Da sociedade e da construção de uma teoria tetra-partite do Estado

Fonte: Edno Damascena de Farias

Comentários: (0)




Edno Damascena de Farias ( * )

Para uma compreensão da sociedade atual

Qualquer que seja a corrente teórica que se subscreva, é necessário partir da compreensão empírica de que os humanos precisam, antes de tudo, comer para sobreviver individual e coletivamente.

Da mesma maneira, é indiscutível que a forma atual de organização da sociedade, baseada no atomismo social, no individualismo exacerbado nas doutrinas, é característica da sociedade capitalista pós-revolução francesa, típico da sociedade organizada com base nos valores e na lógica do mercado; não se ignorando as interferências reguladoras do Estado para garantir a reprodução desta sociedade histórica concreta.

A sociedade contemporânea organiza-se através de relações de capital-trabalho e de relações dela decorrentes, onde tudo se transforma em mercadoria, onde, ainda que se considere a ampliação das empresas estatais e a intervenção do Estado na economia, a liberdade continua sendo concebida como o foi pelos pais do liberalismo, como a possibilidade/potestade de dispor de sua vontade, de sua força de trabalho, de suas mercadorias ao preço de mercado. Liberdade individual frente ao coletivo e ao Estado.

A produção social de riquezas, de bens de uso e consumo, materiais e espirituais, dá-se na sociedade capitalista através de relações de coexistência entre aqueles que detêm os meios de produção (fábricas, bancos, comércios, fazendas, etc.) e os que detêm apenas a força de trabalho, os braços que moverão as máquinas e equipamentos, a burocracia e os serviços.

Por mais conservador que se seja, é impossível negar essa realidade fática: a sociedade é a coexistência entre desiguais, entre os que possuem e os que não possuem. Essas diferenças se manifestam na divisão social do trabalho, em que são várias as profissões e em que uns se dedicam a administrar e outros são administrados.

É ideológica qualquer construção doutrinária que afirma ser a sociedade monolítica, não contraditória e condensada no Estado. É sofismática qualquer tese que busca legitimar a existência do Estado num suposto pacto social, ou que o concebe como representante dos interesses de toda a sociedade.

A coexistência das pessoas humanas é assegurada, garantida, legitimada na sociedade atual pelo ordenamento jurídico que reflete e legitima o Estado, respaldado pela ameaça do uso da força, da violência estatal contra aqueles que ousem desviar-se da lógica e da normalidade, que não é outra que a decorrente da relação capital trabalho, de sua dilatação, dinamização, reprodução e gerenciamento.

Uma conceituação do estado de direito e da construção de uma teoria tetra-partite do Estado Da argumentação até aqui desenvolvida, posso, preliminarmente, conceber o Estado como o conjunto de aparatos que zelam, legitimam a forma capitalista de organização social, vez que se assim não fosse, se não houvesse coincidência da organização do Estado com o funcionamento e reprodução das relações sociais concretas, estaríamos frente ao momento de ruptura, ao momento de transformação revolucionária, que nada mais é que a falta de compasso entre a realidade organizada e o Estado, falta de sintonia, de legitimação do Estado pela sociedade.

O Estado capitalista tem demonstrado historicamente sua capacidade de se adaptar às conjunturas históricas, agigantando-se nos momentos de pressão e crescimento dos movimentos populares, quando passa ter agenda social, de atendimento aos interesses destes setores e das classes operárias. Diminui de tamanho, privatiza os serviços anteriormente instituídos ou estatizados, relegando novamente as classes e camadas sociais hierarquicamente inferiores aos desígnios do mercado, quando estas se enfraquecem ou se desmobilizam.

O Estado hodierno é o Estado da sociedade capitalista, ainda que se conteste estarem ou não presentes os pressupostos que o definam como liberal ou intervencionista; definição que só confirma a tese de que o Estado se legitima através de sua particularização.

A particularização, atomização dos seres humanos que têm existência material num território determinado, num determinado espaço geográfico, necessita, logicamente, do estabelecimento de leis, de normas que legitimem a convivência recíproca, sob pena do uso da coerção para os anormais. Normatizam-se as relações entre os entes atomizados, surgindo as relações jurídicas, que nada mais são que as relações entre esses sujeitos individualizados elevados a garantia de reprodução pelo aparato de Estado.

O direito é a manifestação do poder político da classe ou classes que dominam determinada sociedade histórica concreta, é a manifestação da relação material que predomina na sociedade histórica capitalista, respaldada pelo monopólio do uso da violência e da elaboração das leis as quais se exigirá cumprimento.

Ao manter, assegurar, garantir a estabilidade da sociedade de classes fragmentadas, através da coerção direta e da ameaça de aplicação das leis e da força, o Estado mantém a reprodução da sociedade como ela é, tornando, ainda, ilegal e ilegítima toda e qualquer ação ou atividade praticada em desacordo com o recepcionado e preceituado pelo ordenamento jurídico, que nada mais é que a normatização subsidiária da realidade histórica concreta, respaldado pela ameaça do uso da violência.

O Estado atual, histórico-concreto, se manifesta em um conjunto de aparatos, com estrutura e funções determinadas, através dos quais se expressam e se executam as decisões e o poder daquele. Não se confundem os aparatos de Estado e o poder do Estado. Este se manifesta nos próprios aparatos e nos atos e decisões de cada aparato, de forma política, jurídica, policial, econômica, administrativa, cultural e ideológica, tendo como limites legais o ordenamento jurídico, a Constituição no ápice.

O Estado se particulariza como ente supostamente desvinculado das classes sociais, tornando-se, desta forma, legitimado para intervir para que a sociedade mantenha-se funcionando em paz e em ordem. O Estado de direito é o Estado que se legitima através da Constituição, das leis, tornando-se pessoa jurídica de direito público, auto-intitulando-se condensação da sociedade, manifestação da vontade soberana do povo (antes da nação).

O Estado de direito, concebido pelos juristas, é ligado a uma realidade objetiva - econômica, política, social - determinada, assim como o sonho repousa sobre a realidade. (1)

A teoria clássica, desde Montesquieu, vem concebendo o Estado como poder político organizado e regido por leis constantes de um ordenamento jurídico, de forma tripartite, materializado em três poderes que coexistem harmônica e equilibradamente, com funções determinadas pela sua própria racionalidade operativa ou pela Constituição (art. 2º da CF), em Executivo, Legislativo e Judiciário.(2)

Por lógica organizacional, por racionalidade burocrática, o Estado, uno, referido sempre no plural aqui, faz-se presente e se institui em Estado-executivo, encarregado de executar as suas próprias decisões e exercer atividade administrativa que assegure a reprodução do Estado e das condições mínimas necessárias para a convivência física e jurídica dos cidadãos em sociedade; o Estado-legislativo, que legisla, delibera e aprova as leis que regerão o funcionamento do Estado e delimitarão os limites de atuação das pessoas na sociedade, em forma de normas cogentes ou permissivas de certas condutas; o Estado-judiciário, encarregado de zelar pelo cumprimento das leis pelos membros do Estado e pelos cidadãos que coexistem na sociedade, bem como pelo respeito à Constituição Federal e as leis.

Teoricamente, a concepção tripartite do poder do Estado apega-se à esses elementos descritos para conceituar os poderes executivo, legislativo e judiciário; mais pelas funções que desempenham que pelos aparatos em que se estruturam, vez que o poder é a manifestação de determinada ação objetivando determinado fim. (3)

Qualquer leigo que pesquisar a Constituição Federal, em seus artigos 2º, 37, 44, 76 e 92, que se referem aos poderes para a teoria tripartite do Estado, perceberá que não há ali nenhuma conceituação do que seja o ou um poder, cabendo esta tarefa aos teóricos.

Entretanto, da leitura dos artigos citados sobressai que a legitimação desses poderes está nas funções específicas que cada um tem como poder-dever de cumprir. Falta ali, ainda, a definição do que sejam as funções do poder executivo, que não constam do art. 76 e seguintes, devendo ser depreendidas da leitura do art. 37, está dilatada dentro deste artigo que se refere à administração pública.

Os poderes do Estado brasileiro são definidos como tais pelas funções que desempenham: poder legislativo, o poder que legisla; executivo, o poder que executa e administra as decisões do Estado; judiciário, o poder que judica, que diz o que a lei quer dizer e a aplica aos casos concretos a este submetidos.

Para melhor compreensão do tema e para que melhor fique explicitada a teoria tetra-partite do Estado que defenderei, aclaro que entendo o poder como o conceituou Max Weber, como a possibilidade e a capacidade de impor ou contar com a obediência a ordens específicas por parte de um determinado grupo de pessoas. (4)

O poder do Estado é aquele que busca legitimar-se e impor-se sobre todas as pessoas que vivem num país determinado organizado politicamente.

O poder do Estado, ratifico, materializa-se em um conjunto de aparatos que expressam ou manifestam determinado poder especializado e cumprem funções específicas relevantes para a manutenção e reprodução daquele e da sua legitimação pela sociedade: deve ter uma competência determinada, que implica na crença de que os funcionários deste contam com um saber especializado específico; uma hierarquia funcional interna, uma divisão interna do trabalho, obedecendo às especializações; mais a impessoalidade, como possibilidade de aceitação das decisões que vierem a ser tomadas ou executas. (5)

A teoria tetra-partite que proponho e defendo ser a mais correta para explicar o Estado brasileiro, concebe mais um poder, mais um conjunto de aparatos que tem hierarquia, funções específicas e pessoas especializadas para o seu exercício de forma impessoal, o Estado-gendarme-acusador.

Como demonstrei, o conceito de poder refere-se se ao exercício ou manifestação de decisões na direção de determinar ou condicionar comportamentos alheios, no caso do poder do Estado, determinar ou condicionar o comportamento de todos que vivem num país determinado. O poder do Estado se manifesta nos seus aparatos e se exerce através da ação das pessoas, intituladas autoridades públicas, que fazem parte dos aparelhos de Estado, que as respalda.

Ainda que a Constituição Federal não os tenha concebido como poder, o Ministério Público, pelo artigo 127 e seguintes, e as polícias, pelo artigo 144 e seguintes, tiveram elencadas um rol de funções e instrumentos para exercê-las, que, pela sua importância para a garantia de reprodução das relações econômicas, políticas, sociais, culturais e das próprias normas que compõem o ordenamento jurídico, extrapolam as atribuídas ao judiciário, por exemplo, em matéria penal.

Da leitura do artigo 127, decorre explicitamente, de forma literal que este aparato é essencial a função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Entre as funções constitucionalmente atribuídas ao Ministério Público pelo artigo 129 da CF está a de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; ou seja, o monopólio da ação penal pública incondicionada.

Por sua vez, às polícias - civis, militares, federais - são atribuídas, pelo artigo 144 da CF, as funções indispensáveis para a averiguação de cometimento de delitos, o policiamento ostensivo e repressivo, a repressão ao tráfico de entorpecentes e aos crimes, e, a mais importante: a preservação da ordem pública, que não é outra que a imposta pelo Estado e cuja observância preserva a sua própria existência e garante a reprodução das relações sociais imperantes.

Um raciocínio feito sem preguiça mental ou apego a dogmas, ainda que a dogmas jurídicos, torna indispensável a percepção de que:

a) as polícias e o Ministério Público fazem parte, em matéria penal, de aparatos, cujas funções são a investigação dos delitos cometidos, a repressão a estes delitos, mais a acusação dos supostos autores destes delitos junto ao Estado-judiciário.

b) ainda que sejam - as polícias e o Ministério Público -aparatos organizacionais distintos, com hierarquia, especialização técnico-jurídica e científica distintas, podem ser, em decorrência das funções complementares e, às vezes, coincidentes que cumprem e desempenham (a investigação criminal, por exemplo), serem conceituados como componentes de um mesmo poder, o poder-gendarme-acusador; por uma questão de coerência teórica, de Estado-gendarme-acusador, vez que venho tratando os demais poderes do Estado como Estado-executivo, Estado-judiciário e Estado-legislativo.

c) a concepção de poder, atribuída ao Estado-gendarme-acusador sustenta-se na lógica teórica empregada para conceituar os demais poderes do Estado: estrutural e funcional, mais uma especialização técnico-jurídica e científica, nos termos propostos por Max Weber e subscritos por mim.

Nas primeiras décadas do século XIX, um autor já havia percebido ser a jurisdição penal mero apêndice do inquérito e da investigação criminais, apesar de não ter desenvolvido o raciocínio que o levasse a estabelecer o alcance do aparato e funções desse poder que conceituei como Estado-gendarme-acusador. Ressaltou que se os integrantes do judiciário permanecessem em greve por meses, ninguém sentiria ou perceberia: a sociedade continuaria funcionando e reproduzindo-se como dantes. O mesmo não ocorreria se a polícia, toda a polícia, entrasse em greve durante uma semana: a sociedade e o ordenamento jurídico entrariam em colapso. (6)

Não restam dúvidas, teóricas ou fáticas, quanto a conceber o Estado-gendarme-acusador, em matéria penal, como mais um poder, como forma de manifestação direta do poder do Estado, com estrutura, hierarquia e funções específicas, essenciais a reprodução da sociedade nos termos em que ela se organiza, bem como do ordenamento jurídico.

As pessoas são presas pelas polícias, nos casos de flagrante delito, de forma não jurisdicionalizada, sob a lógica e regras vigentes internamente para as corporações policiais, que efetuam as abordagens e prisões de acordo com a leitura e interpretação que fazem dessas regras que, quase sempre, ferem ou transgridem os limites ao exercício do poder punitivo estabelecidos na Constituição Federal.

No direito penal e processual penal, bem como no mundo fático em que a matéria se aplica, os integrantes do Ministério Público, os promotores da acusação, assim denominados porque esta é a função que realmente cumprem os equivocadamente chamados de promotores de justiça, nada mais fazem que atuar como instrumentos intermediários entre a prisão e o inquérito produzido pela polícia - geralmente a civil - e o Estado-judiciário; são os promotores da acusação que dão discursividade jurídica à linguagem meramente policial dos documentos produzidos pela polícia. Por questão de divisão do trabalho na sociedade capitalista, no Estado capitalista, por racionalidade burocrática, atuam complementariamente.

As considerações que fiz sobre o papel e funções da polícia e do Ministério Público, para o direito penal e para o processo penal, ancoradas em suas atuações e funções neste campo (Bourdieu) (7), levam-me à certeza do acerto de concebê-los como integrantes, componentes de um mesmo aparato: o Estado-gendarme-acusador.

As investigações criminais atualmente feitas pelos promotores da acusação reforçam mais ainda a tese de que fazem parte, junto com as polícias, do mesmo aparato, vez que os objetivos e funções de ambos terminam sendo mais coincidentes e complementares que o estabelecido pela Constituição. A realidade fática termina por se sobrepor, desde que sejam afins as funções, e similares ou complementares as especializações técnico-jurídica e científica.

Fecho a conceituação, afirmando que Estado-gendarme-acusador é o responsável por realizar as funções de polícia, de uso da força ou da coerção direta para garantir a reprodução da sociedade nos termos em que ela se organiza, mantendo a paz e a ordem públicas, que não são outras que a materializada econômica, social, política e culturalmente, reproduzidas nas normas que compõem o ordenamento jurídico; bem como, usurpar, no processo penal, o lugar da vítima que deste é excluída, atuando como promotor da acusação contra o suposto autor de delito tipificado no Código e legislação penal material.

Ratifico: conceituo-o como Estado-gendarme-acusador por referir-se a um conjunto de aparatos que tem lógica de funcionamento e visão de mundo próprias; uma hierarquia, funções e conhecimentos especializados que lhes legitimam à exercer o monopólio da tarefa de zelar pelo policiamento e repressão delitiva e pelo exercício da ação penal nos casos de agressão mais significativa aos bens jurídicos protegidos pelo ordenamento, principalmente os crimes contra a vida e a liberdade.

Sustenta-se a teoria apresentada porque a teoria tradicional atribui a condição de poder ao Judiciário, ao Legislativo e ao Executivo, considerando a natureza e função de cada um deles, diante da divisão interna do trabalho no Estado, quando, a realidade fática e jurídica tem demonstrado que essa teoria é inconsistente ou inapropriada para explicar todo o fenômeno estatal.

Hoje, em nossa sociedade e ordenamento jurídico, os integrantes do Estado-gendarme-acusador por mim aqui argüido, são os maiores responsáveis, quase os únicos, pela vigilância, cerceamento da liberdade e acusações penais contra os cidadãos que supostamente violam as normas essenciais para a preservação da vigência dos direitos e garantias individuais fundamentais para a pessoa humana. Mais de dois terços das prisões são efetuadas neste país pela coerção direta estatal dos gendarmes oficiais - a chamada prisão em flagrante delito - ou advindas de pedidos de prisão feitos pelos promotores da acusação. Cerceamento de liberdade que se faz sustentado em inquéritos policiais ou investigações feitas de forma inquisitiva e sigilosa, sem obediência aos princípios da ampla defesa, do contraditório, da proporcionalidade, da publicidade.

A jurisdição penal solidificou-se como mero apêndice do inquérito e da investigação criminal, do Estado-gendarme-acusador, que detém, do ponto de vista fático e jurídico, muito mais poder de limitação da liberdade individual dos cidadãos e de garantia de manutenção e reprodução do ordenamento jurídico que todo o Estado-judiciário.

O Estado, materializado no conjunto de aparatos de poder, garante a reprodução da lógica econômica e social descrita; sustenta através da ameaça do uso da força, através do Estado-gendarme-acusador, um ordenamento jurídico que reflete a superioridade de um grupo de pessoas sobre outras, legitima uma relação de hierarquia de classes, assim como, inequivocamente, é ele organizado objetivando melhor assegurar a reprodução da lógica capitalista, através da busca de sua própria legitimação, aceitação pela sociedade, dissipando os conflitos de classe e de interesses que permeiam as relações sociais concretas.

Ainda que o Estado continue sendo a organização institucionalizada do monopólio do uso da violência, legitimado pelo ordenamento jurídico-político, com o poder de determinar, possibilitar e legitimar a ordem capitalista vigente, tende, hodiernamente, como afirmou Gramsci, (8) a buscar a legitimação pela hegemonia, pela persuasão ideológica, empregando a força/violência apenas nos casos limites.

Mantém-se o discurso pseudocientífico e o paradigma liberal da especialização dos poderes para legitimar o poder simbólico do Estado, do discurso e racionalidade explicativa de ser pretenso representante de toda a sociedade, como se essa fosse monolítica ou metafísica.

A Constituição e o ordenamento jurídico legitimam as ações do Estado-executivo através do procedimento eleitoral tido como democrático, ao assegurar o exercício da presidência e das chefias dos executivos estaduais e municipais àqueles que adquirirem a maioria dos votos dos cidadãos nacionais. O Estado-executivo legitima a ocupação dos seus cargos máximos, o de chefe, em cada instância - federal, estadual e municipal - através de um jogo em que se sagra vencedor aquele que capitaliza a vontade da maioria, ficando a minoria com a responsabilidade de respeitar a vitória do time adversário e preservar a institucionalidade, mantendo a possibilidade de revanche no próximo jogo eleitoral. O Estado-executivo é, supostamente, resultado da vontade soberana dos cidadãos, em tese.

Da mesma forma, a Constituição e o ordenamento jurídico legitimam o Estado-legislativo através da eleição proporcional de seus membros, em suposta representação dos cidadãos das várias regiões do país, das várias classes e segmentos sociais, dos inúmeros grupos de interesses, etnias e projetos econômicos. O legislativo, por ter composição heterogênea e supostamente mais democrática, é o encarregado de fazer as leis que regerão os destinos dos cidadãos comuns e dos próprios administradores, numa suposta legitimidade atribuída pelo soberano roussoniano, ainda que delegada a representação dos interesses individuais.

A proibição da autotutela privada dá ao Estado-judiciário monopólio da jurisdição - dizer o que quer dizer a lei, revelar-lhe o sentido e aplicá-la ao caso concreto - mais que a inserção do inciso XXXV no artigo 5º da Constituição Federal e no ordenamento jurídico. Legitima-se o poder de guardião da legalidade ao Estado-judiciário. O Estado-judiciário é o encarregado de julgar em última instância o sentido e alcance da Constituição e das leis, submetendo os querelantes e aqueles que recorrem aos juízos e tribunais à vontade abstrata da lei, que, segundo o discurso e paradigma racionalista, é a vontade da sociedade, dos cidadãos que legitimam todo esse processo através do voto direto e secreto.

Os juizes, com algumas exceções nos tribunais superiores onde as indicações de parte dos componentes daquelas cortes são feitas pelo executivo e homologadas pelo parlamento, são legitimados como supostos únicos donos dos saberes técnico-jurídicos apropriados para o desempenho desta função, vez que assumem os cargos após aprovação em concurso público de provas e títulos. Mantém-se o paradigma e legitimação ideológica da sua infalibilidade e legitimidade plena, através da coisa julgada material, oriunda das decisões prolatadas pelos sacerdotes capazes de revelar o sentido da bíblia/códigos: civil, penal, comercial, tributário, trabalhista, etc. A suposta capacidade técnico-jurídica desveladora do sentido da lei pelos juízos e tribunais torna racional o discurso de que se está aplicando a vontade da sociedade, vez que as leis foram feitas pelo Estado-legislativo, representante puro da heterogeneidade social manifestada nos processos eleitorais supostamente democráticos.

O Estado-gendarme-acusador, por sua vez, se legitima com o discurso de representante da sociedade e do suposto interesse público não demonstrável ou aferível, vez que a ampliação do contraste entre ricos e pobres gera o aumento da violência e os discursos repressivo-punitivos. Intitula-se sujeito-vítima universal de toda conduta que agrida as normas de direito penal que tutelam bens jurídicos erigidos como essenciais para a coexistência humana na sociedade, vez que a vítima real, concreta, verdadeira, é excluída do processo penal.

Os membros do Ministério Público são intitulados erroneamente pela Constituição e pelo ordenamento jurídico de Promotores de Justiça, quando devem ser chamados, em matéria penal, apenas de promotores da acusação, por serem detentores do monopólio do exercício da ação penal nos casos de crimes de médio e grande potencial ofensivo. Função que lhes transformam em meros pretendentes a que se torne eficaz, se materialize o suposto ius puniendi do Estado.

Decorrente da função a eles atribuída pela Constituição e pela legislação penal ordinária, bem como pelo exercício dessas prerrogativas, terminam os membros do Ministério Público por internalizar o discurso e a prática punitivos, tornando-se legítimos integrantes e expoentes do Estado-gendarme-acusador, agindo como se a violação ao direito subjetivo individual, das pessoas humanas na sociedade, fosse agressão ou lesão a direito subjetivo seu, devendo esses supostos criminosos ser alcançados pelo poder punitivo do Estado, que não é outro que o por eles exercido.

Inequivocamente que todo esse processo, toda essa sistemática somente se reproduz de forma continuada se e somente se se mantiver o mínimo de respeito pelas normas constantes da Constituição e do ordenamento jurídico. Daí a necessidade de precisar os limites da atuação do Estado, dos seus poderes e das atribuições específicas, da natureza e funções de cada aparato, na divisão de trabalho que objetiva a mais eficiente produtividade de suas ações.

A teoria explicativa do poder do Estado, de sua divisão estrutural e funcional interna, torna-se mais coerente através da concepção tetra-partite, que atribui ao Estado, do ponto de vista organizacional e funcional, de sua busca de legitimação, mais um aparato com objeto de atuação, lógica de funcionamento e hierarquia funcional próprios, mais um aparato de Estado, o Estado-gendarme-acusador, que goza de poderes de controle e cerceamento de condutas individuais que atentem contra os supostos direitos essenciais para a convivência humana, mais o monopólio da acusação no processo penal, como aqui explicitado.

Todo esse arcabouço de aparatos e órgãos - conceito que advém da biologia para designar uma parte do corpo - tem sua natureza e funções determinadas pela Constituição, sem descartar que estas são extrapoladas por um aparato ou por um órgão em detrimento dos limites e papéis atribuídos a outros aparatos e órgãos do mesmo Estado, vez que as usurpações de funções e transgressões de limites somente podem ser anuladas ou revogadas após longo litígio judiciário, ao qual cabe a decisão final sobre as causas colocadas sob seu julgamento, de acordo com o inciso XXXV, artigo 5º da Constituição Federal.

Ratifico que a forma organizacional do Estado em aparatos e órgãos que têm natureza e funções delimitadas pela Constituição Federal obedece à necessidade de legitimá-lo pela suposta homologação pelo soberano cidadão eleitor, bem como pela especialidade de atuação de cada ente que o compõe; como forma de atribuir cientificidade, logicidade e aceitabilidade das decisões dele emanadas. Por isso, os papéis atribuídos ao Ministério Público pelo artigo 129 da Constituição Federal, de órgão essencial a administração da Justiça. Mesma essencialidade a administração da Justiça atribuída aos advogados pelo artigo 133 da mesma Carta político-jurídica maior.

Promotores de Justiça, no campo do direito penal e processual penal, não são os membros do Ministério Público e sim, os advogados, que zelam pelo respeito aos direitos e garantias individuais constantes da Constituição Federal e da racionalidade humana.

Entretanto, os membros do Ministério público são os únicos que se dizem promotores de justiça pelo discurso legitimador do Estado, haja vista a necessidade de atribuição de natureza e função independente àqueles, como se fossem legítimos representantes da sociedade e do suposto e metafísico interesse público e não do Estado, como se não fossem parte integrante do aparato Estatal. Somente assim, de forma ideológica e sofismática, se poderia legitimar um aparato acusador, que tem como principal função tolher ou limitar a liberdade individual de cidadãos considerados criminosos/pecadores pelo próprio Estado. Vende-se o discurso de independência do Ministério Público, como a de representante dos interesses da sociedade, quando, de fato e de direito, representa a pretensão repressora e punitiva do Estado-gendarme-acusador: são na realidade promotores da acusação.

Às polícias é atribuída - pelo art. 144 da Constituição Federal - as funções de zelar pela segurança e preservação da ordem pública, a suposta paz social, que nada mais é que a aceitação subserviente da ordem vigente, do status quo; mais a de realizar as investigações de fatos delituosos, atentatórios à ordem penal vigente, bem como a de prender, por dever de função, àqueles que forem flagrados praticando condutas contrárias à legislação penal.

Somente a polícia estaria legitimada para a realização de investigação, ao ser esta um aparato supostamente independente dos Juízos e do Ministério Público; também por ter os saberes técnico-jurídicos apropriados para a investigação técnico-científica crível pela sociedade.

Ainda que os limites impostos a cada um dos aparatos estatais pela Constituição Federal e pelo ordenamento jurídico sejam extrapolados, violados ou dilatados por uns em detrimento de outros aparatos e órgãos, cabe zelar pela limitação do Estado-gendarme-acusador contido no suposto Estado de direito vigente no país, vez que, como será defendido neste texto, é esta uma garantia essencial para que a lei seja aplicada em seus estreitos limites, quando se tratar de direito penal e de direito processual penal.

Diante das afirmações feitas e dos conceitos desenvolvidos, cabe-me dilatar a compreensão do Estado, conceituando-o para além dos aparatos e órgãos de Estado concebido pela teoria clássica e assumida como dogma até nossos dias. Faz-se necessária à assunção da teoria tetra-partite, bem como entender que o Estado se faz presente nos aparelhos ideológicos de Estado, em aparatos tidos como da sociedade civil, como os meios de comunicação, por exemplo. Materializa-se e se expressa o Estado nas condutas de vigilância, repressivas e punitivas através da Escola (estatal ou privada), da igreja, nos meios de comunicação, entre outros aparatos. As instituições são institucionalizadas e nos institucionalizam. (9)

Adoto esta compreensão do Estado não para legitimá-lo, apenas afirmo que ele assim se estrutura, se manifesta e se explica na sociedade capitalista atual.

Subscrevo como corolário a compreensão de que o direito, enquanto manifestação concreta na nossa sociedade histórica, não é apenas o conjunto de normas emanadas do poder legislativo e contempladas no ordenamento jurídico escrito, manifesta-se através do sistema penal em instituições tidas como da sociedade civil ou para estatal e nas decisões dos juizes e tribunais, que criam jurisprudências e normas de conduta, em face da omissão e imprecisão legislativas, ao terminarem por reconhecer como válidos negócios jurídicos e atos realizados no marco da suposta liberdade individual tolerada pelo ordenamento. Faz-se legítimo nos princípios que norteiam a Constituição, o ordenamento jurídico e a atividade de sua aplicação.

Como afirma Passukanis: a autoridade como garantia da troca mercantil só pode ser expressa na linguagem do direito, apresentando-se a si própria como direito e somente como direito, isto é, confundindo-se totalmente com a norma objetiva abstrata. (10)

Cabe, por fim, ratificar que o ordenamento jurídico existe e se mantém através da ameaça do uso da violência pelo Estado, bem como da persuasão, consubstanciada na ideologização das explicações oficiais sobre as relações sociais e na busca da hegemonia sustentada no sofisma de que o Estado representa a sociedade como um todo, como se essa fosse monolítica, metafísica.

Entretanto, o ordenamento jurídico e o Estado devem assegurar a efetividade da suposta generalidade/abstratividade das normas, no sentido de fazer crer que elas se dirigem a todos e a ninguém em específico, decorrendo desta necessidade de legitimação o amparo e respaldo ao direito material e as ações processuais das pessoas componentes das classes não possuidoras dos meios de produção de riquezas. É o preço mínimo a ser pago: aos explorados e excluídos é assegurado o direito a recorrer aos tribunais e aos juizes para fazer valer a lei, pois se assim não fosse as pessoas seriam escravizadas ou guindadas a condições subumanas, vez que a lógica do capital é a de auto-reproduzir-se de forma ampliada, a quaisquer custos, principalmente via diminuição dos salários reais. Até para fazer valer os estritos limites de ser parte hierarquicamente inferior na realidade socioeconômica, deve-lhe ser garantido o acesso aos instrumentos processuais que farão supostamente valer seus direitos.

Para que se legitime o Estado como suposto representante de toda a sociedade, dissociado de relações econômicas, sociais e políticas específicas que a permeiam, tentam figurar aquele como representante de todos, se recorre ao argumento teórico de conceituá-lo como uma potência autônoma, separada da sociedade. É exatamente nisto que reside o aspecto jurídico desta doutrina. Esse é o fundamento da teoria jurídica do Estado. (11)

Metamorfosea-se a realidade fática, tornando o Estado um ente supostamente desvinculado dos conflitos de classes e garantidor da lei e dos interesses de todos.

Embora tenha esta compreensão do Estado, não tenho como objetivo a sua negação ou derrocada. Isto não está no horizonte e nas possibilidades concretas da luta político-jurídica atual.

Busco apenas construir uma teoria geral do processo penal que possibilite a realização, a materialização dos valores liberais de liberdade, igualdade e fraternidade apregoados pela sociedade capitalista, através da tentativa de materialização da declaração universal dos direitos do homem, da Convenção Americana dos Direitos Humanos e da Constituição Federal; objetivando garantir que o exercício do poder político e jurisdicional não extrapole os princípios da humanidade, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade, da democracia, do poder republicano, da presunção de inocência, da legalidade, entre outros que tanto custaram aos humanos que vivem no planeta.

Afirmações que reforçam meu objetivo de legitimar o direito sob premissa principiológica, em detrimento do papel e alcance dos aparatos estatais.

A ampliação da compreensão do fenômeno jurídico para além das normas legisladas me leva a possibilidade de limitar o alcance e poder repressivo dos aparatos estatais, através do seu referenciamento nos princípios que velem pelo respeito à liberdade individual, aos direitos humanos, à solidariedade, à convivência, à primazia da pessoa humana sobre os bens materiais. O Estado de direito deve conter o Estado-gendarme-acusador, que se expressa nas atividades punitivas não proporcionais, não submetidas ao controle prévio ou simultâneo do Estado-judiciário.

Os litígios sócio-econômicos, patrimoniais e os direitos personalíssimos, fizeram com que o processo civil se tornasse o instrumento que viabiliza a realização do direito material civil violado e respaldado pelo ordenamento jurídico, bem como o meio idôneo para a reparação de dano material sofrido, onde os sujeitos da economia capitalista são guindados a figurarem como partes processuais, para realização dos direitos materiais ou das pretensões de direito material, numa relação jurídica estabelecida agora entre entes atomizados, o Estado, o autor e o réu, como manifestação das relações mercantis que permeiam toda a sociedade.

Para explicar esses fenômenos no direito processual penal, no processo penal e na jurisdição penal, cabe-me apresentar uma conceituação adequada destes, acorde com a teoria substancial e proporcional do processo penal que busco construir.


Notas:

* Edno Damascena de Farias, Advogado, OAB/MT nº 11.134. [ Voltar ]

1 - Ver: Passukanis, Eugeny Bronislanovich, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, Livraria e Editora Renovar, 1989. [Voltar]

2 - Destaco que a teoria de Montesquieu é conceituada pelos estudiosos como mecanicista, vez que concebeu o Estado tendo como referencial o relógio de pêndulo, em seu tempo o objeto mais preciso em funcionamento. Sua adaptação, absorvendo elementos da concepção organicista do Estado feita por Hegel é a que predominou teoricamente e é posterior a sua formulação original. Sobre o ponto, ver: O Espírito das Leis; Martin Claret editora, 2003; Norberto Bobbio, teoria das formas de Governo, UNB editora, 2000; Juan Ramón Capella, Fruto Proibido, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002. [Voltar]

3 - Ressalto a observação feita pelo professor de História da Universidade do Estado de Mato Grosso, Dr. Romyr Conde, de que a teoria dos três poderes no Brasil é meio mitológica, ou natural. Em Brasília, capital federal, existe uma praça dos três poderes; os políticos e juizes adoram falar nessa divisão de poderes. Até mesmo a ditadura militar manteve os três poderes com as suas prerrogativas, mesmo que não fossem realmente livres, independentes e equilibrados. Parece que esse mito vem desde o tempo de D. Pedro I, visto que lá os poderes existiam, mas apenas no papel. [Voltar]

4 - Bobbio, Norberto, Dicionário de Política, Editora Universidade de Brasília, Volume 1, 5ª edição, 2000. [Voltar]

5 - Dialogo, também, para a formulação de meu conceito de poder de Estado com o marxista francês Louis Althusser, cujo livro pesquisado consta das notas bibliográficas. [Voltar]

6 - Pasukanis, Eugeny Bronislanovich; A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, Livraria e Editora Renovar, RJ, 1989. [Voltar]

7 - Bourdieu, Pierre, O Poder Simbólico, editora Bertrand Brasil, 2000. [Voltar]

8 - Ver: Gramsci, Antonio, Antologia, Editorial de Ciências Sociales, Habana, Cuba, 1973. [Voltar]

9 - Althusser, Louis, Aparelhos Ideológicos do Estado, GRAAL - Biblioteca de Ciências Sociais, 2001. [Voltar]

10 - Pasukanis, op. citada. [Voltar]

11 - Idem, ibidem. [Voltar]

Palavras-chave: tetra-partite

Deixe o seu comentário. Participe!

noticias/da-sociedade-e-da-construcao-de-uma-teoria-tetra-partite-do-estado

0 Comentários

Conheça os produtos da Jurid