Fim do foro privilegiado para crimes comuns muda relação entre Justiça e política

Mudança constitucional foi aprovada em 1º turno pelo Senado.

Fonte: O Globo

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A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que determina o fim do foro privilegiado para crimes comuns provocará uma reviravolta na relação das autoridades com a Justiça caso ultrapasse o processo legislativo e se transforme, de fato, em uma norma legal. O texto foi aprovado em primeiro turno no Senado na noite de quarta-feira, mas ainda tem um caminho pela frente. Por se tratar de uma mudança na Constituição, o projeto precisa ser aprovado em uma nova votação no Senado, antes de ser avaliado duas vezes pela Câmara dos Deputados. Especialistas ouvidos pelo GLOBO apontam consequências positivas, como a redução do número de processos no Supremo Tribunal Federal (STF), e alertam para eventuais prejuízos, como um drible à lei da Ficha Limpa. A legislação determina a inelegibilidade após decisões colegiadas — o que é o caso do STF, mas não dos órgãos de primeira instância.


MUDANÇA PODE ATINGIR 34 MIL


Apontado como sinal de impunidade para políticos investigados, o foro privilegiado é um benefício concedido hoje ao Presidente da República, ministros, senadores, deputados federais e também a outros agentes públicos — juízes, promotores, procuradores e conselheiros de Tribunais de Contas têm direito a serem julgados por instâncias superiores. De acordo com o relatório apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), cerca de 34 mil autoridades estão submetidas a algum tipo de foro especial.


O texto aprovado pelo Senado preservou a prerrogativa de foro em quatro casos específicos: os presidentes da República, da Câmara, do Senado e do STF. O julgamento no Supremo está garantido inclusive para a possibilidade de crimes cometidos antes do mandato — a exceção é o presidente da República, que tem imunidade temporária e não pode ser punido por fatos anteriores ao período em que ocupa a Presidência.


Já as demais autoridades perderão o privilégio do foro instantaneamente caso a PEC seja aprovada em definitivo. Com isso, passarão a ser julgadas por juízes da primeira instância do Judiciário. A medida é vista como sinal de agilidade na tramitação de processos, já que um único magistrado analisará casos de autoridades investigadas, enquanto no Supremo a decisão é mais lenta e tomada por um colegiado. Além disso, a análise mais detalhada dos processos penais que hoje, por força da lei, estão restritos ao STF, proporcionará um direito mais amplo à defesa. O risco, no entanto, está no tratamento diferente para situações semelhantes, a depender das autoridades que atuem nas investigações.


— Em alguns estados, vai ter grupo de promotores, juízes e policiais muito profissionalizado e eficiente. Em outros, a inércia vai prevalecer. Vai criar certa desarmonia — analisa Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional da FGV-SP.


Especialistas apontam ainda que o fim do foro pode tornar ineficaz as nomeações políticas com o intuito de levar os processos para outras instâncias. No ano passado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi nomeado ministro da Casa Civil e, assim, a ação a que responde sairia da alçada do juiz Sergio Moro e iria ao STF. A nomeação foi cassada pela Justiça.


Impacto sobre a velocidade


A distribuição de processos que hoje estão no Supremo Tribunal Federal (STF) para seções judiciárias de todo o país poderá agilizar o trabalho da Justiça, segundo a avaliação de especialistas ouvidos pelo GLOBO. Originalmente uma Corte constitucional, o Supremo se vê, hoje, obrigado a analisar uma imensidão de ações penais, número que vai aumentar após as delações de ex-executivos da Odebrecht se transformarem em denúncias formuladas pela Procuradoria-Geral da República. Com 11 ministros em sua composição, o STF não consegue dar vazão à enxurrada processual que chega aos gabinetes.


— O Supremo não tem estrutura. Não é um tribunal penal, é uma Corte constitucional. A Constituição de 1988 jamais imaginou que haveria um número tão elevado de autoridades com direito a foro privilegiado. O julgamento no STF era para ser uma exceção, mas virou regra (o julgamento no STF) — avalia o professor do Ibmec-RJ Jerson Carneiro, especialista em Direito Constitucional.


Outra alteração que poderá dar velocidade aos trâmites legais é o fim das mudanças de órgão jurisdicional conforme o acusado ganha ou perde o direito a algum tipo de foro privilegiado. Hoje, um réu que é eleito deputado federal, passa a ter seu caso analisado pelo STF. Caso não conquiste um novo mandato, o processo retornará para as instâncias inferiores. O vaivém provoca lentidão e facilita a prescrição dos crimes.


— O vereador que estava para ser preso se elege prefeito, e o processo migra para outro órgão. O prefeito se elege deputado, e o caso vai ao STF. Com essa demora, os crimes podem prescrever — diz Carneiro.


USO DA JUSTIÇA PARA FAZER PRESSÃO


A extinção do foro privilegiado precisa ser acompanhada de mecanismos que regulem as investigações de uma forma a não tornar as autoridades vulneráveis a ações judiciais com objetivos políticos, avaliam professores e advogados. Para Rodrigo Mascarenhas, especialista em Direito Constitucional, o foro é uma forma de proteção mínima para a atuação de agentes públicos:


— A ação de improbidade administrativa, que serve para punir basicamente o agente político, está fora do foro privilegiado. Opositores do (ex-presidente) Fernando Henrique distribuíram ações por todo o Brasil, forçando-o a se defender em vários juízos. Ou seja, a Justiça passou a ser usada como um instrumento barato e eficiente de pressão política. Isso já acontece, mas pode ser imensamente potencializado (com o fim do foro), inclusive contra o próprio Judiciário.


Já o professor Oscar Vilhena, da FGV-SP, defende que sejam criados procedimentos a fim de evitar que autoridades fiquem expostas a este tipo de pressão.


Em outro ponto, o presidente da Comissão de Processo Constitucional da OAB/RJ, Rodrigo Brandão, acredita que a possibilidade de um juiz ser influenciado por uma força política local influente pode ser minimizada:


— Há mecanismos para combater isso (pressão política). Se o juiz está atuando de maneira indevida, ele deve responder perante o seu tribunal e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Existem mecanismos de responsabilidade disciplinar e de recursos a outras instâncias.


Reflexo sobre a eleição de 2018


Especialistas concordam que a decisão de votar o fim do foro privilegiado precisa ser analisada dentro de um contexto eleitoral. Com os inquéritos instaurados no Supremo Tribunal Federal a partir das delações da Odebrecht, uma série de parlamentares corre o risco de ficar inelegível caso as investigações se transformem em denúncias, e a Corte condene os réus até as eleições de 2018. A eventual confirmação da extinção da prerrogativa de foro levaria os casos para a primeira instância — mais distante de uma decisão colegiada que pode impedir políticos investigados de concorrer a um novo mandato, como determina a lei da Ficha Limpa:


— O foro privilegiado é um péssimo negócio para a defesa, sobretudo quando é direto no STF. É uma instância só, que possibilita no máximo um recurso para o próprio tribunal que já julgou o caso. Para o réu, melhor começar na primeira instância. Sobretudo, porque demora muito mais para ter uma decisão colegiada, que é a que gera inelegibilidade. Quando o Supremo decide, o sujeito já fica inelegível — avalia o advogado Rodrigo Mascarenhas, especialista em Direito Constitucional.


Para o professor da FGV-SP Oscar Vilhena, a movimentação dos senadores busca atrasar os julgamentos de parlamentares na última instância.


— É evidente que tomar esta decisão neste momento sem uma cláusula de transição é uma forma de tentar desarmar eventual punição peremptória que vai acontecer no Supremo agora. Não vejo uma ação altruísta do Senado. É no sentido de retardar eventual punição.


COMO FICA O STF?


O Supremo Tribunal Federal (STF) poderá retomar a sua essência e ficar mais livre para exercer a função de Corte Constitucional, segundo os especialistas. Por outro lado, a perda do foro privilegiado dos ministros — a prerrogativa valerá apenas para quem ocupar a Presidência — representa uma perda de prestígio.


— Se, por um lado, o Supremo vai poder se dedicar à sua missão mais importante, que é julgar matéria puramente constitucional, por outro, a Corte perde importância. Está sendo enfraquecida, já que os ministros também perdem o foro especial. Às vezes, eles têm que ir contra os desejos da magistratura, e poderão ser julgados por juízes de primeira instância — aponta o advogado Rodrigo Mascarenhas, especialista em Direito Constitucional.


O professor da FGV-SP Oscar Vilhena afirma que a redistribuição processual pode “organizar o sistema”.


— O impacto no STF é tirar dele um atributo que não lhe é natural, que lhe toma muito tempo e que gera muito desgaste político — ressalta.


Professor da Uerj e presidente da Comissão de Processo Constitucional da OAB-RJ, Rodrigo Brandão acredita que a experiência atual já mostrou que o STF trabalha além do limite.


— Na extensão que tem, para todo e qualquer parlamentar, não se justifica (o foro privilegiado). A razão principal é empírica, porque o STF não tem como julgar todos esses processos. É incompatível com todas as outras funções relevantes que ele exerce — reforça Brandão.

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