Lei Maria da Penha: mudança instrumental e a inversão de sua intenção

Rafael Fecury Nogueira, Advogado,OAB-PA 12.452. Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR). Consultor Jurídico da Secretaria de Administração do Estado do Pará. E-mail: rafaelfecury@yahoo.com.br

Fonte: Rafael Fecury Nogueira

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É indiscutível que na maioria das vezes o legislador produza leis com a melhor das intenções, objetivando conferir melhores condições de vida à população, melhores resultados a certas medidas, redução da criminalidade, maior eficiência ao processo, etc.

Infelizmente a realidade não traduz a nobre intenção do legislador, pois, boa parte das leis que são aprovadas, no específico âmbito da legislação penal lato sensu, ainda que com certo ar de efetividade, padece de alguma "enfermidade". Os motivos variam, desde a necessidade de dar uma resposta rápida e simbólica à população, passando pela falta de conhecimento técnico do parlamentar, até à falta de humilde de muitos legisladores que não declinam de suas incompetências técnico-jurídicas para produzir um corpo normativo verdadeiramente eficiente, e não só, efetivo.

É com esse pesar que afirmamos que, mesmo com a melhor das intenções, a nova Lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei 11.340/06), denominada Lei Maria da Penha, em muitos casos, ao invés de combater de frente e reduzir o incontrastável problema da violência contra a mulher, na verdade, trará conseqüências desagradáveis a muitos, principalmente àqueles árduos defensores do maior rigor penal, que, equivocadamente, enxergam no Direito Penal o primeiro e único instrumento de redução da criminalidade.

Apesar do relativo avanço alcançado, é também fato que a Lei Maria da Penha trouxe diversas impropriedades. Entre elas citamos as impropriedades terminológicas presentes nos arts 12, V, e 15, III, entre outros, que denominam o autor do fato, de forma açodada, de agressor, taxando-o imediatamente de algo que pode não o ser, carecendo do meio imprescindível para tal(1) - o processo penal condenatório findo. Esqueceram-se de uma, ainda em vigor, Presunção Constitucional de Inocência.

Ainda, aquela contida no art. 17, que afirma que não haverá pena de cestas básicas(2). E mesmo nem existindo formalmente tal pena, melhor denominação teria como pena pecuniária consistente no pagamento de cestas básicas.

Como impropriedade técnica, acreditamos inoportuna a inclusão de toda e qualquer modalidade de crime cometido contra a mulher, excluindo-os do âmbito dos Juizados Especiais Criminais, uma vez que, o legislador, através da Lei 9.099/95, e posteriormente com as Leis 10.259/02 e 11.313/06, já havia definido o que seriam as infrações penais de menor potencial ofensivo, objetivando assim, despenalizar tais ilícitos, conferindo maior participação da vítima e maior agilidade ao processo.

Porém, principal alteração que cremos inadequada e equivocada diz respeito exatamente à exclusão da aplicação da Lei 9.099/95 da esfera de seus catalogados crimes pelo Art. 41 da lei 11.340/06, retirando não apenas a participação da mulher-vítima do contexto instrumental, com a agora exclusão da composição civil dos danos (conciliação entre autor e vítima), mas, retirando institutos já consagrados do Direito Processual Penal Brasileiro como a transação penal e o sursis processual, outrora direitos e benefícios assegurados aos autores dessas infrações penais diminutas.

Como não poderia deixar de ser, retirando tais crimes do âmbito de aplicação da Lei 9.099/95, não apenas se elimina a incidência dos já mencionados institutos benéficos, mas, sobretudo, deixa-se também de ser aplicado o rito procedimental desta lei(3), aplicando agora o rito sumário previsto no art. 536 e seguintes do Diploma Processual Penal(4), acarretando, fatalmente, seríssimos prejuízos não apenas à agilidade do processo, mas, fundamentalmente, à própria eficiência e à desejosa resposta penal desta nova Lei. Assim, a partir de agora, pelo menos para os casos de violência domestica e familiar contra a mulher, a leitura do Art. 539 será literal, "ressuscitando" o rito sumário em detrimento do sumaríssimo da Lei 9.099/95.

Contradição maior encontra-se no fato de que a citada Lei, ao mesmo tempo em que traz o Direito de Preferência ao processo e julgamento de seus feitos, afasta um rito mais célere e sacramenta o procedimento moroso.

Pensamos que a preferência está intimamente ligada à agilidade, não havendo que se falar em separação destas como trouxe a nova Lei. Para se entender o objetivo do Direito de Preferência basta uma leitura no Estatuto do Idoso que também garante a preferência dos processos de sua alçada. As razões são óbvias.

Com a aplicação do rito sumário, que quase em nada difere do ordinário, haverá enorme possibilidade de grande parte de tais crimes serem abarcados pela prescrição, uma vez que, não incidirão apenas de crimes de violência propriamente dita, mas, crimes como os de ameaça, difamação, entre outros, que, de igual forma, serão por ele regidos.

É certo que o rito sumário ainda possui aquela forma rígida e burocrática do rito ordinário - a saber, interrogatório, defesa prévia, audiência de testemunhas de acusação, diligências, testemunhas de defesa, etc, - essencialmente munido de um rigor formal, levemente atenuado, que neutralizará a agilidade na apuração e punição dos crimes contra a mulher. E pior, devolverá à vítima o papel de mero coadjuvante no processo.

Assim, havendo, por exemplo, processo por crime de ameaça cometido contra a mulher, que possui pena máxima de 6 (seis) meses, em caso excepcional de condenação com imposição desta pena, tem-se a prescrição da pretensão punitiva em um período de 2 (dois) anos.

Sabe-se que qualquer processo em qualquer média capital do país dificilmente é instruído e julgado em "apenas" dois anos em caso de réu solto. Qual a conclusão lógica? Esses processos fatalmente prescreverão, extinguindo-se a punibilidade dos denominados agressores, distanciando-se daquele desejo nacional de se combater a violência contra a mulher, que pode e deve ser combatida. Se se mantivesse o rito da lei 9.099/95, a celeuma não se instalaria.

Não precisa guardar segredo de que, além do imenso número de feitos em trâmite nas varas criminais brasileiras, propiciando a delonga processual, qualquer Advogado que honre o Constitucional Direito de Defesa, bem sabendo manejar o processo penal, certamente porá em marcha medidas e, frise-se, garantias legalmente previstas(5) dos réus, fazendo com que, em muitos dos casos, até extrapolem o prazo de dois anos para a prescrição.

Nesse sentido lamentamos que a boa intenção legislativa em combater a violência contra a mulher tenha vindo com a má técnica, transformando o discurso em sofisma e retórica pura.

Seguramente, o diploma neófito surtirá seu objetivo imediato com a prisão em flagrante do autor, dando a impressão de repressão ao crime e eficiência, porém, no decorrer do devido processo penal, no momento em que se aguardar a condenação, surgirá a punição do próprio Estado com a prescrição do crime cometido pelo agressor, extinguindo absolutamente sua punibilidade, frustrando o desejo incontinenti de muitas vítimas que aspiravam uma resposta penal.

Por certo, a nova Lei Maria da Penha, em certos casos, se mostrará rígida e severa, afrouxando tal rigor com o decorrer do processo, fazendo aos crimes, antes pertencentes à Lei 9.099/95, um convite à prescrição, transparecendo com isso um caráter mais simbólico que eficaz.

Para o bom Processo Penal não interessa a imediata prisão em flagrante com posterior soltura e absolvição ou extinção da punibilidade. É preferível a liberdade durante o processo, que é regra, e, em caso de culpa, uma condenação (correta) ao seu fim.

Nesse contexto, andou mal o legislador em retirar o rito sumaríssimo da esfera da Lei Maria da Penha, criando mais uma mera expectativa que inverte sua nobre intenção.

Mais uma boa oportunidade que passa. Novamente a falta de critério definido acarretará a inversão da intenção do legislador.


Notas:

* Rafael Fecury Nogueira, Advogado,OAB-PA 12.452. Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR). Consultor Jurídico da Secretaria de Administração do Estado do Pará. E-mail: rafaelfecury@yahoo.com.br

Data de elaboração: 22/05/2007. [ Voltar ]

1 - BARBAGALO, Fernando Brandini. Duas impropriedades técnicas da Lei de Proteção à Mulher (Lei nº 11.340/2006). Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/. Acesso em: 10 fev. 2007.Voltar

2 - BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei "Maria da Penha". Alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/. Acesso em: 10 jan. 2007.Voltar

3 - FULLER, Paulo Henrique Aranda. Aspectos polêmicos da Lei de Violência domestica ou familiar contra a mulher (Lei nº 11.340/06). Boletim IBCCRIM, v. 14, nº 171, fev/2007, pág. 14.Voltar

4 - "Processo sumário (...) é o procedimento comum em que se exterioriza o processo penal condenatório relativo a crimes punidos com detenção ou a infrações penais qualificadas como contravenção" (MARQUES, Jose Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Ed. Millennium, 2ª Ed. Atualizada, 2000, pág. 124).Voltar

5 - "Em virtude da garantia da observância integral do procedimento, não se permite ao juiz suprimir atos ou fases do procedimento". (FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. Ed. RT, SP, 3ª ed. 2002, pág. 114).Voltar
 

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