Atividade acusatória e produção de provas no processo penal

Nesta semana o Supremo julgou uma caso que se arrastava desde o final de 2010, quando o deputado Tiririca foi denunciado pelo MP

Fonte: Última Instância

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O STF (Supremo Tribunal Federal) pôs fim, esta semana, a uma novela que se arrastava desde o final de 2010, quando ao então candidato, hoje Deputado Federal, Francisco Everardo Oliveira Silva – mais conhecido por seu nome artístico, Tiririca – foi imputada, em denúncias oferecidas pelo MP (Ministério Público), a prática de condutas tipificadas como crime no artigo 350 do Código Eleitoral: uma, por ter supostamente omitido, em documento público utilizado para fins de registro de sua candidatura perante a Justiça Eleitoral, a existência de bens em seu nome; a outra, por ter efetuado afirmação pretensamente falsa, ao declarar que saberia ler e escrever, para o mesmo fim (AP 567, Rel. Min. Gilmar Mendes).


Referido dispositivo legal considera crime eleitoral, ao qual comina penas de reclusão e multa, “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”. Formuladas a partir de notícias divulgadas à época pela imprensa e processadas conjuntamente perante o juiz da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo, as denúncias, em princípio, tiveram destinos diversos. A relativa à omissão sobre a existência de bens em nome do acusado havia desde logo sido recebida; já a referente à declaração de que saberia ler e escrever havia, inicialmente, sido rejeitada, por não vislumbrar o juiz justa causa para a ação penal, uma vez que o TRE (Tribunal Regional Eleitoral) teria reconhecido, no exercício de competência originária sua, nos autos do registro da candidatura, inexistir qualquer causa de inelegibilidade do candidato – inclusive a de não analfabetismo. Instrução complementar do feito, no entanto, com a apresentação de cópia do documento com escrita do candidato, cuja autenticidade se questionava, acompanhado de laudo, levaram ao recebimento da denúncia, também quanto à segunda conduta imputada ao réu.


No mérito, contudo, após a apresentação de defesa pelo réu, instruída de documentos destinados a refutar a acusação, o juiz de primeira instância, entendendo serem desnecessárias novas provas, a despeito de requerimento do MP para produzi-las, proferiu sentença absolutória, por considerar que os fatos narrados não constituíam crime (artigo 397, III, do Código de Processo Penal). O MP interpôs recurso de apelação em face da decisão, pretendendo sua anulação, sob a alegação de nulidade da sentença, em virtude de ausência de fundamentação – por não terem sido devidamente analisados os argumentos e elementos coligidos aos autos pelo MP – e cerceamento da atividade acusatória – por terem sido indeferidas diligências, em relação a uma denúncia, bem como realização de prova pericial, em relação à outra. Se rejeitadas as alegações preliminares, pretendia o MP, em grau recursal, a condenação do réu pelas práticas que lhe eram imputadas e cominação das penas respectivas.


O recurso de apelação, em princípio de competência do TRE, teve seu processamento transferido para o STF, quando da diplomação do réu como Deputado Federal, por força da prerrogativa de foro prevista na Constituição para o julgamento de parlamentares, em matéria criminal (artigos 53, § 1º e 102, I, b), e, desde fevereiro de 2011, aguardava julgamento.


O que sobressaiu na análise do caso pelos Ministros do STF não foi tanto o seu mérito propriamente dito, ou seja, as discussões não se centraram em saber se estariam ou não configuradas, no caso, as condutas tipificadas como crime no artigo 350 do Código Eleitoral, tampouco quais os requisitos para tanto – embora essas questões tenham sido abordadas, especialmente no voto do Relator. A tônica do julgamento, em verdade, recaiu sobre questões que antecedem a discussão de mérito e que são extremamente relevantes do ponto de vista institucional e constitucional, por estarem diretamente relacionadas à conduta dos membros do MP, no exercício da atividade acusatória, e à extensão da instrução probatória, no âmbito do processo penal.


O Min. Gilmar Mendes, de início, afastou a alegação de que a sentença careceria de fundamentação, por não ter analisado todos os argumentos e elementos trazidos pelo MP aos autos. Salientou que, para garantia da adequada prestação jurisdicional, é certo que as decisões judiciais devem ser motivadas, a fim de que possam submeter-se a controle. Motivar significa “dar as razões pelas quais uma determinada decisão há de ser adotada, expor suas justificativas e os motivos fáticos e jurídicos determinantes”. A garantia de motivação, expressa no artigo 93, IX, da Constituição, porém, “não determina que o magistrado proceda ao exame pormenorizado de cada alegação ou prova”, nem mesmo o obriga a “refutar todos os argumentos das partes, especialmente quando, ao adotar um fundamento inconciliável com os demais, repele ou acata a pretensão”.


Ultrapassada essa questão, o Relator passou a enfrentar os dois aspectos centrais do julgamento proferido pelo STF na AP 567. Em primeiro lugar, dedicou-se ao tema do alegado cerceamento da atividade acusatória. Destacou o Ministro que o STF possui jurisprudência no sentido de que “não há que se falar em cerceamento quando o magistrado de forma fundamentada, lastreado nos elementos de convicção existentes nos autos, indefere pedido de diligência probatória que repute impertinente, desnecessária ou protelatória”.


De fato, a análise da jurisprudência do STF revela uma consistência de entendimento quanto à possibilidade de indeferimento de produção de provas, sem que reste caracterizado cerceamento, nas situações previstas em lei e desde que fundamentada a decisão. Há acórdãos dessa natureza tanto no que se refere ao processo administrativo disciplinar a que se sujeitam servidores públicos civis da União, nos termos dos parágrafos 1º e 2º do artigo 156 da Lei 8.112/1.990 (como o RMS 30.881, Rel. Min. Cármen Lúcia), quanto em relação ao que prevê o artigo 130 do Código de Processo Civil (caso do ARE 696.563, Rel. Min. Luiz Fux) ou, mais especificamente e de interesse direto para o caso sob comento, no âmbito do processo penal.


A esse respeito, embora seja indiscutível a estreita relação do direito à prova com a garantia constitucional do devido processo legal, cuja observância deve ser assegurada pelo Estado, sendo excepcional a recusa à sua produção (HC 96.905, Rel. Min. Celso de Mello), o fato é que não há um direito absoluto à produção de prova (HC 100.988, Rel. Min. Marco Aurélio). O parágrafo 1º do art. 400 do Código de Processo Penal, neste incluído pela Lei nº 11.719/2.008, “faculta ao juiz o indeferimento das provas consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias, desde, obviamente, que o faça de forma fundamentada” (RHC 115.133, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em maio de 2013 e no qual há referência a diversos julgados, das duas Turmas do Tribunal, no mesmo sentido).


Cabe verificar caso a caso, portanto, se o indeferimento de provas foi fundamentado a contento, consideradas as balizas estabelecidas pela legislação e pela jurisprudência do STF. No caso da AP 567, prevaleceu o entendimento de que agiu corretamente o magistrado de primeira instância, faltando razão ao MP em suas alegações.


Quanto à prova pericial pretendida, em relação ao documento em que a autenticidade da escrita era questionada, destacou o Relator que o réu manifestara nos autos recusa a se submeter a exames ou fornecer padrão gráfico para comparação, de modo que não poderia ser coagido à realização da prova, que deve ser ato de livre determinação do indivíduo, por aplicação do princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), voltado em essência à proteção do acusado, sob a ótica dos atributos da dignidade da pessoa humana. Daí que, uma vez manifestada a recusa pelo réu, é acertado o indeferimento da prova, que “inequivocamente não seria levada a termo”.


No que se refere à realização de diligências para obtenção de documentos fiscais que demonstrassem a ocultação de bens pelo réu, a conclusão não foi diferente. Observou o Min. Gilmar Mendes que, nesse ponto, a imputação inicial restringiu-se ao crime de falsidade, decorrente da informação prestada ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) de que o acusado não possuía bens em seu nome, tendo a acusação se lastreado unicamente em notícia veiculada na imprensa. O réu, a seu turno, apresentou provas documentais que afastavam a alegação (sobretudo, declarações simplificadas de ajuste anual de renda), diante das quais o magistrado entendeu ser desnecessário deferir o pleito do MP. O tipo criminal objeto de persecução no feito, salientou o Relator, é o tipificado na legislação eleitoral; se porventura houvesse qualquer indício de fraude que configurasse eventual crime de sonegação, por exemplo, seria caso de nova investigação e denúncia, mas não nesta sede, não perante o juízo eleitoral.


Aparece, aqui, o segundo aspecto central deste julgamento. Como destacou o Relator, a acusação foi baseada unicamente em notícias divulgadas na imprensa, não tendo diligenciado o MP no sentido da obtenção de elementos mínimos para dar lastro à persecução penal. O Min. Gilmar Mendes foi contundente, ao afirmar que “os pretensos vícios suscitados pelo Parquet com fundamento no cerceamento de acusação, em verdade, advieram da omissão inicial do Ministério Público que, ao invés de investigar e diligenciar visando à obtenção de elementos mínimos probatórios para instruir a acusação, precipitadamente apresentou denúncia com base em notícias veiculadas pela imprensa”. Concluiu que o MP “subverteu, então, a ordem natural das coisas”, na medida em que “postergou para a instrução processual a colheita de provas para sustentar a imputação”.


O cuidado que se impõe no exercício da atividade acusatória que incumbe ao MP, por determinação constitucional (artigo 129, I), foi objeto, igualmente, de considerações expendidas pelo Revisor do caso, Min. Ricardo Lewandowski, que manifestou entendimento no sentido de que a inépcia da denúncia seria flagrante e deveria, inclusive, ter sido declarada de plano pelo juiz. A acusação foi formulada, nos dizeres do Ministro, “com base em uma notinha de uma revista”, não havendo “prova nenhuma”, não tendo sido feita “nenhuma indagação prévia, nenhuma diligência”.


Da mesma forma, o Min. Celso de Mello afirmou que o MP teria produzido peça inepta, que deveria ter sido rejeitada liminarmente, “sobretudo pela ausência de um substrato mínimo probatório que pudesse justificar a grave instauração em juízo da persecução penal”. E foi além, ao asseverar que, “embora o MP disponha de autonomia para deduzir uma acusação criminal independentemente até mesmo de um inquérito policial, é fundamental que a peça de acusação esteja sustentada e apoiada em documentos suficientes à caracterização da materialidade, isto é, da existência real do fato tipificado nas leis penais, e também de indícios suficientes de autoria”. Esse substrato mínimo visa até mesmo a “impedir a instauração de lides temerárias” e, quando isso ocorre, há de incidir o controle jurisdicional, “que deveria ter ocorrido no limiar da presente causa”.


A Min. Cármen Lúcia, que também se deteve sobre a atividade acusatória do MP, estabeleceu uma ponte entre a atuação institucional do órgão, nesta incluída a atividade de persecução penal, e as consequências daí advindas para a efetividade da participação política na sociedade. O MP, afirmou a Ministra, “é o advogado da sociedade, em benefício da sociedade, para cumprir as finalidades legais”. Assim, “qualquer tipo de atuação, incluída esta que é um processo penal, que não tenha realmente sustentação suficiente para se garantir, pode constituir uma forma de discriminação, num país que, infelizmente, ainda não é o melhor exemplo da educação oferecida a todos, em todas as condições, em todas as fases da vida”. Daí que, “provadas as condições que a lei exige, a elegibilidade é a regra”, e não o contrário, “e a cidadania se exerce até mesmo por esses que podem denunciar” o que ocorre “com muito mais tranquilidade e clareza”, de forma a “trabalhar em benefício do aprimoramento desse processo”.


Esse último ponto destacado pela Ministra volta-se para um dos aspectos de mérito da AP 567, que foi abordado pelo Relator, em seu voto, ao discorrer sobre os meios que devem ser empregados para aferir a condição de elegibilidade relativa à alfabetização dos candidatos a cargos eletivos (CRFB, artigo 14, § 4º). A adoção dos meios para se aferir a alfabetização exigida, afirmou o Min. Gilmar Mendes, “não pode conduzir a uma desarrazoada censura ou restrição ao direito de participação política ativa. Não se procura aferir exatamente o grau de instrução e conhecimento”, mas, “à luz da razoabilidade, verificar se o candidato possui mínima capacidade de ler e escrever”. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, destacou o Ministro, firmou-se no sentido de que “as restrições que geram as inelegibilidades são de legalidade estrita, sendo vedada a interpretação extensiva, orientação esta que se aplica inclusive quanto à configuração da inelegibilidade do artigo 14, § 4º, da Constituição, devendo exigir-se do candidato que saiba ler e escrever minimamente”, de modo a evidenciar tão somente eventual incapacidade absoluta de compreensão e expressão da língua. E concluiu: “se sofisticadas as exigências, corre-se o risco de se criar um modelo eleitoral aristocrático e até mesmo discriminatório” – e, portanto, contrário ao Estado democrático de Direito brasileiro, que tem, em sua base, o sufrágio universal, que compreende o direito à ampla e efetiva participação política.


Ao final, na esteira do voto do Relator, negou-se provimento à apelação interposta pelo MP, mantendo-se a sentença do juiz da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo, entendimento do qual divergiu tão somente o Min. Marco Aurélio, que considerou ter havido cerceamento quanto à atividade acusatória, razão pela qual provia o recurso, para o fim de anular o processo a partir do momento em que indeferidas as diligências requeridas pelo MP.


Veio do Min. Ricardo Lewandowski, no ápice de sua manifestação de contrariedade à conduta inicial do MP no caso, um questionamento que muitos se fazem, diante de situações que se arrastam por anos, até encontrar solução final que indica, em realidade, a existência de vícios de origem no processo: “quanto dinheiro público não foi gasto, quanto energia não foi gasta, para se chegar a este momento em que a Suprema Corte tem que se debruçar sobre um documento dessa natureza?”

Palavras-chave: direito constitucional

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