridades competentes de muitos países, entre os quais, infelizmente, também se acha o Brasil.


Permitimos que, à míngua de recursos, os órgãos incumbidos de defender o meio ambiente mal possam realizar seu trabalho, e assim vamos degradando nossos rios, nossas terras, nossas florestas e o mar que beira nosso litoral.
Tema preocupante, que o Professor Cançado Trindade examina com maestria, é o do emprego da força a título de "guerra preventiva", com mortandade indiscriminada de civis e a destruição da infra-estrutura do país "suspeito". Em outras palavras, trata-se do "dever de ingerência" - invocado e utilizado com sucesso para evitar catástrofes humanitárias em casos de desmantelamento das estruturas do poder público (Haiti, Ruanda, Kosovo etc.) -, desvirtuado para fins que violam o Direito Internacional. Nas palavras de Cançado Trindade:


"Passou-se a invocar, sem maior espírito crítico, um suposto ?dever de ingerência?, expressão que não encontra respaldo no Direito Internacional e que tem dado margem a manipulações e a tentativas vãs de justificação do intervencionismo interestatal".


[...]


"Todo esse debate deve, em meu entender, ser redirecionado, de um pretenso ?dever de ingerência? ao direito à assistência humanitária das populações afetadas".



Para mencionar apenas mais um aspecto que se me afigura aflitivo, pergunto: como encontrar uma solução para o fato de que os poucos que detêm armas de destruição em massa ? e se recusam mesmo a submeter-se a inspeções internacionais ? procuram impedir que outros façam, sem policiamento, pesquisas sobre o uso pacífico da energia nuclear? Estamos voltando à época em que a força ditava o direito? Ou será que entramos numa era orwelliana, em que "todos são iguais, só que alguns são mais iguais"?


VII


Não é meu desejo dar feição pessimista a uma ocasião festiva como esta. Limito-me tão-somente a relacionar coisas que estão por fazer, ou por refazer, no mundo e em nosso querido País.


Assim, ao contrário de terminar com uma nota desencorajadora, faço-o afirmando que ? mesmo em face das exceções de invocação abusiva das normas internacionais ? conforta-nos ler na obra agraciada com a Medalha-Mérito Pontes de Miranda o que tem sido feito, por exemplo, nos diferentes foros internacionais e particularmente no interamericano para proteger os Direitos Humanos. Na verdade, apesar das deformações mencionadas, é expressivo o progresso verificado no Direito Internacional quanto ao respeito aos Direitos Humanos, e esse avanço constitui motivo de esperança para que tal evolução se amplie, até abranger toda a comunidade internacional.


Em O Direito Internacional em um mundo em transformação, Cançado Trindade recorda-nos de que há quase uma década advertira para "a necessidade de construir um direito comum da humanidade" e assim se expressa:


"Os grandes desafios de nossos tempos ? a proteção do ser humano e do meio ambiente, o desarmamento, a erradicação da pobreza crônica, o desenvolvimento humano, e a superação das disparidades alarmantes entre os países e dentro deles, ? nos incitam a repensar os próprios fundamentos e princípios do Direito Internacional contemporâneo, com vistas a sua revitalização, como um verdadeiro direito universal da humanidade."



Portanto, às sérias inquietações que a conjuntura mundial suscita, nossa resposta não pode ser de desânimo, pois, novamente nas palavras de Cançado Trindade,


"[É] a consciência, e não a vontade, que move o Direito, que o faz evoluir, ? e o Direito Internacional não faz exceção a isto. Em última análise, é a consciência coletiva do que é juridicamente necessário (opinio juris communis necessitatis) que tem levado à criação da normativa internacional orientada por valores superiores. Trata-se de um Direito, mais do que voluntário, necessário. É da consciência jurídica universal que germinou o jus cogens, que, por sua vez, veio dar um conteúdo ético ao Direito Internacional contemporâneo."


Deve-se ler O Direito internacional em um mundo em transformação com o otimismo e sobretudo a esperança de seu autor, sua "incontornável necessidade do sonho" , porque, como disse a grande idealista que foi Eleanor Roosevelt, "O futuro pertence àqueles que crêem na beleza de seus sonhos."









O Imperador Justiniano I, "o Grande", deixou o legado de importantes conquistas militares à frente do Império Romano do Oriente e, paralelamente, patrocinou a compilação e a reorganização das leis romanas ao editar o Corpus Iuris Civile.
Todavia, a par dessas notáveis realizações, Justiniano desmereceu o epíteto de "o Grande", já que fechou a Academia de Atenas apenas dois anos depois do início de seu longo reinado, como uma das expressões de sua inflexível política religiosa. O Imperador atribuía aos filósofos atenienses a pecha do paganismo, sem aperceber-se da valia e da consistência do corpo de doutrina moral que ali se professava.


Quase dez séculos se passaram até o renascimento das Academias, já na Itália quatrocentista, primeiramente dedicadas ao helenismo e à filosofia e depois à filologia e à arqueologia, enlevadas pela efervescência e redescoberta da cultura clássica.


As novas Academias assumiram feição diversa daquelas socráticas e platônicas, passando a reunir pessoas com interesses comuns ? todas habilitadas a oferecer uma contribuição útil -, além de mestres e alunos em atividade de ensino.


Estavam lançadas, assim, as bases da Academia moderna, centros de intercâmbio de experiências e idéias sobre as preocupações e os anseios de todos os que não se contentam em ser levados pelos acontecimentos ou em apenas reagir ? e pensam, indo, a exemplo do homem renascentista, muito além de sua atividade específica.


Nesse contexto de produção e reexame do conhecimento, inquietação e enriquecimento intelectual, para benefício de seus membros e da sociedade, nasceu a Academia Brasileira de Letras Jurídicas, que, nas palavras do Grande Benemérito Reginaldo de Souza Aguiar, "não é apenas mais uma associação em que seus membros se reúnem para especulações sobre temas jurídicos. Ela é uma célula viva e atuante da sociedade..." , "refúgio para almas sensíveis", na expressão de José Renato Nalini, para quem as Academias "mesclam a rotina das incessantes requisições da vida contemporânea com a incontornável necessidade do sonho" .


Dentro dessa perspectiva é que se homenageia com a Medalha-Mérito Pontes de Miranda a Antônio Augusto Cançado Trindade por mais uma de suas excelentes obras, O Direito Internacional em um mundo em transformação.Aliás, por um momento pus-me a pensar nas semelhanças entre o homenageado e Pontes de Miranda, a despeito das diferentes épocas de suas profícuas existências.


Além de serem ambos participantes ativos em foros internacionais e autores de rica produção jurídica, unem-se pela magnitude da qualificação intelectual e pelo elevado quilate dessa produção, na qual não se sabe o que mais admirar, se o esmero dos conceitos, a densidade do pensamento ou a fluência das idéias expostas com raro brilho e desenvoltura.


O livro agraciado situa-se nesse contexto, por sua alta qualidade, pelas idéias vigorosas e pelo estilo convincente e formoso de quem sabe escrever com arte e técnica primorosa, a prender a atenção do leitor, qualquer que seja ele, versado ou não em Direito.


II


O País, sem embargo de algumas ondas políticas aqui e ali, a exemplo das anunciadas invasões no campo e da violência urbana, vive momento de tranqüilidade democrática. O Judiciário, no entanto, passa por uma fase em que se discute a possibilidade de mudanças institucionais, notadamente em pontos essenciais à sua atuação e aprimoramento, como o seu anunciado controle e a criação da Escola Nacional da Magistratura.


O primeiro, o controle das atividades do Judiciário, vem despertando intranqüilidade, estando, pois, a merecer ponderações que ultrapassam a conjuntura para atingir a missão institucional desse Poder. É de relembrar-se que a conduta disciplinar e os procedimentos administrativos e financeiros praticados pelos juízes e auxiliares da Justiça encontram na Constituição e nas leis mecanismos importantes de fiscalização. As Corregedorias dos Tribunais, as Cortes de Contas federal e estaduais, a par da abrangente função institucional do Ministério Público e da Ordem dos Advogados, constituem instrumentos elevados de controle; além deles, o embate próprio dos autos de processo, no qual o contraditório e a ampla defesa permitem o acompanhamento diuturno das atividades de juízes, tribunais e serventuários.
Não se está a acobertar falhas, nem a ingenuamente defender a perfeição do sistema atual. Evidencia-se a necessidade de aperfeiçoamento. Todavia, a complexidade dos problemas não autoriza críticas levianas nem conclusões irrefletidas, muito menos se pode aquiescer com medidas conjunturais e pouco eficazes. As irregularidades que ultimamente vêm acometendo o Judiciário, como os casos de corrupção e venda espúria de decisões judiciais, não justificam, por si só, a substituição de um sistema por outro, nem estão a merecer providências açodadas.


Externo ou interno, por um único órgão ou por vários, por magistrados apenas ou também por membros de outras instituições do sistema judiciário, ou, até mesmo, por cidadãos estranhos a este, o controle ? antes de ser concretizado ? exige mais apurada reflexão. O que não se pode aceitar, definitivamente, é o desvio das discussões para a trilha do cerceamento da liberdade, não se pode descuidar da precípua missão do Judiciário, qual seja, a de julgar conforme as leis e com independência, longe da conveniência e dos juízos próprios da política partidária.


A conquista do Estado democrático de Direito ? paradigma hoje estampado na Constituição ? custou ao Brasil longos períodos de sombra e instabilidade. A plenitude da democracia, como já disseram os clássicos e continuam a dizê-lo os modernos, só se alcança com uma Justiça apta a alcançar a todos e a fazer de todos verdadeiros cidadãos. Guardião das liberdades e dos direitos fundamentais da pessoa humana, o Judiciário não pode sofrer influência política no mérito de seus julgamentos.


A questão do controle do Judiciário, infelizmente, politizou-se, e isso tem prejudicado uma abordagem serena. É verdade que a recente divulgação de condutas ilícitas de alguns magistrados contribuiu para o acirramento do debate. Seria mais do que razoável, todavia, aguardar-se o fim das investigações e eventuais julgamentos antes de extrair conclusões apressadas.


A denúncia de hoje não pode tornar-se, necessariamente, punição amanhã, sobretudo no Estado de Direito. Se pensarmos com desprendimento, chegaremos à conclusão de que o processo ordenado, conduzido dentro dos parâmetros legais, é uma garantia para os cidadãos. O linchamento pelos meios de comunicação pode aumentar a circulação dos jornais e os níveis de audiência televisiva, mas não significa a melhor concretização do justo. Sem o devido processo legal, há sempre o risco de prejulgamento, de condenação sumária, de temerário exercício punitivo.


Além do mais, o Judiciário já demonstrou amplamente não ceder ao corporativismo cego de que alguns o acusam, como atestam os vários processos contra juízes, desembargadores e Ministros em andamento nos foros competentes.


A Constituição diz que os três Poderes da União são independentes e harmônicos entre si. A matéria é de alta relevância e reconheço que nem mesmo existe unanimidade dentro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal ao qual pertenço. Artigo do Ministro Carlos Velloso publicado em 14 de fevereiro informou que, no Supremo, 7 Ministros rejeitam o controle externo, enquanto 4 o aceitam. No Superior Tribunal de Justiça, em reunião da Corte Especial realizada em 16 de fevereiro, 20 Ministros declararam-se contrários à idéia, 6 a favor e um contra qualquer tipo de controle, seja interno, seja externo.


Ressalte-se que nos países em que existe o Conselho da Magistratura, ele foi introduzido para reforçar os poderes do Judiciário, seja porque era dependente do Executivo, seja por qualquer outra deficiência estrutural inexistente no Brasil. Entre nós, o Poder Judiciário sempre exerceu sua independência em harmonia com as demais funções estatais e invocar um órgão de controle a cada vez que uma decisão desagrada um círculo de poder é comprometer o futuro da nossa recém-conquistada democracia.



III


Em relação à Escola Nacional da Magistratura, que todos queremos como ponto culminante de um sistema nacional de formação do juiz, para formular o novo modelo de julgador a que o País aspira ? trabalhador, sério e sensível à realidade social -, assim como seu continuado aperfeiçoamento profissional. É de lembrar-se que ela ainda teria por alvo servir de órgão de planejamento permanente, centro polarizador de experiências bem sucedidas e de idéias renovadoras e múltiplas, próprias de uma sociedade em evolução e plural, a exemplo do que ocorre em outros países, órgão hoje já defendido entre nós por autorizadas vozes de importantes setores da vida judiciária.


Sabemos do lamentável estado do conhecimento jurídico no Brasil. A profusão das verdadeiras fábricas de diplomas, abertas, como sabido, com o beneplácito dos órgãos responsáveis, resulta em serem lançados nas ruas, não raro, profissionais despreparados, às vezes inaptos a redigir na língua materna, e ? os fatos não mentem ? em grande proporção incapazes de passar no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Nosso eminente Presidente da Academia, no boletim de agosto de 2003, com sua reconhecida autoridade, já afirmava que "o Exame da OAB tem índices de reprovação à beira dos cinqüenta por cento dos bacharéis candidatos a advogado; e o ensino jurídico se degrada dia a dia, o que nenhum professor nega...".


Um levantamento divulgado pela Ordem dos Advogados no início deste ano é apavorante. Existem no Brasil 726 cursos de Direito, formando 70.000 bacharéis por ano! O número de faculdades aumentou em mais de quatro vezes num período de doze anos e apenas 28% dos cursos de Direito foram considerados de boa qualidade. São dados inquietantes para o futuro das profissões jurídicas no Brasil.


Dependem de análise nos órgãos competentes cerca de 450 pedidos de instalação de novas Faculdades de Direito. Esse elevado número de escolas não preocuparia, se apenas refletisse a intenção de cada brasileiro conhecer melhor os seus direitos e seus deveres. Lamentavelmente, no entanto, acena-se para a juventude com uma profissão, com uma carreira e essa promessa não é cumprida por aqueles que enxergam na atividade educacional das ciências jurídicas uma iniciativa empresarial como outra qualquer.


Na Introdução ao seu livro, o Professor Cançado Trindade fala do desinteresse pelo ensino do Direito Internacional, "que deixou de ser, a partir de meados dos anos setenta, matéria integrante do currículo mínimo obrigatório das Universidades públicas brasileiras" , e assinala que "em muitas Universidades nacionais continua sendo perfeitamente possível graduar-se em Direito sem jamais tê-la sequer cursado" . Às suas palavras ouso acrescentar que o descaso alcança o ensino de todo o Direito e não só do Direito Internacional.


A experiência profissional e a observação da realidade da Justiça brasileira nas últimas quatro décadas formaram-me a convicção, partilhada com o Professor Sidnei Beneti, respeitado Desembargador do Estado de São Paulo e uma das maiores autoridades brasileiras nos meios internacionais, de que a criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados permitirá aprimorar a qualidade dos juízes brasileiros, preparando-os para exercer plenamente suas funções.


Neste passo, a responsabilidade primeira pela adequada formação de juízes é do Poder Judiciário, ao qual a Constituição cometeu tarefas muito mais abrangentes do que a mera dicção da lei. Como acentua José Renato Nalini, uma das vozes mais respeitadas no tema, o juiz do futuro precisará ser polivalente. Será harmonizador da sociedade, solucionador dos conflitos, arquiteto de uma comunidade fundada na pacífica solução das controvérsias. Avançar, resgatar déficits passados e encarar o desafio de satisfazer as necessidades contemporâneas é responsabilidade social das lideranças do Judiciário brasileiro.

A importância da formação dos juízes sobressai no cenário que se vem traçando na sociedade atual. Os conflitos de interesses, que antes se projetavam no plano estritamente individual, tomam novas feições, multiplicam-se e tornam-se cada vez mais complexos. O mundo globalizado e as constantes inovações tecnológicas, aliadas à contínua ampliação do acesso à Justiça, fruto saudável da maturidade democrática, impõem ao Direito novas necessidades e crescentes responsabilidades. O juiz não pode mais aquietar-se passivamente ante a realidade, que está a exigir-lhe postura ativa e comprometida com o fortalecimento da cidadania.


As confluências dos direitos fundamentais, a exigir do Estado prestações materiais e positivas, os interesses difusos e coletivos, a dinâmica das relações de consumo, a disciplina das condutas praticadas em redes de computadores e na internet, as relações contratuais internacionais, entre vários outros temas de vanguarda e também polêmicos, começam a ser levados ao Judiciário, exigindo pronta solução. Bastaria lembrar a tutela do meio ambiente, que o constituinte confiou não só ao Poder Público, mas também à sociedade, para reconhecer as responsabilidades das atuais gerações em relação à sua descendência. Os direitos transgeracionais reclamam um novo juiz.


Para responder a essa demanda, torna-se imprescindível a formação inicial e continuada dos julgadores como parte de um planejamento permanente das atividades do Judiciário. Reporto-me às palavras de quase três décadas atrás, quando, ao apontar as qualidades do juiz ideal, disse aos recém-empossados na Magistratura mineira que ele haveria de ser

"honesto e independente;
humano e compreensivo;
firme e corajoso;
sereno e dinâmico;
culto e inteligente;
justo, sobretudo".

A conjugação dessas qualidades depende de condições físicas, mentais, humanas, vocacionais, morais e sociais. Depende também, e notadamente, de formação sólida e específica para o desempenho da função jurisdicional.


O desenho final da Escola da Magistratura deve contar com as experiências brasileiras, ainda que incipientes, e, sobretudo, com os modelos de formação de outros países, como França, Portugal, Espanha, Canadá, Itália, Alemanha, Holanda, Japão, de cujas realidades nos poderemos valer para construirmos uma Escola adequada às necessidades brasileiras.


Ela produzirá uma teoria sobre a Justiça humana, muito mais sensível às aspirações de uma cidadania imersa numa realidade complexa. Realidade paradoxal, pois de um lado estão o hedonismo, o consumismo, o egoísmo potencializado ao egoísmo desenfreado, mas, de outro, o clamor por uma convivência mais ética e mais fraterna. O juiz será o ponto de equilíbrio nesse caos valorativo, o propiciador do convívio fundado na dignidade humana e no respeito às diferenças.


Devemos dirigir nossos esforços a fim de encontrar a alternativa mais adequada de preparação, formação contínua e aperfeiçoadora da magistratura do século XXI, artífice da paz e da solidariedade, responsável pela edificação de um novo e mais consistente pacto de convivência entre as pessoas.


Senhores acadêmicos, se toquei nesses dois temas foi porque sei que este é um foro no qual eles têm repercussão e podem levar a uma troca de opiniões inteligente e frutífera.


Os juízes, inquietos na sua vocação de transformar o mundo, aguardam a contribuição da comunidade jurídica, da intelectualidade e da lucidez pátria, para desenvolver o ambicioso projeto de reinvenção da Justiça. Vamos, todos juntos, formulá-lo e realizá-lo.


IV


Os Judiciários de vários países já se deram conta de que a crescente internacionalização das relações de toda ordem está a exigir deles um esforço de aproximação, com vistas a melhor entendiment

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